Bye bye Brasil é um filme basicamente sobre as coisas que a maioria dos brasileiros não conhecem do Brasil. É uma história de amor, quatro personagens, quatro artistas mambembes viajando pelo interior do Brasil, do vale do rio São Francisco ao litoral nordestino, sertão, até chegar na Amazônia que é a esperança do futuro deste país. Eu acho que o Bye bye Brasil é sobretudo um filme sobre as coisas que estão nascendo e as coisas que estão acabando no Brasil. – Cacá Diegues
Trata-se de um inventário psicológico de um país à beira de um extraordinário desenvolvimento econômico e industrial, um diário de viagem de uma nação que ainda não existe. – Vincent Canby, crítico de cinema do New York Times
Não considero possível dissociar Bye bye Brasil, o filme de Cacá Diegues, de Bye bye Brasil, a canção de Roberto Menescal e Chico Buarque para o filme, uma road song para um road movie. São dois retratos geminados, a ponto de eu pensar em uma espécie de díptico formado por ambos – com a diferença de que o filme depende em parte da canção, mas ela tem subsistência própria.
Trecho do filme: o tema instrumental de Bye bye Brasil toca nos primeiros segundos.
A letra de Bye bye Brasil foi feita, à maneira do Chico, quase que no decurso de prazo, com o filme já montado e sonorizado, o que provavelmente o ajudou na confecção. Menescal compôs o motivo principal da música, a frase ascendente de quatro notas, diretamente a partir do título do filme, (diga-se de passagem, dela tirou uma canção com uma forma bastante original, com a estrofe inicial originando de suas repetições outras duas partes que são como que extensões dela) e de maneira bastante típica da composição para cinema, em que um tema marcante surge em diversas intervenções instrumentais ao longo do filme, invocando a canção com diferentes formações e andamentos, estabelecendo ao longo da história uma identificação indelével entre ambos. No filme Bye bye Brasil, o tema aparece ao menos oito vezes em situações diversas, mas só é cantada inteira nos créditos finais. Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello dão mais detalhes sobre o processo:
Anotada a frase inicial numa pauta improvisada e concluída a melodia um dia depois, Menescal entregou-a a Chico e ficou esperando a letra. Só que o poeta demorou tanto, que chegou o dia da gravação sem que ele a tivesse aprontado. Finalmente, na hora da mixagem, com o tema principal gravado no seu tom, Chico entrou no estúdio trazendo uma imensa tira de papel, com uma letra maior do que se poderia desejar…Mas Cacá logo resolveu a parada da maneira mais prática. Leu os versos até certo ponto e decretou: “tá bom até aqui”, cortando o resto com uma tesoura.
Bye bye Brasil – filme e canção – são obras que somente são possíveis em um país de dimensões continentais, e não vai nenhum ufanismo barato aqui. A começar por uma contingência prática: convenhamos, é impossível fazer um road movie na Holanda ou na Dinamarca, países pouco maiores que os estados de Alagoas ou Sergipe. Estas são obras sobre a amplidão, sobre a imensidade de um país que é diversos, é tantos que alguns deles não sabem que o são. Um personagem pergunta a um dos integrantes da caravana quem é o presidente do Brasil. Nenhum dos dois sabe. Mais direta e contundente é a pergunta de uma indígena expulsa de sua propriedade na Transamazônica: Você é do Brasil?
Em 1980, um ano depois do filme e da canção, o Brasil era a oitava economia do mundo. Também era o primeiro lugar no ranking mundial da desigualdade de renda, com dois terços da sua população vivendo na condição de pobreza. O país vivia simultaneamente o passado e o futuro, e a muitos parecia sem presente. A imagem do homem telefonando a longa distência de um orelhão de fichas – o serviço de Discagem Direta à Distância fora implantado havia pouco pelo governo ditatorial, dentro de seu projeto de integração nacional – é não apenas o fio condutor da canção, mas também ela própria uma imagem da tecnologia de um Brasil avançado imerso no meio de um outro Brasil que tem saudade de roça e sertão.
Por sinal que boa parte desta dicotomia também se apresenta entre esta presença de um Brasil rural que ia se desmanchando e uma influência estrangeira que mal era deglutida. no filme e na canção, o tempo todo este estranhamento é revelado: o chefe dos parintintins vidrou na minha calça lee; a Caravana Rolidei, com um inglês estropiado que no fim do filme é corrigido para Rolidey; no Tabariz o som é que nem os Bee Gees; a chegada da Caravana ao trânsito caótico na cidade de Maceió; puseram uma usina no mar, talvez fique ruim pra pescar; Para Vigo me voy, uma conga cubana cujo título se torna a palavra mágica engrolada de forma incompreensível pelo personagem de José Wilker, o Lorde Cigano; eu penso em vocês night and day, explica que tá tudo okay (rima em inglês que inclui um verso da canção de Cole Porter traduzido pela metade); a camiseta de Lorde Cigano, com a inscrição Copacabana; não dá pra falar muito não, espera passar o avião; e mais, e mais.
Dois versos em especial chamam minha atenção na letra de Chico:
Eu vi um Brasil na tevê – Assim como a Caravana Rolidei enfrenta a concorrência desleal das espinhas de peixe, como Lorde Cigano chama as antenas de TV no alto das casas, Chico sintetiza neste verso a relação estranhadora com este país multifacetado e unido à força das imagens que a modernidade trouxe: note-se que o artigo é indefinido: não o Brasil, mas um Brasil. E sua contemplação na tela, como uma imagem ficcional, faz ver o país onde se vive como se fosse outro, distante, feito próximo subitamente, mas ainda incompreensível, e aparentemente inconsciente da existência de quem o assiste a quilômetros de distância; e
Aquela aquarela mudou – Quantas canções brasileiras dialogam de alguma maneira com a Aquarela do Brasil? Talvez todas, ou quase todas que se proponham a cantar este país. A referência em Bye bye Brasil é breve, mas decisiva: a aquarela mudou, as cores são outras, o país é outro. O canto idílico do coqueiro que dá coco é substituído pela corrida do ouro em plena floresta, destruída desenfreadamente em nome do desenvolvimento (em tempos de revisão do Código Florestal, tema mais que atual). A nova aquarela é cruel. Porém, a relação entre as canções não fica apenas neste verso: além de ser uma Aquarela do Brasil (que aliás também faz parte da trilha sonora do filme) com outras cores mais fortes e ferozes, Bye bye Brasil é também uma viagem por este Brasil, cheia de referências de lugares, lugares reais, ao contrário da Aquarela, propositalmente deslocalizada. Uma aquarela em zigue-zague: Macau, Belém, Tocantins, Ilhéus, Maceió. Um Brasil desglamourizado, distante dos grandes centros, onde a TV passava, mas não era filmada.
E no entanto, a sensação final de Bye bye Brasil – filme e canção – não é de desesperança. A fixação do sanfoneiro interpretado por Fábo Jr., sua mulher e filha, que tem o nome da cidade quimérica buscada pela Caravana, e que se revelou a modernidade do capitalismo spencerista típico de lugares onde antes havia nenhuma lei – Altamira; e o fim da canção, em que Chico usa o recurso – comum a outras canções suas como Pivete e Pássara – da repetição de versos anteriores como que aleatoriamente, mas criando um efeito de ir estendendo a canção indefinidamente, contando coisas cotidianas em tom de confidência, até culminar no verso o sol nunca mais vai se por – ambos apontam para um futuro, não necessariamente o futuro da modernidade da cidade de Altamira, que chegava nas ações da visão ditatorial de progresso, mas nos habitantes do país que viviam esta passagem difícil, representados por Altamira, a criança, que iria viver este futuro.
Bye bye Brasil é um mergulho fundo. Um filme que tem a classificação de comédia, mas que mereceria a classificação inédita de antiépico ao zombar tanto da utopia desenvolvimentista da ditadura quanto dos sonhos igualitários da esquerda, o que levou Cacá a forjar a expressão patrulha ideológica; uma canção que faz a leitura fotográfica de uma transformação que ainda continua. O protagonista de ambos, mais que os integrantes da Caravana Rolidei ou do anônimo que telefona com saudades e dizendo que quer voltar para casa, um lugar não nomeado e que persiste na lembrança e na esperança, como um Brasil que tem saudades de si mesmo enquanto continuamente vai embora – este protagonista é nomeado por Cacá Diegues. Ao fim dos créditos do filme Bye bye Brasil, quando soam os últimos acordes da canção Bye bye Brasil, em letras garrafais na tela: O POVO BRASILEIRO DO SÉCULO XXI. Nós.
E a versão original do filme, ainda melhor: