Há uma tentação muito grande em tentar enquadrar a música de Rogério Skylab, e em todos os casos isto resulta numa brutal redução dela. Se é certo que toda classificação em certa medida será redutora ao escolher mais ou menos arbitrariamente características que permitam o enquadramento, no caso de Skylab a dificuldade é dupla: seja por em seu caso estas características serem praticamente únicas na música brasileira, seja por elas comporem um projeto de investigação radical que está bem além da música, por assim dizer, indo ao fundo da linguagem para ir ao fundo da civilização.
Um começo pomposo, sem dúvida, e provavelmente ruim. Mas ainda assim melhor que lembrar de suas visitas ao programa de entrevistas do Jô Soares, que lhe angariaram uma enorme visibilidade e cujo preço acabou sendo em certa medida a folclorização de sua figura, principalmente pela escatologia de diversas de suas canções. Uma reação adolescente, diga-se. A escatologia do Skylab é uma faca que rasga o cenário da normalidade, e quem gosta de sua música por achá-la meramente divertida revela mais de sua própria mentalidade que daquilo que ouve. Bem, como acabei não escapando de mencionar suas idas ao Jô, que seja ao menos a única vez que o farei.
Toda a obra de Skylab tem o propósito de provocar o estranhamento da realidade. Ao ouvir sua música, a partir de certo ponto não é mais a música que é absurda, mas tudo ao redor dela, como uma espécie de teoria de conspiração invertida, um QAnon reverso. Sua técnica principal consiste em, escolhido um tema, promover metodicamente um pequeno deslocamento semiótico. Só um, escolhido com cuidado, quase como no método científico, porém suficiente para promover uma inversão completa de significado, para que tudo o mais passe a parecer fora de lugar. A mudança de um único referencial faz todos os outros se perderem, e para o ouvinte não é mais possível não desconfiar de tudo o que seja chamado de normalidade.
Mas a melhor maneira de compreender este procedimento é tomando uma canção do Skylab e ouvindo. Tomo uma aqui arbitrariamente, apenas porque gosto dela em particular: Dá um beijo na boca dele, do álbum Skylab VII, de 2006.
A forma de Dá um beijo na boca dele é simples, parte A, parte B – exceto que a parte B não tem letra, mas apenas o instrumental, e no entanto é parte fundamental na composição. A parte A consiste na letra recitada por Skylab sobre uma harmonia permanentemente em suspenso, sem acordes explícitos na instrumentação, e sim um baixo slap e uma bateria inquieta, num padrão que gera o máximo possível de tensão; e a B, inversamente, contém o descarrego de toda esta tensão numa levada contínua da bateria e acordes claramente despejados pelo instrumental, com uma melodia quase retilínea e fluida da guitarra. O contraste entre estas duas partes é o elemento principal na estruturação da canção, pois a segunda parte surge como um arremate da primeira, concluindo a narrativa iniciada nela.
Já a letra da canção tem uma construção muito particular e engenhosa: ela descreve uma luta de MMA, mas sem narrar, e sim usando o eu lírico do torcedor, ou quem sabe do próprio treinador de um dos lutadores. Toda ela é feita de frases de incentivo e instruções de golpes (ou algo mais, como veremos), sem nenhuma outra explicação. O estratagema tem a dupla capacidade de narrar indiretamente o que acontece no ringue, informando não apenas qual é a situação básica mas também o seu desenrolar, e simultaneamente, ao descrever os acontecimentos de dentro deles, mergulhar o ouvinte dentro da própria ambiência da luta. Somando-se a levada instrumental tensa e a voz igual e crescentemente tensa de Skylab incitando seu lutador, o resultado é que o ouvinte é transportado para dentro do ginásio e por pouco não se põe a torcer junto.
Sim, porque a princípio o estranhamento característico de Skylab não se manifesta. Ele virá logo adiante, e esta puxada de tapete do ouvinte é que torna Dá um beijo na boca dele quase didática do procedimento adotado por ele. Pois, aos poucos, as ordens dadas pelo torcedor/treinador vão se deslocando da sugestão de golpes a serem aplicados para ações cada vez mais francamente sexuais. Assim, dos iniciais Mantem a guarda ou Levanta a cabeça passa-se ao Joelhada e Leva ele pro chão, em seguida Língua na nuca e Mão na bunda, para enfim chegar a uma espécie de apoteose, um orgasmo verbal ao enunciar o verso/título: Dá um beijo na boca dele! Valeu, garoto!
Este é o momento da subversão, o ponto do deslocamento. Skylab não muda sua entonação ao passar da recomendação da agressão às carícias, ao contrário, mantém a tensão crescente. Sua voz propositalmente não diferencia umas de outras, seguindo à risca o método científico: apenas um ponto muda, e tudo o mais permanece o mesmo – e então tudo muda. O caráter homoerótico da luta livre, de recalcado surge em todo o seu esplendor e toda a significação daquela demonstração de masculinidade é solapada em detalhes: os corpos bombados e suados, o contato físico e até mesmo partes anteriores da letra – leva ele pro chão, aproveita agora – tudo muda de sentido. Aliás e a propósito, ao pesquisar sobre o assunto, descobri que a Luta Livre tem também o nome – nada menos – de Submission!
Porém, mais que apenas escancarar esta imensa e freudiana dubiedade dos combates, Dá um beijo na boca dele, na medida em que assume em seu eu lírico o papel da pessoa que assiste a luta e faz as invectivas sexuais, coloca este público como cúmplice (incluindo a si próprio, o que torna o processo ainda mais inescapável). E por extensão, ao levar esta cumplicidade ao ouvinte pela imersão na ambiência, torna-o igualmente cúmplice e voyeur. O plot twist na narrativa pega o ouvinte desprevenido, e ele, que assistia a uma competição esportiva extremamente masculina, subitamente é pego assistindo a um proto-pornô homossexual.
Pois é evidente que Skylab não tem a menor intenção de poupar o público, muito pelo contrário, sua intenção pode ser constrangê-lo abertamente – e aí a frequente folclorização de sua figura, como nas entrevistas com Jô (volto a mencionar, mas aqui a propósito) pode ser muito mais um mecanismo de defesa deste público, tentando tornar inofensivo quem aponta suas mazelas – o riso diante de suas músicas pode ser de nervoso, assim como o desconforto causado por sua obra tem algo de nelsonrodrigueano, mas num outro patamar, estendendo o componente existencialista deste a tudo que o sol toca e aprofundando a abordagem até o nível da linguagem. Ou, como comentou despretensiosamente o pesquisador Acauam Oliveira,
Skylab busca compulsivamente o niilismo escatológico, espécie de Paixão Segundo GH narrada da perspectiva da barata que, ao se deparar com a patroa morta e devorar suas entranhas, visse emergir ao invés de uma transcendência epifânica qualquer, um cheiro de merda insuportavelmente revelador de coisa alguma (Skylab provavelmente odiaria essa imagem) (…) Skylab procura o não humano, o inumano. Ou melhor, o a-humano como substrato que fundamenta, negativamente, todo discurso. Mesmo quando soa cômico, político ou lírico, o que seu discurso busca é a matéria gosmenta (‘pulsional?’) que atravessa e dissolve todo sentido, quase como se ele buscasse na música e na palavra – daí soar tosco – o que a torna impossível.
Dá um beijo na boca dele, ao final da letra e da parte A, passa a levada da parte B, já descrita, triunfal como um lutador que levanta os braços em comemoração da vitória, sob o urro generalizado da plateia, puro gozo – e acho que não preciso me estender em explicações. O único verso que ultrapassa o limite entre as duas partes é o já grito entusiasmado de Skylab, Valeu, garoto!, em que Skylab, público da luta e ouvinte da canção têm seu gozo conjunto ao do lutador. O verso Ele vai bater, repetido para encerrar subitamente a canção (e que também assume outras possibilidades de sentido da rendição que anuncia), como que bate a porta na cara do ouvinte, encerrando subitamente o idílio, sem contemporização.
Skylab, após o seu decálogo de álbuns que levam seu nome, passou a realizar organizar sua obra prolífica em trilogias de álbuns. Depois da Trilogia dos Carnavais e da Trilogia do Cu foram três álbuns colaborativos com o compositor contemporâneo Livio Tragtenberg e atualmente finaliza sua Trilogia do Cosmos. Mas mesmo quando investiga o universo do samba ou mergulha na música eletrônica ou eletroacústica, o fundamento da música de Skylab está no rock. Não exatamente por uma qualidade específica deste estilo, mas mais provavelmente porque este se apresenta a ele como uma página em branco onde até mesmo o samba ou a música eletroacústica podem ser sobrepostos, de modo que o samba de Skylab nunca é exatamente samba, mas em vez disso uma espécie de meta-dissertação sobre o samba, um pouco à moda de Tom Zé e seu álbum clássico Estudando o Samba. A diferença é que, enquanto Tom Zé desmonta o samba estilisticamente, Skylab o faz dentro de suas premissas, ou seja, linguisticamente.
Porém, nestes dez primeiros álbuns, Skylab modela seu estilo até torná-lo absolutamente inclassificável, e sua inclassificabilidade, com o perdão do termo, é sua maior arma, pois permite a ele nunca estar onde se pensa que esteja, como um lutador de esquiva perfeita, ou como a tática de guerrilha. Se em Dá um beijo na boca dele Skylab desmonta um discurso hoje associado intimamente ao fascismo, com sua exaltação da virilidade homoerótica em armas e motocicletas, é ponto comum em sua obra o desmonte deste fascismo onde ele é mais potente, que é na linguagem, na construção de significados (e é impossível não fazer um paralelo entre a escolha de uma Trilogia do Cu e a fixação anal recorrente nas falas de nomes do fascismo brasileiro como Olavo de Carvalho e o próprio presidente da República). Skylab transforma esta capacidade em ponto fraco ao deslocar apenas ligeiramente qualquer uma de suas premissas mais inocentes, e o resultado é repulsivo, escatológico, risível, estranho, absurdo – e desta matéria Skylab contrói sua própria linguagem, da anti-naturalização da realidade. Pois o mais incrível da música de Rogério Skylab é que, por mais chocante e insana que ela pareça, basta esticar o pescoço para encontrar tudo que a inspira no nosso dia-a-dia. Por mais que tudo o que o Skylab cante pareça absurdo, ele não canta nada que não exista.