Pare de dourar a pílula

Em 2002, quando Paulo César de Araújo publicou o livro Eu não sou cachorro não – Música popular cafona e ditadura militar, o brega ainda era brega, ou seja, uma parte considerável, mas não considerada, da produção musical brasileira. O livro, ao ir bastante fundo na pesquisa dos músicos de sucesso popular na década de 70, assinala duas coisas importantes: primeiro, que não é verdade que a música de Benito de Paula, Odair José e Waldick Soriano fosse sinônimo de alienação; e segundo, que havia uma questão social subjacente à separação imposta entre a música destes e a música popular “séria” feita por compositores oriundos de uma classe alta, de formação intelectualizada.

Por sinal que a versão mais aceita para a origem da palavra Brega é a de que teria vindo da Rua Manuel da Nóbrega, do meretrício de Salvador, que teria sido parcialmente apagada. O tipo de música corrente para “embalar os romances de aluguel” teria virado “música da Brega”, e mais tarde, simplesmente brega.

Trecho da coluna de Joaquim Ferreira dos Santos publicada no Globo, semana passada:

De onde veio o baião? Que mistério tem Clarice? Que será da minha vida sem o teu amor? Nega do cabelo duro, qual o pente que te penteia? Ninguém sabe as respostas. Ninguém sabe como se soma dois e dois para dar cinco e formar o paladar musical. Eu sou feliz com o meu. Desde os 9 anos tenho o meu coração de luto, que depois juntei ao coração materno arranjado pelos tropicalistas. Se isso fosse um texto de autoajuda, eu diria. De quantos tipos de música você gostar, melhor. Eu prefiro todas.

Brega é um rótulo para um tipo de música que teve a pouca sorte de surgir depois da bossa-nova. Orestes Barbosa seria brega se escrevesse ” A lua é gema de ovo no copo azul lá do céu” depois de Ronaldo Bôscoli. Como Moisés no Mar Morto, os garotos de Ipanema separaram as águas do grande rio das canções e estabeleceram: algumas são de bom gosto, geralmente as feitas por pessoas brancas de formação universitária ou pessoas pretas de nenhuma formação. Outras, decidiram os bacanas ao balanço da garota que vem e que passa, outras são o fim, o lixo, coisa de pardos-suburbanos-ginasiais que ficaram no meio do caminho, sacolejando no vagão da SuperVia.

Uma vida só (Pare de tomar a pílula) – Odair José, de 1973 (com um clip engraçadinho)

Aliás, esta música foi uma das proibidas pela censura, numa época em que o governo fazia campanhas de controle de natalidade entre as populações pobres – cheirava a desobediência civil, um desafio ao neomalthusianismo que guiava os ideólogos da ditadura.

Só que, desde esta mesma década de 70, o muro deste apartheid começou a apresentar rachaduras, e o maior responsável por elas foi Roberto Carlos. Roberto gravou Antônio Marcos, Márcio Greik, Benito di Paula, Wando, e era habituée da dupla Maurício Duboc / Carlos Colla – e também gravou Dolores Duran, Caetano Veloso, Dorival Caymmi e a dupla Fagner e Belchior. E gravando uns e outros construiu uma sintaxe própria que se soma às suas próprias parcerias com Erasmo, com um fraseado particular e reconhecível à distância. O estrondoso sucesso de Roberto extrapolou classes sociais ao se legitimar em ambas, e tornou-se impossível de ser ignorado.

Quarto de dormir, com Marcelo Jeneci

A canção acima é de 2010, de autoria de Marcelo Jeneci e Arnaldo Antunes. As características da composição de R. & E. estão todas aí, da abordagem da temática amorosa evocativa similar a Detalhes (porém aqui de forma espelhada), nas frases da letra todas com a mesma métrica, algo muito comum nas composições de Roberto, na condução da melodia em uma amplitude pequena, próxima da expressão coloquial, no desenvolvimento do tema escalando a tonalidade num crescendo progressivo de tensão, na sonoridade das cordas – tudo evoca a produção setentista de Roberto, com toda a sua exitosa breguice tecnicamente impecável.

Mas ainda faltava, digamos, reunir a Zona Norte e a Zona Sul, como disse Lulu Santos (falando de outra coisa). E aí temos uma longo percurso musical, que passa pelo Tropicalismo e faz escala na ruptura do BRock dos anos 80 e sua sequência no Manguebeat, aliado a um igualmente longo percurso de mudanças sociais que culminam hoje com a ascenção de uma nova classe média, um acesso maior ao ensino universitário etc. (Tudo isto é sujeito a variadas interpretações e ressalvas. Mas são fatos.) Hoje há condições para que uma síntese entre os opostos de três décadas atrás seja esboçada.

Como as luzes – Cidadão Instigado

Não por coincidência, o álbum Uhuuuu!, de onde saiu esta faixa, também tem a participação de Arnaldo Antunes. Frases desbragadamente românticas como Não sei como existo longe de você são realmente dignas de Odair José. Toda a sonoridade do arranjo vai nesta direção também, pela escolha dos timbres da guitarra, pela levada próxima da Jovem Guarda, pelo thurururu egresso da Jovem Guarda que criou Roberto e alimentou Odair…

Claro que este é apenas mais um indício, um passo pequeno no processo de pazes entre duas canções populares que ficaram apartadas por décadas, desde que a Bossa Nova condenou o bolerão e se tornou a matriz hegemônica para tudo que pudesse se considerado válido em música popular. E também no processo histórico de elaboração de uma identidade nacional, musical, artística, cultural, pelo respeito às classes “menos favorecidas” (para usar o jargão) e pela educação verdadeira, baseada na troca e no aprendizado mútuo, para todas as classes. Pois quando Paulo Cesar de Araujo (autor depois da famosa biografia de Roberto Carlos embargada pelo retratado) enxergou o enfoque político na produção musical chamada cafona ou brega, decididamente, ele não estava vendo miragens.

Três cabeludos

A carreira de Roberto Carlos, entre 1968 e 1972, ao longo de quatro álbuns, passou da Jovem Guarda à música romântica e ele de ídolo da juventude a ídolo nacional. Isto é sem dúvida uma simplificação, mas também não há dúvida de que este foi o período em que se forjou o Roberto Carlos que, mesmo diluído, existe até hoje.

Porém, isto não ocorreu sem um bocado de experimentações que, mesmo não tendo sido levadas adiante no sentido de se firmarem esteticamente na obra de RC, ainda assim deixaram suas marcas, seja no sentido pessoal como no artístico. Assim foi com o flerte com o espiritismo que o levou a visitar o médium Chico Xavier em Uberaba, ao mesmo tempo em que firmava sua fé católica e começava a transformá-la em canções. E assim também o flerte com a soul music que acabou dando frutos nestas mesmas canções.

Pode parecer que Roberto tenha ousado mais justamente nas canções religiosas desta época – Jesus Cristo, O Homem, Todos estão surdos – por se sentir confortável em uma temática, digamos, mais conservadora, como uma forma de compensação. Nada mais longe disso. Pelo contrário, nada mas natural que aproximar-se do soul, ritmo com uma ligação fortíssima com a música gospel – vide Marvin Gaye e mesmo Prince, que, ao lado com a temática amorosa e sexual, sempre trouxeram também a religiosa – Sexual Healing lado a lado com What’s going on. Roberto não fez muito diferente disto em sua carreira.

Eu poderia escolher qualquer uma das três canções que citei acima para analisar. Minha preferida é Todos estão surdos.

Todos estão surdos alia o balanço da música black a uma poderosa pregação, em que Roberto tenta fazer uma ponte entre seu público juvenil e o novo assunto que aborda:

Outro dia, um cabeludo falou:
“Não importam os motivos da guerra
A paz ainda é mais importante que eles.”
Esta frase vive nos cabelos encaracolados
Das cucas maravilhosas

Estas frases bem no espírito do filme Jesus Cristo Superstar são quase gritadas por Roberto, que deixa para cantar apenas o refrão (e mesmo assim, numa prosódia melódica que sempre começa ascendente, exaltada) e o lá-lá-lá que se repete da introdução ao final. A estrutura do refrão é interessante, com oito versos, sendo que aos primeiros quatro variam a cada vez, e apenas os quatro finais se repetem, remetendo imediatamente ao lá-lá-lá. Este, sim, é o verdadeiro refrão, um convite à congregação/platéia para cantar junto. E batendo palmas, assim como em Jesus Cristo, como numa boa celebração gospel.

Ou seja, Todos estão surdos seria uma redução da cerimônia religiosa em si, alternando o sermão – seja católico ou protestante – e as partes rituais que atuam no sentido de unir o pensamento da assembléia numa mesma função simbólica. Para isso, um refrão em lá-lá-lá é tão bom quanto qualquer outro, ou talvez melhor, por se poder atribuir qualquer simbolismo a ele. Neste caso, ele carrega em si o sentido das últimas frases do refrão anterior. Muito bem, mas só isso não constitui uma canção popular. Tem que haver algo mais que isto.

Todos estão surdos – Chico Science

Chico Science percebeu o que havia a mais. Sua gravação de Todos estão surdos consegue a proeza de ser ao mesmo tempo fiel à original, mantendo as gírias fora de moda e até mesmo o riff da guitarra, e a deslocar no tempo e no espaço, transportando-a da atmosfera soul para o universo manguebeat. É impressionante como o discurso que soava messiânico na voz de RC, com base apenas na nova sonoridade do arranjo, tem ressaltada a sua visão inconformista na voz de Science.

E o maracatu, ritmo negro criado de uma manifestação popular que ao mesmo tempo imitava e criticava a cultura cristã das cortes européias, se conjuga nesta visão de Jesus não como um rei, mas como um amigo, ao mesmo tempo que permanece indignada ao afirmar que a covardia é surda e só ouve o que convém. Science consegue em sua gravação unificar sua visão historicamente ao pensamento de pessoas como Martin Luther King, por exemplo. Mas ele não deixa de acrescentar algo na letra:

Você que está aí sentado, levante-se
Há um líder dentro de você
Governe-o,
Faça-o falar!

Quando Chico Science canta o verso Outro dia, um cabeludo falou, pode estar na verdade falando de Roberto, que gravou Detalhes no mesmo álbum de Todos estão surdos, em 1971, a Detalhes de Se um outro cabeludo aparecer na sua rua. A mensagem no fundo talvez seja a mesma. Talvez, ao longo do tempo, só mudem os cabeludos.