Dois sambas sobre o fim do mundo

Dia 4 de julho deste ano (2023), o planeta Terra bateu o recorde de temperatura média – foi o dia mais quente da história considerada a medição global. O recorde batido era recente, na verdade do dia anterior, 3 de julho. O ano de 2023, antes mesmo de terminar, já é o mais quente em 125 mil anos, segundo pesquisadores do clima. A média do mês de outubro foi 0,85º acima da média do mesmo mês entre 1991 e 2020 e 0,4º acima de 2019.

As causas para isso remontam à Revolução Industrial, quando motores a explosão passaram e liberar uma quantidade crescente de calor, aliada o desmatamento e à poluição. Às emissões de carbono e criação do efeito estufa somou-se em 2023 os fenômenos do El Niño e da La Niña, de aquecimento ainda maior do Oceano Pacífico. Mas o fato é que o aquecimento global se tornou inegável até mesmo para muitos de seus detratores e negacionistas ao longo do ano.

Não é de hoje que ambientalistas e pesquisadores apontam para o que está acontecendo e alertam que podemos estar tomando um caminho sem volta. Porém, ainda antes deles, profecias e tradições religiosas listavam eventos de fim do mundo, em geral cataclismas violentos (muitos dos quais, se olharmos com atenção, podem estar acontecendo atualmente, apenas em câmera lenta), incluindo a tradição cristã. O último livro da Bíblia, o Apocalipse de João, é a descrição do Fim dos Tempos, em que a Terra é destruída para renascer, os ímpios são castigados e os justos recompensados.

Mas e o nosso tema canção? Ora, não faltam os que cantaram tanto a questão ecológica quanto a escatológica, às vezes simultaneamente, e não falo aqui das vertentes confessionais. Dois sambas da melhor cepa da música brasileira são dedicados a estes eventos, e até certo ponto um deles pode ser considerado um desenvolvimento do outro, tanto tematica quanto musicalmente. Vamos a eles.

Nelson Cavaquinho gravou seu clássico Juízo Final no álbum com seu próprio nome, em 1973. Dois anos depois, Clara Nunes o regravou em seu álbum Claridade.

A abertura de Juízo Final é uma das mais retumbantes da música brasileira e provavelmente universal. A carga de dramaticidade contida em suas duas primeiras palavras, duas primeiras notas e dois primeiros acordes é difícil de ser superada. O verso O Sol é cantado com um salto oitava acima, com a nota aguda estendida amplificando seu brilho e poder o máximo possível. E então, do acorde menor inicial da tonalidade, se passa bruscamente ao acorde do segundo tom bemol maior com sétima, totalmente fora da tonalidade – na verdade uma dominante substituta que, por sua vez, conduzirá à dominante natural do tom. Por exemplo, Am, Bb7, E7.

O surgimento deste segundo acorde é muito inesperado (e normalmente ainda é apresentado com uma convenção sincopada que o antecipa ligeiramente ao tempo forte). A dissonância apresentada de chofre, sem nenhuma preparação, dá ao ouvinte a sensação de algo terrível iminente, em consonância perfeita com a letra. Entretanto, não se trata apenas de um acorde fora da tonalidade ou uma dissonância comum. O efeito tremendo deste segundo acorde se deve ao fato de ele manter, em relação à dominante, o intervalo mais dissonante da música ocidental, a quarta aumentada.

O intervalo de quarta aumentada (ou trítono) foi chamado em tempos medievais de diabolus in musica e terminantemente proibido antes do estabelecimento definitivo da tonalidade como a conhecemos hoje. Não por causas religiosas, mas sonoras mesmo: Os comprimentos de onda de sons separados por este intervalo quase nunca coincidem, o que causa enorme estranheza ao ouvido. No caso de Juízo Final, um acorde “natural” para a condução harmônica teria como baixo a nota Si, nunca a de Si Bemol. O acorde de Bb, meio tom abaixo, é exatamente o mais dissonante possível em relação ao caminho esperado, já que todas as suas notas estão igualmente deslocadas. É como se um terremoto tivesse descarrilhado a harmonia logo de saída. É assim que Juízo Final se inicia, com um ovo de Colombo de efeito espetacular.

Nelson assume o discurso de um profeta do Antigo Testamento – ou do apóstolo João, autor do Apocalipse. O que não deixa de estar em consonância com sua obra. Nelson é um dos autores mais trágicos do cancioneiro nacional, ao lado de Lupicínio Rodrigues e Adoniran Barbosa, todos tratando em seus sambas da tragédia do cotidiano. Em Juízo Final, ele apenas amplia sua noção de um destino inexorável, de casos particulares para toda a existência. A letra de Juízo Final é sucinta, mantendo em sua segunda parte a grandiloquência nas notas agudas. Nela, poder-se-ia dizer, está resumida a Lei e os Profetas, e Nelson ainda se permite uma discreta menção a uma expressão usada por Jesus, aquele que tiver olhos de ver, veja nos versos finais quero ter olhos pra ver / a maldade desaparecer.

Passemos agora ao segundo samba sobre o Fim do Mundo: As Forças da Natureza, de João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro. Foi composto e gravado pouco depois de Juízo Final, mas guarda diferenças com ele. Porém, mais impressionantes que as diferenças são as semelhanças. Este foi gravado primeiro por Clara Nunes em 1977 e acabou dando nome ao álbum.

E João, por sua vez, o gravou no álbum Vida Boêmia, em 1978.

As Forças da Natureza é, na prática, um desenvolvimento do tema de Juízo Final. Porém, acrescentando uma perspectiva, digamos, proto-ecológica ao entrar em mais detalhes sobre os acontecimentos, num espírito que é tanto relacionado com o Apocalipse cristão quanto a descrição de uma revolta da natureza contra quem a maltratou tanto. Em relação ao livro bíblico, possível até mesmo traçar algumas correspondências de texto:

Uma chuva de prata do céu vai descer / E as estrelas do céu caíram sobre a terra como figos verdes caem da figueira quando sacudidos por um vento forte. (Ap. 6, 13)

Quando o Sol se derramar em toda a sua essência / O quarto anjo derramou a sua taça no sol, e foi dado poder ao sol para queimar os homens com fogo. (Ap. 17,8)

Assim como tematicamente, As Forças da Natureza também desenvolverá mais os temas harmônicos e melódicos do que o samba de Nelson. Para começar, tem uma forma mais extensa e muito diversa das tradicionais primeira e segunda partes. Ao contrário, pode ser dividido aproximadamente em três partes e uma coda, com poucas repetições melódicas, mesmo quando a harmonia é a mesma. E mesmo esta harmonia vai seguir caminhos e utilizar recursos mais próximos da harmonia funcional, sem quebras radicais como o segundo acorde de Juízo Final, mas se permitindo certas sutilezas como fazer o tom variar entre menor e seu relativo maior (Por exemplo, Lá menor e Dó maior), conseguindo com isso mudanças de clima que vão do mais introspectivo ao mais exaltado.

O músico e pesquisador Luís Filipe de Lima, em seu livro Para Ouvir o Samba, estabelece critérios cuidadosos para descrever cada um de seus subgêneros, do samba amaxixado ao samba-enredo, da Bossa-Nova (sim, está incluída) ao pagode romântico da década de 1990. Ele classifica ambos os sambas em pauta na categoria pós-MPB (capítulo 14.1), que engloba tanto a produção feita por sambistas que se apropriou de algumas conquistas formais da MPB quanto a de sambistas da velha guarda como Cartola e o próprio Nelson, que foram redescobertas e revalorizadas à luz dessas conquistas. Neste sentido, é fundamental perceber que uma eventual maior complexidade de uma das composições não significa absolutamente que haja algum tipo de superioridade estética. Na verdade, o uso das fórmulas tradicionais do samba e da MPB poderia, ao contrário servir para tornar a canção banal e medíocre… Por outro lado, ao colocar ambas lado a lado, por mais que estejam próximas em termos históricos (e efetivamente as separam poucos anos), fica evidente a diferença entre elas: Nelson faz um samba nos moldes da tradição (o que inclui quebrá-la genialmente quando lhe convém), do tipo que alimentou a MPB; João e Paulo César Pinheiro fazem um samba que por sua vez se alimenta da estilização formal da MPB. Há uma continuidade entre eles que não é apenas estética, mas também histórica.

E isto ficará evidente ao analisarmos As Forças da Natureza e notarmos agora as semelhanças entre ele e Juízo Final – semelhanças que são também diferenças na forma de percorrerem os mesmos caminhos. As Forças da Natureza também se inicia com uma referência ao Sol – e com um salto de oitava! As duas primeiras notas de ambas as canções são exatamente as mesmas. Porém, enquanto no samba de Nelson a segunda nota se estende causticante na palavra Sol, no de João o Sol só surge na terceira nota, que desce suavemente um tom: Quan-do_o Sol… Assim, o Sol tem sua potência matizada – ao menos inicialmente. Até pode-se dizer que o movimento melódico vai reforçar o efeito da palavra derramar, logo adiante, fazendo com o que a luz solar se propague de forma menos direta.

Mas há um detalhe mais difícil de detectar que une as duas composições, justamente o uso do trítono, o intervalo de quarta aumentada, o diabolus in musica, na cadência harmônica. Assim como Juízo Final, As Forças da Natureza também tem dois acordes encadeados com esta distância entre eles. Mas outra vez, assim como no caso da melodia inicial, este encadeamento acontece de uma forma mais suave, tendo seu impacto reduzido. Aqui, trata-se da passagem que acompanha o verso Desafiando o poder da ciência (e de novo no verso Levar consigo o pó dos nossos dias). O que ocorre é que, quando oscila entre os tons de lá menor e dó maior, há acordes comuns que servem para fazer a passagem entre eles. Mas há também acordes de empréstimo que são úteis. Assim, a sequência harmônica C / F7 / B7 / E7 / Am faz a passagem de uma tonalidade para outra, mas a distância entre o Fá e o Si é justamente a que causa estranhamento no ouvido (se o leitor não tem conhecimento de harmonia, basta ouvir a passagem para perceber do que falo).

Isso se dá porque na verdade o acorde de B7 não é de nenhuma das duas tonalidades, e sim um empréstimo – a dominante da dominante do tom menor. Mas sua presença aí torna a melodia muito mais interessante – a curva na palavra ciência e depois em os dias chama imediatamente a atenção do ouvido, porém sem causar o choque do início de Juízo Final. Trata-se do mesmo intervalo, com função similar, porém usado de forma lateral na sequência da harmonia, de modo a reduzir seu impacto e torná-lo de um verdadeiro cataclisma, em uma coloração a mais, um diabolus domado afinal, ao menos in musica.

As Forças da Natureza reconta Juízo Final a seu modo, seguindo seus passos mas acrescentando em seu enredo uma visão do samba que já passara pela MPB – a mesma que escutava avidamente e reverenciava Nelson, assim como João Nogueira também fazia, é claro. Quando compostas e gravadas na década de 1970, a humanidade se considerava longe de qualquer consequência de suas ações destrutivas no planeta: aquecimento global, pandemias, elevação do nível do mar, tudo isso era matéria de ficção científica ou fanáticos religiosos. Hoje são realidade, e não dá para não pensar que Nelson Cavaquinho, João Nogueira e Paulo César Pinheiro avisaram. Para nosso consolo, seus sambas proféticos, ao final, descrevem um mundo onde o mal terá sido banido. Se Nelson não menciona a sobrevivência humana (ou o faz, sutilmente – ao menos a dele próprio), João e Paulo o fazem, relatando o desaparecimento das armas e dos homens de mal – possivelmente os que se denominam de bem. Só nos resta dizer amém.

O fascismo contra o fascismo

A ironia é uma das figuras de linguagem mais comuns e mais vilipendiadas, se não a mais. Em tempos de redes sociais, a estratégia de afirmar farsescamente o contrário do que realmente se pretende dizer tornou-se inclusive muito perigosa. A necessidade de ser conciso, aliada em geral à falta de entonação da escrita, provocam uma fácil descontextualização gerando mal entendidos e consequentes radicalizações de posição de parte a parte. Por outro lado, a ironia é também um recurso crescentemente usado no debate político por permitir a argumentação destrutiva, não propositiva. Ironizar o que o oponente diz sem apresentar alternativas é uma tática autoritária e, infelizmente, generalizada.

Mas a culpa não é da ironia, por certo. Ao contrário, fazer com que o discurso do adversário se volte contra ele próprio ao demonstrar seu absurdo é uma arma poderosa de argumentação e não necessariamente niilista. Além disso, embora seja também usada por defensores do autoritarismo que não ousam dizer seu nome, também já serviu em tempos de autoritarismo em todo o mundo para denunciá-lo escapando à sua detecção, atingindo o público ao voar abaixo de seu radar, ou acima da sua capacidade de compreensão.

Isto ocorreu e ocorre onde quer que regimes não democráticos estejam no poder, e ocorreu no Brasil mais de uma vez, em especial durante o período da ditadura militar entre 1964 e 1985. Há inúmeros exemplos de seu uso, mas possivelmente o mais lancinante, onde a ironia se realiza mais plenamente, seja a canção Cordilheira, de Sueli Costa e Paulo César Pinheiro, gravada por Simone em 1979, em seu álbum Pedaços.

Façamos justiça, Cordilheira é bem mais que um mero exercício de ironia. Será talvez mais apropriadamente a exacerbação de um exercício de empatia. Pois o que a canção faz é se colocar inteiramente no ponto de vista do algoz, de uma forma tão completa a ponto de causar dúvida a um ouvinte desavisado, pois não há pistas do contrário, não há a piscadela de olho marota que denuncie o estratagema. Ao contrário, Sueli e Paulo César (e Simone os acompanha não por ingenuidade, mas por compreensão) apostam na inversão total e absoluta do discurso para que este se denuncie por si só, e isto só é possível porque se trata de um formato complexo como o da canção, que envolve em si tanto música quanto literatura, e permite a interação entre ambas amplificando a linguagem de forma exponencial.

Chico Buarque, por exemplo, que foi useiro e vezeiro da ironia durante este período, em seu Fado Tropical não deixa de dar a sua piscadela, chegando a emular um sotaque lusitano. A ironia de Fado Tropical é de uma qualidade diversa de Cordilheira, propositalmente estabelecendo relações despropositadas (avencas na caatinga, alecrins no canavial): Chico, enquanto parece defender uma tese, a desqualifica metodicamente. Fado Tropical só não é uma canção humorística devido ao contexto de realidade em que se insere, e que é lembrada no intermezzo falado, em que Chico assume o ponto de vista do torturador, ainda que sem perder o tom farsesco. O contraste entre estas duas entonações do mesmo discurso são a deixa para que o ouvinte não se torne cúmplice do eu lírico da canção.

Cordilheira vai em outra direção. Sua ironia não é sarcasmo. Em vez disso, ela assume o ponto de vista do – e aqui a palavra se torna inevitável – fascismo sem meios termos, e aí está o que a torna perturbadora. Pois se o contraste entre a linguagem violenta e a melodia suave de Fado Tropical é mais um elemento de uma encenação, aqui não, aqui ela é perfeitamente congruente com o pensamento expresso, porque aqui descreve o fascismo como uma forma de ascese. A delicadeza musical de Cordilheira contrasta com sua letra para o ouvinte não fascista, mas do ponto de vista do fascismo elas estão em perfeita conformidade. A inversão de sentido promovida por esta incongruência formal entre as duas metades ultrapassa então a ironia, e se torna uma suave descrição do horror.

Pois é perfeitamente possível imaginar Cordilheira com uma letra romântica convencional. A melodia, em especial na parte B de uma forma bastante simples -uma vez a parte A e reiteradas vezes a B -, sugere uma espécie de realização sentimental ao ascender ao agudo e permanecer nele, estendendo-se emocionalmente, e promovendo a identificação entre ouvinte e cantor, entre emissor e receptor. Mas esta identificação, ou a sugestão de uma identificação que é comum no formato, é na verdade uma armadilha para a naturalização da letra, assim como a beleza apolínea de filmes como Olympia e O triunfo da vontade, de Leni Riefenstahl, é o veículo para a apresentação da ideologia nazista.

Em Cordilheira, uma questão aparentemente apenas formal tem no entanto um efeito muito congruente com a dicotomia que governa a canção. A harmonia começa num tom para sutilmente, ainda durante a primeira estrofe, que é a parte A, passar para o tom da subdominante sem um ponto específico de de passagem de tom. A consequência desta modulação é que o acorde que inicia a canção e esta primeira estrofe como sendo o acorde de tônica, de descanso e estabilidade, encerra esta mesma estofe como sendo o da dominante, tornando-se portanto um acorde instável – e a segunda estrofe, já na parte B, se inicia com o antigo acorde de quarto grau agora promovido a tônica. Esta inversão hierárquica, que se dá sem alarde e mal é notada objetivamente pelo ouvinte, caminha pari passu com a inversão de sentidos realizada pela letra. Ao estabelecer uma tonalidade apenas para deixá-la de lado logo depois e passar o resto da canção tratando a antiga tonalidade como fonte de desequilíbrio, a harmonia de Cordilheira acompanha a descrição da letra de um mundo virado ao avesso, em que as máximas do livro 1984, de George Orwell, são realidade: Guerra é paz, Liberdade é escravidão, Ignorância é força.

Dois trechos da letra merecem atenção especial pelas contradições intrínsecas que se fundem em novos conceitos e os apresentam como uma espécie de novo padrão. Um, o pseudo-refrão:

Eu quero apenas ser cruel naturalmente
E descobrir onde o mal nasce e destruir sua semente

A noção de um uso da crueldade contra o mal é evidentemente incompatível. A não ser que o mal seja o contrário da crueldade. a apresentação da crueldade como aquilo que é, ou deve ser, natural, é chocante per se, mas ao ser imediatamente sucedida pelo que pretensamente é seu objetivo – destruir o mal na semente – ela se justifica e se apresenta não como um mal necessário, mas como o bem em si.

O outro trecho encontra-se dividido em dois, em partes diferentes da letra. São os versos

Eu quero crer na solução dos evangelhos
Obrigando os nossos moços ao poder dos nossos velhos

E logo adiante

Eu quero ver a ascensão de Iscariotes
E no sábado um Jesus crucificado em cada poste

As duas menções religiosas de Cordilheira trazem também uma antinomia. Pois qual seria a solução dos evangelhos? Amor? Perdão? Nada disso. A inversão da letra de Paulo César Pinheiro é cuidadosa: se é Judas quem ascende aos céus, é Jesus que é malhado no sábado de Aleluia. A solução dos evangelhos é, portanto, o que efetivamente ocorre neles: o sacrifício causado pela traição, e portanto a glorificação do traidor que propiciou este sacrifício. Numa palavra, a morte.

Pois, em última instância, é este o tema de Cordilheira: a pulsão de morte. Porém, apresentada na visão edulcorada de seu hospedeiro, o ponto de vista do psicopata. A vertigem do poder, vertigem em sua definição enciclopédica, uma falsa sensação de movimento comum na altitude. A sensação das cordilheiras. A vertigem do poder que se move para que tudo permaneça onde está. E do outro lado, o apagamento daquele que sofre suas consequências.

Cordilheira tem em sua própria constituição e desenvolvimento uma tensão contida que não chega a explodir, mas que vai num suave crescendo de confiança ao longo de sua exposição, primeiro apenas ao piano e voz; depois na modulação para meio tom acima não apenas aumentando a tensão mas também promovendo literalmente a ascensão, digamos, moral, que tenta-se impingir; daí a segunda parte com um conjunto convencional incluindo violão, baixo e bateria (a ficha técnica do álbum infelizmente não nomeia os músicos); para enfim a volta das cordas na coda, em que versos salteados da canção vão sendo repetidos numa espécie de reiteração em outro plano, não mais explanatória, mas celebrativa: a ascensão está em curso, a ascese pela violência está prestes a se completar na mente e no coração. Quando então ocorre a autotraição.

O rufo de caixa de guerra que se introduz em meio aos versos da coda levanta o véu róseo para que se vislumbre a verdadeira face do discurso enunciado pelos últimos quatro minutos e se dê a ele seu verdadeiro nome. Evidente demais? Voltando à comparação com Fado Tropical, mesmo nesta em que a ironia é bastante óbvia, há o contraste necessário entre o discurso algo ridículo da parte cantada com o bem mais ameaçador da parte falada, que traz à tona as palavras proibidas – torturar, esganar, trucidar – ainda que contrapostas a um fingido arrependimento. Em Cordilheira a arquitetura é outra, o estratagema da cooptação está aplicado com tal grau de verossimilhança que o arranjador (Nelson Ayres? Gilson Peranzetta?) considerou indispensável evidenciar o que está apenas latente em toda a canção.

Ao final de Cordilheira, o horror mostra sua face verdadeira apenas por alguns segundos, após o acorde final, um terceiro grau maior com sétima apontando para fora da tonalidade, para o real desequilíbrio, a desagregação. O que Cordilheira faz é emular corajosamente o fascismo para além da ironia, revelar suas máscaras e subterfúgios forçando-o a se olhar no espelho sem eles, e assim confrontá-lo no terreno onde pode vencê-lo, o da linguagem. É uma canção assustadora sob sua aparência tão plácida, mais assustadora por ser tão plácida, e ainda mais apavorante por ser, mais de 40 anos depois, tão necessária e atual.

————————————————

Meu agradecimento ao professor Pauxy Gentil-Nunes por me lembrar desta canção.

Guinga e a última canção do beco

A música popular brasileira hoje está pobre e nivelada por baixo. Pobre de assunto, de letra, de melodia, de harmonia, de arranjo. É aquilo que a indústria, em crise, tentando sobreviver ao naufrágio, produz. É feio. Não é dessa água que a gente vai beber. Não é que as cantoras ou os cantores vão mal, mas é um cenário que não incentiva a busca do conhecimento, da qualidade ou da consciência do que você faz.

A declaração de Mônica Salmaso, dada ao jornal O Globo na entrevista de divulgação de seu álbum Corpo de Baile, causou reações contraditórias, indo do limite do desaforado, ao listar nomes de compositores atuais de qualidade para sugerir a ela, a reclamações mais ou menos genéricas sobre o padrão da música divulgada hoje nos meios de comunicação de massa, em especial as rádios, por décadas o grande meio de divulgação de música no Brasil. A imbricação, na mesma frase, de dois assuntos bem diferentes porém igualmente complexos (a produção composicional da música brasileira e seus padrões estéticos em mutação; e a mutação e o estilhaçamento igualmente acelerados dos meios de veiculação, divulgação e comercialização desta produção), praticamente impediram um consenso, porém geraram debates muito ricos.

Destes, destaco dois. Um, o comentário do cantor e compositor Sérgio Santos, reproduzido no blog Massa Crítica MPB, que, entre muitas ponderações, lembrava algo óbvio, mas que na pressa escapava de muitos: Mônica divulgava um novo trabalho, e este sem dúvida falaria por ela melhor que declarações pinçadas de uma entrevista e transformadas em manchete. E outro, o artigo de Paulo da Costa e Silva em seu blog Questões Musicais. Estes dois comentários me servirão de ponto de partida para tentar levar adiante o entendimento do assunto. E começo seguindo o conselho de Sérgio, para mais à frente aproveitar bem mais de seu artigo e do de Paulo.

Rancho das Sete Cores – de Guinga e Paulo Cesar Pinheiro, com Mônica Salmaso.

O Rancho das sete cores é integrante do álbum de Mônica Salmaso Corpo de Baile, inteiramente voltado para a parceria de Guinga e Paulo César Pinheiro, ocorrida durante as décadas de 1970/80. A única canção deste repertório que obteve alguma difusão foi o Bolero de Satã, gravado por Elis Regina – o que, por algum motivo, não foi suficiente para Guinga angariar a popularidade conseguida por diversos outros autores lançados por ela, como Milton Nascimento, Tim Maia e João Bosco. Durante a década de 1980, Guinga foi gravado em alguns álbuns como o de Miúcha em 89 (Non Sense e Porto de Araújo, ambas gravadas por Mônica neste álbum), teve Senhorinha como tema de novela na voz de Ronnie Von, mas apenas na década de 1990, já desfeita a parceria com Paulo César Pinheiro e iniciada a com Aldir Blanc, Guinga obteve reconhecimento na gravadora Velas, fundada por Ivan Lins e seu parceiro Vitor Martins especialmente para lançar Guinga (lembro de anúncios de seu álbum de estréia na TV em que Ivan dava seu testemunho pessoal) e mais tarde responsável pela aparição nacional de nomes como Lenine e Chico César. Em seus álbuns subsequentes, Guinga deu sua versão para algumas delas, como Saci e Passarinhadeira no segundo álbum, e a própria Porto de Araújo em Casa de Villa. Ilana Volcov e Simone Guimarães também chegaram a gravar algumas (minha crítica do ótimo Bangüê, da Ilana, está aqui). Mas o grosso do repertório permanecia inédito ou próximo disto.

Ou seja, todo o álbum Corpo de Baile é um resgate. Resgate de uma obra específica, uma espécie de elo perdido da canção brasileira, de chamada linha impressionista da composição, que parte da influência de Debussy sobre o jovem Villa-Lobos, deste (não só) sobre Tom Jobim e estes dois estendendo copas frondosas sobre toda uma geração de músicos, dos quais Edu Lobo e Chico Buarque são figuras proeminentes (e Guerra Peixe pelo outro lado). E na ponta destes ramos, Guinga. Mônica, portanto, traz a público um pedaço de um caminho que foi considerado a jóia da coroa da música brasileira, e que hoje enfrenta ao questionamento de ter se transformado em um beco sem saída.

Explico, e simplifico, citando o artigo do Paulo da Costa:

Entendo perfeitamente quando Mônica Salmaso diz que o que tem sido produzido hoje “é feio”: ela tem em mente um critério muito específico, extraído de um conjunto determinado de obras e autores do passado, de uma das tradições musicais brasileiras. Tal tradição inclui e exalta nomes como Villa-Lobos e Tom Jobim na mesma medida em que exclui ou diminui outros. É guiada pela busca de uma beleza lírica, contemplativa, associada com grande controle e definição formais e seu aspecto é clássico: tende mais para o lado do equilíbrio, da clareza e da exatidão.

A tradição específica a que Paulo se refere, para muitos, consiste simplesmente na MPB, ou ao menos no seu núcleo duro, e baseia-se em dois pilares: as conquistas da Bossa-Nova, síntese da modernidade brasileira em harmonia avançada, ritmo e canção, e a extensão de seus paradigmas a todo o Brasil. A Bossa toma o samba, tornado o ritmo brasileiro por excelência pela difusão radiofônica partida do Rio de Janeiro, e o estende do morro para o asfalto. O samba, criado junto com a urbanização da virada do século XX e tendo influenciado inúmeros ritmos regionais, do cateretê ao coco, torna-se também o símbolo da consolidação da urbe e deste novo Brasil. Porém, num segundo passo, os mecanismos e processos utilizados para a criação da Bossa Nova são aplicados também ao coco e ao cateretê, e ao baião e à toada, na formulação de um repertório em que a harmonia estendida, os arranjos sofisticados e a poesia moderna que a integram trouxessem para a cidade também a imensa diversidade cultural brasileira, quase integralmente forjada ao largo da urbe ao longo de mais de quatro séculos.

Esta fusão, ou talvez seja adequado dizer atualização, do imenso e profundo Brasil rural ao paradigma crescente da cidade foi uma das melhores chaves para a compreensão do fenômeno chamado MPB por algumas décadas. E no entanto, este paradigma começou a apresentar fissuras praticamente no seu nascedouro. A primeira delas, podendo ser considerado mãe de todos os outros, sendo a Tropicália, que, ao invés (ou melhor dizendo, ao lado) de recorrer ao manancial do folclore, foi ouvir rock, voltando-se (também) para fora, não (apenas) para dentro. Mas que fique claro que não se trata unicamente de uma disputa entre ritmos autóctones ou alienígenas. Ocorre que os procedimentos de realização musical propostos pelos tropicalistas fugiam à proposta bossanovista que naquele momento tentava cumprir em outra encarnação o projeto de integração nacional de Getúlio Vargas, agora sob as asas militares. A Tropicália queimava etapas buscando uma integração entre urbes, indo a Londres (até mesmo via exílio de Caetano e Gil, tiro no pé dos militares), a Nova Iorque, à música de vanguarda européia e aplicando-as em novas canções, que em vez de trazerem o campo, origem da maioria dos moradores das novas cidades via êxodo (no caso de Brasília, paradigma da urbanização, todos eles), para a cidade, preferia levar a cidade a outras cidades.

Porém, a urbanização do Brasil não parou. Em algum momento no meio da década de 1970, a parcela de população vivendo nas cidades tornou-se maior que a rural. Concomitantemente, uma cultura urbana ia fermentando nas sucessivas e cada vez maiores gerações de jovens nascidos na cidade. A música que trazia as tradições de seus pais e avós ia tornando-se paulatinamente velha, e mesmo seu processo criativo, embora de uma força e uma capacidade de desdobrar-se em novas  produções de altíssima qualidade, ia vendo sua modernidade ser deixada para trás. Indo buscar cada vez mais longe (no tempo ou no espaço) as fontes primeiras de sua criação, e explorando seus processos até os graus extremos, o resultado é uma música progressivamente mais e mais sofisticada, mas também progressivamente saudosista e evocativa daquilo que a motivou, capaz de alcançar níveis artísticos sublimes como a fruta no galho mais alto da árvore, mas sem a perspectiva de ir muito além  por aquele caminho.

(Um parêntesis necessário. A tese que defendo aqui é sem dúvida uma generalização. Eu mesmo posso apontar dezenas de músicos que admiro profundamente e que se encontram exatamente, ou em parte, nesta vertente da música brasileira que descrevo, músicos com obras de uma vitalidade espetacular, o que demonstra que sim, ainda há aonde ir, pois os caminhos da criação são sempre surpreendentes. Da mesma forma, decretar o fim inexorável de nossas tradições rurais seria de uma cegueira sem par, pela sua igualmente insuspeita capacidade de se reinventar, inclusive indo parar na cidade juntamente com seus habitantes. Faço aqui uma leitura propositalmente generalista para me referir a um trabalho em particular, centralizando minha atenção em uma canção particular deste trabalho, e que a meu ver simboliza exemplarmente a tese que defendo. Mas tenho consciência da quantidade de exceções possíveis a esta regra, e no fundo dou graças a Deus por elas. Dito isto, sigamos.)

O Rancho das sete cores é uma canção emblemática em todas as suas escolhas. A começar pela combinação exata entre o ritmo descrito em seu nome, parceiro principal do samba na formação do carnaval carioca, e sua temática. Mônica explica no vídeo da gravação da música que trata-se de uma marcha de um bloco de senhorinhas que ficam relembrando naquele momento de saída do bloco os tempos… a roupa já está meio puída, assim, os pares já não estão mais ali… a descrição de um mundo perdido, a visão fugaz de uma paisagem que se esvanesce aos poucos, mas que se teima em recordar e viver como se ainda ali estivesse. Uma decadência que é exatamente a do gênero marcha (e aí a polissemia da palavra Rancho, referindo-se tanto ao cortejo carnavalesco quanto ao ritmo que o embala, vem a calhar), da qual já falei em um artigo do blog, focando especificamente nas marchinhas de carnaval. Se estas ainda sobrevivem dificilmente nos novos blocos – que no entanto não conseguem emplacar novas composições e recentemente passaram a recorrer à adaptação de quaisquer outros gêneros -,  os ranchos propriamente ditos foram praticamente extintos durante a década de 60 – exatamente o momento de gênese da chamada MPB.

Existe uma analogia óbvia aqui. O Rancho das sete cores, e a obra de Guinga como um todo, inscreve-se como a ponta de lança da corrente da música brasileira que descrevi acima. Mas mais que isto, ele soa como uma microcosmo desta corrente: uma elaboração extremamente refinada de uma manifestação popular, aproximando-a decididamente da música erudita (no sentido de utilizar seus procedimentos). A melodia do Rancho é rebuscada desde suas primeira notas, um intervalo de nona ascendente particularmente difícil. Ao final desde vídeo, Mônica aparece tirando a dúvida de uma passagem com o clarinetista, e mesmo depois que ela se diz segura das notas a melodia que inicia a segunda parte não fica inteiramente nítida, tendendo a ser retificada em direção a uma escala convencional. Não à toa, diversas canções de Guinga, tanto em gravações alheias quanto nas sua próprias, são cantadas dobrando a melodia com o solo do violão do autor, como que explicitando o fato de que são melodias no limite entre os vocal e o instrumental. Este imenso requinte tem um preço, e este é o afastamento, não apenas semântico, mas efetivo, do meio que gerou o gênero desenvolvido. O que significa que, mesmo que os ranchos hoje continuassem populares, seria quase impossível que algum adotasse uma marcha como esta, pela impossibilidade técnica de ser entoada em coro. O Rancho das sete cores é, portanto, em sua reminiscência, um simulacro do original que se perdeu, mas, ao contrário do simulacro diluidor, um simulacro refinado pela memória.

Guinga então, herdeiro de uma tradição elaborada e com raízes fundas no cruzamento da música de concerto com as variadíssimas manifestações musicais populares brasileiras, sintetizadas no formato da canção, juntamente com um dos maiores representantes da condução da palavra lado a lado com a melodia, a transfiguração da fala em música, compôs uma ode ao tempo passado em que se projetava a fusão entre culturas, em que uma integração nacional era vislumbrada ao longe no carnaval, utilizando as formas e técnicas desenvolvidas anos depois, quando esta fusão se deu num pacto que se consolidou como o espelho da música nacional. Porém, por uma razão obscura (que mereceria um outro artigo), esta canção permaneceu desconhecida, até que uma cantora a resgata numa gravação primorosa, em que, em suas próprias palavras, os músicos convocados se espantaram por gravarem todos juntos no estúdio, que nem antigamente! São contínuos resgates de resgates, lembranças de lembranças, refinamentos de refinamentos.

E o Rancho então, e todo este repertório, carrega em si o acúmulo da beleza apolínea destes refinamentos contínuos de que ele se faz continuador. Enquanto este ciclo se repetia, a cidade mudou, o rock chegou, o rap tomou espaço, vanguardas musicais se sucederam e se dissiparam, a MPB tornou-se isto, aquilo, tudo, nada, dividiu-se em mil caminhos a partir de sua cisão inicial da Tropicália, precedente perigoso e riquíssimo que gerou quase infinitas outras possibilidades de desenvolvimento. A vertente impressionista, para lhe dar um nome entre tantos possíveis, não deixa de ter sua faceta moderna, haja vista a parceria posterior de Guinga e Aldir Blanc que lhe deu visibilidade, com um lirismo muito diverso e recheado de referências contemporâneas e urbanas. Mas mesmo esta faceta, de uma forma escancarada ou subreptícia, tira sua imensa força de um passado profundo de chorões – outro gênero datado dos primórdios de nossa urbanização. Por mais que, do ponto de vista dela, outras vertentes possam ser pobres ou feias, não se trata de lhe tirar o valor por isto, e sim regalar-se com seus frutos maduros, com seu vinho envelhecido.

Como João Gilberto, após a revolução da Bossa Nova, progressivamente recorreu a um repertório mais e mais antigo em suas gravações posteriores, a enorme vitalidade do Rancho vem de um passado profundo que a alimenta. Quanto mais profundo o mergulho, mais preciosa a pedra e mais burilada a lapidação. No entanto, o veio original pode estar em vias de se extinguir. Mas enquanto isto não acontece, a vitalidade permanece presente. Ou mudando a metáfora, esta vertente da música brasileira chamada por alguns de MPB pode estar num beco sem saída. Mas como é bonita a vereda que ela percorre.

Lá vem

as pastorinhas do Rancho das Sete cores

Querendo encontrar outra vez seus amores

Que saíam no Resedá

Que dançavam nos Azulões

Cada uma buscando um par

Pra formar os cordões

E eram guardas, garçons, gigolôs,

Estudantes, marujos, ciganos, cantores,

Vestindo pierrôs e arlequins sedutores

Que brincavam no Dois de Ouro

E na Kananga do Japão

Cada uma com seu namoro e acenando com a mão

Até hoje elas tem

Saudade do cordão

 

São colombinas iguais às mimosas cravinas

Trazendo o arco-íris no seu estandarte

Jogando beijos de amor

Aos saudosos pastores da Flor do Abacate

E elas vêm vindo inocentes

Jograis decadentes mas chamando a gente

Pruma fantasia

Prum carnaval de esplendor

E quem não se acabou um dia?

De três raças tristes para três reis

A expressão de que o Brasil é formado a partir de três raças tristes, oriunda de um poema de Olavo Bilac e retomada em 1928 no livro Retrato do Brasil, do modernista Paulo Prado, ganhou um viés extremamente negativo a partir deste. Prado chega a dizer que quando tudo está errado, o melhor corretivo é o apagamento de tudo que foi mal feito, deixando no ar a possibilidade de defender a eugenia.

No entanto, uma das coisas que mais gosto hoje de assistir numa Copa do Mundo, e isto desde criança, é a diferença entre a seleção brasileira e as outras. Não falo de futebol. Falo do fato de no time canarinho haver gente de todo tipo, toda cor – e principalmente, todas as gradações. Se vemos o time da França, por exemplo, há um monte de branquelos e um ou outro retinto – fora Zidane, ainda assim de ascendêcia claramente argelina. No japonês, a mesma coisa: muitos amarelos, e um ou outro brasileiro naturalizado. Só no nosso time há brancos, negões, mulatos de todo tipo e índios de mistura com todos. Acho, sempre achei, isso o máximo, e não duvido, pegando uma carona marota com as teorias racialistas e tirando a conclusão contrária de Paulo Prado, que exatamente esta mestiçagem seja a responsável pelo nosso sucesso no futebol.

Claro, não tenho visão utópica sobre o assunto, e percebo a distorção que existe quando o Ronaldo Fenômeno se diz branco. Mas percebo também a grandeza épica de um povo em formação de que falam Caetano e Gil em Haiti. De certo modo, nossas três raças (que nem raças são etc.) foram mesmo tristes: degredados (e às vezes degradados) brancos, escravos negros e dizimados índios – mais de seis milhões, nas contas de Jorge Benjor – tentam há 500 anos mudar o rumo inicial tenebroso desta história. Apenas, hoje parece haver mais perspectiva de se conseguir.

Mas o que isto tem a ver com música? É que, assim como no futebol esta mestiçagem é positiva, também foi, e muito, responsável pela imensa riqueza de nossa música popular. E então, em homenagem ao novo ano e novo governo que se iniciam, etapas de nossa formação a serem percorridas, três canções sensacionais, representando estas três matrizes que continuam se fundindo no laboratório eugênico do Brasil, cada um com sua visão da chegada por aqui. Em comum, a riqueza rítmica fabulosa de cada uma, através de que as tristezas iam e vão tentando ser ressignificadas. E também os trabalhos de pesquisa profundos realizados por cada compositor.

Chegança – Antônio Nóbrega – um caboclinho, ritmo carnavalesco tão acelerado que se aproxima do compasso unário, típico de algumas manifestações indígenas. O caboclinho é talvez a dança mais antiga do Brasil – seu primeiro registro é de 1584. E também uma música de guerra, representada no festejo. Arco e flecha são usados na marcação do tempo. Perfeito para descrever a chegada dos portugueses do ponto de vista dos habitantes originais.

Ganga-Zumbi – Sérgio Santos – A canção é sobre a morte de Zumbi e sua ascenção ao panteão dos mitos. O trabalho de pesquisa de Paulo Cesar Pinheiro para a letra foi tão fundo que precisou de glossário no encarte do álbum Áfrico. Francis Hime comenta, e eu não poderia dizer melhor:

(…) é interessante como Sérgio trabalha o rítmo, um elemento musical que normalmente é associado à alegria, e que aqui se relaciona com vários elementos: de sensualidade, de nostalgia, de tristeza ou até mesmo um clima mais reflexivo. E que às vezes explode numa atmosfera efusiva, dançante! (…) Em Ganga-Zumbi, é interessante o contraste entre a melodia linear e o ritmo frenético, ora em 5/4, ora em 4/4, e também a maneira como este canto liso e expressionista se descola do acompanhamento transbordante do violão, do piano e do sax.

E o próprio Sérgio Santos conta sobre o álbum:

As músicas não têm um ritmo definido. Não seria simples gravá-las. Não poderia entrar no estúdio e dizer: vamos tocar, isso é um samba, ou isso é um baião. As conduções rítmicas eram, em alguns casos, misturas de alguns ritmos. Em outros, uma mesma música podia ser tocada como ritmos diferentes. E algumas outras músicas tinham ritmos que nem existiam, precisamos inventá-los.

Gente que vem de Lisboa – Tavinho Moura – É engraçado como a música portuguesa ficou marcada no Brasil de forma simplista e pitoresca, como se fado e vira fossem suas únicas possibilidades. A influência portuguesa (ou européia, mas via Portugal) se estende pelas modas de viola, toadas, rancheiras e muitas outras possibilidades, que incluem ou permitem os compassos quebrados característicos do Tavinho. Esta é uma cantiga de marujada, festividade de raizes ibéricas misturadas, que celebram as conquistas marítimas, mas aqui servem também a uma ponta de crítica:

Ó meu mestre, contramestre, como posso navegar
Se nós não temos rota nem agulha de marear (bússola)?
(…) Ó meu mestre, contramestre, por aqui nada mudou.

Mas mudou, e segue mudando, embora às vezes tão imperceptivelmente que mal notemos. E vamos nós ao próximo passo. Feliz 2011 para todos.

Mais duas coisas: Sérgio Santos canta no coro da música do Tavinho  Moura, coisa que nunca havia notado até selecionar estas músicas para o blog. Sintonia fina entre eles.

E, como já dito no título, a referência aos que também não eram três, nem reis, talvez nem magos, e que visitaram a criança recém-nascida. Dizem que um era negro. Pois aqui no blog, outro era índio. E tenho dito.

De peixes e peixinhos

O que não falta no mercado hoje são filhos de cantores, compositores, instrumentistas, que seguiram a profissão dos pais. Nada mais natural, por um lado. É algo que me lembra as associações de ofícios da Idade Média, em que os artesãos passavam suas profissões adiante por gerações – e o trabalho com arte é sem dúvida um ofício artesanal ainda hoje, mesmo quando pensado para ser consumido por uma massa anônima e desconhecida, o que é uma de suas contradições inerentes.

Por outro lado, é algo que não deixa de me incomodar (em parte, claro, por eu não ser filho de ninguém famoso…), pela quantidade de filhos de músicos que não conseguiram nunca sair de baixo da sombra das obras dos pais – o que também não deve, ou não deveria, ser nada fácil para eles. Porém, noves fora os que abertamente tem carreiras fabricadas, e dos quais me eximo de falar, há casos dos que até tentaram se libertar desta sombra em suas carreiras, mas não conseguiram mostrar qualidades próprias que fossem superiores às semelhanças com seus predecessores, fossem físicas, vocais, ou de estilo.

Lembro bem quando Maria Rita, filha de Elis Regina e do grande pianista e arranjador Cesar Camargo Mariano, surgiu na mídia, apadrinhada por Milton Nascimento. Houve uma comoção no país, não exatamente pelo seu trabalho, ainda incipiente, mas pela semelhança da voz dela com a da mãe. O primeiro álbum, e também o segundo, seguiram trilhas de repertório próximas dos de Elis, e até a escolha de compositores novos, em vez de afastá-la, aproximava, já que a mãe fazia o mesmo – inclusive com o próprio Milton. A coisa chegou a ponto de o cantor Lobão ter dito em entrevista que assistia o maior fenômeno de necrofilia da história do Brasil. Talvez tenha sido por isso que Maria Rita, a partir do terceiro álbum, tenha enveredado por um caminho diferente, cantando sambas: para firmar uma carreira longe da pecha de filha da maior cantora que o país já teve.

Já Diogo Nogueira não parece ter constrangimento com a sua filiação. É filho do grande  sambista João Nogueira, de excepcionais composições. Seu primeiro álbum, de 2001, chamava-se Um sonho através do espelho, em referência ao álbum Espelho às canções Espelho e Além do espelho, de seu pai. Porém, curiosamente, este álbum é ignorado na discografia oficial de seu site.

Sendo assim, considere-se que Diogo foi lançado por um CD/DVD ao vivo – bastante cacife para alguém que não tinha um repertório gravado. Gravou vários sambas do repertório do pai, e composições novas, algumas com sua participação na autoria. E seu “primeiro”  CD de estúdio, então, tem nada menos que uma parceria de Ivan Lins e Chico Buarque, Sou eu, que foi direto para a trilha da novela e para as rádios.

Sou eu – Diogo Nogueira, com uma participação pouco perceptível de Chico Buarque.

Sou eu conta a história do sujeito que leva a moça para o samba, atura que ela jogue charme para todos os lados, com o consolo de que no fim da noite será ele seu acompanhante. É uma situação dúbia, em que não fica claro se o protagonista é um cara de sorte ou um fraco que não é respeitado pela namorada. Sendo cantado na primeira pessoa, é óbvio que o refrão será um meio de tentar transformar a situação embaraçosa em contação de vantagem. Mas há um detalhe na harmonia de Ivan Lins que contribui para solapar este grand finale: os acordes do refrão não se resolvem, escorregam de dominante em dominante e impedem que o “sou eu” repetido na letra se transforme em afirmação peremptória. Fica sempre a impressão de que esta assertiva tão firme na verdade é usada para disfarçar a insegurança de quem não sabe se é namorado ou chofer da moça em questão.

Por isso mesmo, não me agrada particularmente o fim da gravação do Diogo, em que ele coloca cacos na letra e se empolga na tiração de onda. Dizendo coisas como “modéstia à parte” e se intitulando “o rei do pedaço”, ele acaba com esta ambiguidade que é o grande trunfo do samba, recusando o papel do sofrido algo humorístico, que é comum na obra de Chico (em Ela é dançarina e Até o fim, por exemplo), em favor de um papel de malandro que é bem mais pobre. Fica a impressão de que Diogo não entendeu perfeitamente o espírito da coisa.

Mas o que mais me chama a atenção neste samba não é isto. O samba Sou eu é todo baseado em um motivo melódico de seis ou sete notas descendentes, dependendo da frase da letra, que pode ser ouvido em “Pra quem que ela arrasta asa?”, por exemplo, além do refrão. Acontece que esta é a mesma frase melódica, com uma divisão rítmica um pouco diferente, que serve de base para uma conhecida composição de João Nogueira.

Eu heim, Rosa! – João Nogueira, do álbum Parceria, com Paulo Cesar Pinheiro

Esta gravação com o próprio João pode não ser a melhor para perceber a semelhança, pois, já sem a agilidade vocal de outros tempos, ele malandramente aplaina a melodia descendente de “Se manca, segura essa banca de escrupulosa”, só apresentando a frase original ao cantar a primeira estrofe. Mas a gravação de Elis Regina deixa clara a semelhança. Em Eu, hein, Rosa!, o motivo melódico aparece na frase que já citei, mas também, reduzido para cinco notas, em frases como “quando precisar de mim”, ou estendido em “apelar pra ignorância é uma coisa indecorosa”

Eu heim, Rosa! – com Elis Regina, ao vivo

Muito bem, e daí? Será que é proibido fazer sambas baseados em melodias descendentes, apenas porque João Nogueira fez um? Imaginar que Ivan Lins tenha feito uma melodia propositalmente parecida com a de João para Diogo me parece absurdo. A hipótese de que Ivan tenha se influenciado involuntariamente pelo fraseado do pai ao compor para o filho já não me soa tão despropositada.

Mas o essencial nesta semelhança, sem dúvida, não é culpabilizar compositores ou cantores, e sim perceber o quanto esta semelhança pode ser utilizada numa estratégia de marketing, e o quanto esta utilização pode chegar a extremos de detalhe – como uma linha melódica. Quando Maria Rita se lançou cantora, a identificação com o mito que é sua mãe foi explorada cuidadosamente, fosse ou não confortável para ela – e nem sempre parecia confortável, sendo descartada quando a artista amadureceu – ou quando deixou de ser lucrativa. No caso de Diogo Nogueira, esta identificação está sendo feita de forma mais suave, guardadas as proporções entre Elis e João Nogueira, e Diogo parece bem mais à vontade. Talvez ambos consigam firmar carreiras de real significância na música brasileira, no sentido de apontar caminhos, e escapem da comparação com seus pais. Boa sorte para eles. Graças ou apesar de seus empresários.