Sidarta era um príncipe, herdeiro do trono da casta de seu pai em Kapilavastu, no sopé do Himalaia. Um sábio ermitão das redondezas, ao ver o recém-nascido, fez a seguinte profecia: se ele permanecesse no palácio após a juventude, seria um grande e respeitado rei. Porém, se ele decidisse abandonar a casa de seus pais, seria um iluminado, salvador da humanidade.
A despeito da profecia gloriosa, seu pai pretendeu que ele permanecesse consigo e mantivesse o reino familiar unido. Mesmo depois de casar aos 16 anos e ter um filho, não podia deixar as dependências do palácio. Porém, Sidarta permanecia insatisfeito ao se considerar um prisioneiro nos limites demarcados pela família, e resolveu explorar o mundo, fazendo excursões secretas durante a noite, acompanhado apenas por um servo fiel, e conheceu o vilarejo tal como era, sem os enfeites dos dias de festa, e com as pessoas comuns enfrentando os problemas do dia-a-dia.
Na primeira saída, ele deparou-se com um velho, cabelos e barbas brancas, rosto enrugados, andando com dificuldades, auxiliado por uma bengala. Sidarta assombrou-se. Nunca havia visto um velho. O servo lhe explicou que todas as pessoas um dia se tornam velhas e perdem suas forças, sendo descartadas do convívio social. Na segunda saída encontrou um homem muito doente, com a pele coberta de feridas que atraíam moscas e a expressão de dor e sofrimento. O servo informou que a doença era algo que acontecia com muitas pessoas, com certa frequência, e ninguém estava a salvo. E finalmente, na terceira saída, Sidarta passou por um cortejo fúnebre. e com isto foi apresentado à morte. Voltou para o palácio apenas por um curto período. Logo decidiu deixar a casa de seu pai para investigar as razões do que vira. Foi o início de sua caminhada rumo à iluminação.
A história de Sidarta, que pode ser lida por inteiro aqui de onde resumi apenas uma pequena parte, se dá no século V ou VI antes de Cristo. Já no ano de 1968 depois de Cristo, um rapaz chamado Paulo César contou uma história insuspeitamente análoga:
A primeira gravação de Coisas do mundo, minha nega, no primeiro álbum solo de Paulinho da Viola, é emoldurada por um arranjo excessivo de cordas e redundante e estridente de metais. Mas o samba já está inteiro ali. Paulinho, voltando para casa para encontrar sua nega, tem três encontros: com Zé Fuleiro, que lhe falou de doença, falta de amor e dinheiro e lhe pediu algum emprestado; com Seu Bento, bêbado contumaz de cair e dormir na sarjeta; e com um morto anônimo, um corpo. E três reações diferentes de Paulinho: para o primeiro, ele usa o violão para zombar de seu sofrimento; no segundo encontro, o usa para acalentar, cheio de empatia; e no terceiro, admite a impossibilidade de abarcar o que vê com seu samba, e escolhe calar-se. O paralelo com o passeio de Sidarta, a caminho de iniciar sua jornada de iluminação, é patente. Com algumas diferenças. A principal é que Sidarta se distancia de casa, e Paulinho retorna a ela.
A estrutura de Coisas do mundo, minha nega é a do samba clássico, primeira e segundas, mas com uma variação: a primeira não é sempre exatamente a mesma. Se as três segundas correspondem aos três encontros, as quatro primeiras partes, iniciadas com o mesmo verso, têm por sua vez uma espécie de evolução do assunto. A cada uma Paulinho retoma um fio condutor interrompido pelas histórias e avança de uma postura culpada inicialmente (Na boca as mesmas palavras / No peito o mesmo remorso) para uma de apaziguamento (Guarda bem minha viola / meu amor e meu cansaço) e humildade (Querendo aprender contigo / a forma de se viver). Há um sutil desenvolvimento, como se, a cada história rememorada, Paulinho aprendesse algo com ela também. Como uma versão rio de Heráclito, que nunca é o mesmo a cada vez que mergulhamos nele, Paulinho emerge diverso à narrativa de cada encontro.
Um detalhe melódico-harmônico contribui para a expressão desta mudança de atitude: ao cantar o desfecho da primeira história, em que canta zombeteiro a desgraça alheia, a estrofe se encerra numa nota aguda e acorde em suspenso, para em seguida engatar sem transição no refrão, ao passo que nas duas segundas seguintes, o encerramento se dá aterrissando suavemente na nota fundamental do acorde de tônica, passando da instabilidade anterior ao apaziguamento.
Em 1976, Paulinho voltou a visitar Coisas do Mundo, minha nega, no álbum Memórias cantando.
É preciso notar a tremenda diferença da interpretação de Paulinho nesta segunda gravação. Na primeira, inexperiente e talvez inseguro num primeiro álbum, ele tem a preocupação evidente de cantar o samba, escandindo as sílabas para evidenciar a melodia e tornar a letra compreensível, mas com isto perde grande parte da espontaneidade do seu canto. Na segunda, esta preocupação se esvai. A divisão de samba de Paulinho aqui é segura, mas também imprevisível, porque extremamente próxima da fala coloquial. Paulinho efetivamente conta os episódios de sua volta para casa como se estivesse sentado à mesa da cozinha com sua nega, enquanto ouvimos algo intrusivos esta conversa tão pessoal.
Finalmente, já em 1997, Paulinho registra-a novamente, agora ao vivo no álbum Beba da chama.
Se na segunda gravação em estúdio os importunos arranjos de cordas e metais já haviam sido retirados em favor da batucada, no show correspondente a seu último álbum de inéditas, Beba do samba, Paulinho optou por levar Coisas do mundo, minha nega apenas ao violão – mesmo tendo os demais músicos ali ao lado, tanto que os apresentou ao público em seguida. Não é portanto uma decisão sem fundamentação. O samba foi sendo despido ao longo de quase trinta anos, reduzido ao essencial, ao violão que acompanhou o eu-lírico do autor em sua longa jornada noite adentro, e tendo seu caráter intimista e filosófico realçado mais e mais.
As pausas introduzidas no arranjo na segunda gravação, ao término de cada segunda, permanecem ao vivo. O silêncio repentino a cada vez ganha contornos diferentes: se na primeira história o breque soa quase sarcástico, amplificando o choque do ouvinte ao saber que Paullinho, ao invés de consolar, fez chacota de quem lhe pedia ajuda; na segunda história, ao contrário, o silêncio após seu amigo cair no sono parece cuidadoso de agora não o acordar, e na terceira e última… é quando a constatação da transcendência invade decididamente o samba e praticamente exige um silêncio contemplativo.
Pois é aqui que o sambista encontra os limites de sua arte. Ao recusar-se a tocar diante do cadáver que encontra na rua, Paulinho reconhece estes limites e escolhe conscientemente o silêncio – agora ilustrado literalmente na pausa. A própria imagem do pandeiro, pivô da briga que desencadeou o assassinato, caído no chão sem uso e mesmo incômodo ao lembrar a insignificância do motivo, reforça esta desolação. O contraste com a primeira história, em que Zé Fuleiro se queixa da falta de amor, dinheiro, saúde e sorte, é gritante: nada disto estava em jogo aqui, e no entanto algo muito maior ocorreu, causado, de certa, forma, pelo samba, o mesmo samba que reconhece não ser capaz de descrever o que realmente está em jogo.
Este momento, porém, é precedido pelos versos da segunda vez que canta a primeira parte. Neles, Paulinho diz que veio Tentar fazer em teus braços um samba puro de amor / Sem melodia ou palavra pra não perder o valor. É quando acontece pela primeira vez a renúncia da expressão verbal, mas não voltada para a morte, e sim para o amor – incluindo neste o sexo em sua alusão tão elegante. O amor e a morte, mediados pelo sexo, cantados e recantados, realizam-se em si mesmos, e Paulinho sugere apenas a simetria entre eles nos posicionamentos de cada um, um na primeira do samba, outro na segunda; um no início da canção, outro no fim; a morte na rua, o amor em casa.
E aqui fica evidente a divergência nos caminhos de Paulinho e Sidarta: pois se o príncipe indiano considera sua casa um lugar de estagnação e vai em busca do mundo, Paulinho faz o caminho de volta. Sidarta sai de casa para procurar a saída da roda do Samsara, o ciclo de repetições da existência, vida e morte, mas também a ilusão de movimento que esta repetição contém, impedindo-nos de enxergar o essencial. O lapidar verso final de Coisas do mundo, minha nega é a uma definição sintética e exata do sair da roda do Samsara – As coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender-, mas Sidarta e Paulinho tomam caminhos opostos. Para Paulinho, a volta para casa é a saída do Samsara, o amor é a transcendência que ele procura, e o samba o conduz até aí. E então para.
E então, paradoxalmente, ao admitir sua impotência é que o samba se torna mais potente. Exatamente ao reconhecer sua impossibilidade de abarcar em si a vida, o amor, a morte, o samba e a arte em geral se tornam maiores, levando-nos até a fronteira para termos vislumbres desta transcendência. Ou como diz o próprio Paulinho em um outro samba, do primeiro dos dois álbuns lançados em 1971, ninguém pode explicar a vida num samba curto. Nem longo, afinal. Mas algumas pistas ele nos traz. Faça silêncio e ouça. Ou Sambe.