Paulinho e a roda do Samsara

Sidarta era um príncipe, herdeiro do trono da casta de seu pai em Kapilavastu, no sopé do Himalaia. Um sábio ermitão das redondezas, ao ver o recém-nascido, fez a seguinte profecia: se ele permanecesse no palácio após a juventude, seria um grande e respeitado rei. Porém, se ele decidisse abandonar a casa de seus pais, seria um iluminado, salvador da humanidade.

A despeito da profecia gloriosa, seu pai pretendeu que ele permanecesse consigo e mantivesse o reino familiar unido. Mesmo depois de casar aos 16 anos e ter um filho, não podia deixar as dependências do palácio. Porém, Sidarta permanecia insatisfeito ao se considerar um prisioneiro nos limites demarcados pela família, e resolveu explorar o mundo, fazendo excursões secretas durante a noite, acompanhado apenas por um servo fiel, e conheceu o vilarejo tal como era, sem os enfeites dos dias de festa, e com as pessoas comuns enfrentando os problemas do dia-a-dia.

Na primeira saída, ele deparou-se com um velho, cabelos e barbas brancas, rosto enrugados, andando com dificuldades, auxiliado por uma bengala. Sidarta assombrou-se. Nunca havia visto um velho. O servo lhe explicou que todas as pessoas um dia se tornam velhas e perdem suas forças, sendo descartadas do convívio social. Na segunda saída encontrou um homem muito doente, com a pele coberta de feridas que atraíam moscas e a expressão de dor e sofrimento. O servo informou que a doença era algo que acontecia com muitas pessoas, com certa frequência, e ninguém estava a salvo. E finalmente, na terceira saída, Sidarta passou por um cortejo fúnebre. e com isto foi apresentado à morte. Voltou para o palácio apenas por um curto período. Logo decidiu deixar a casa de seu pai para investigar as razões do que vira. Foi o início de sua caminhada rumo à iluminação.

A história de Sidarta, que pode ser lida por inteiro aqui de onde resumi apenas uma pequena parte, se dá no século V ou VI antes de Cristo. Já no ano de 1968 depois de Cristo, um rapaz chamado Paulo César contou uma história insuspeitamente análoga:

A primeira gravação de Coisas do mundo, minha nega, no primeiro álbum solo de Paulinho da Viola, é emoldurada por um arranjo excessivo de cordas e redundante e estridente de metais. Mas o samba já está inteiro ali. Paulinho, voltando para casa para encontrar sua nega, tem três encontros: com Zé Fuleiro, que lhe falou de doença, falta de amor e dinheiro e lhe pediu algum emprestado; com Seu Bento, bêbado contumaz de cair e dormir na sarjeta; e com um morto anônimo, um corpo. E três reações diferentes de Paulinho: para o primeiro, ele usa o violão para zombar de seu sofrimento; no segundo encontro, o usa para acalentar, cheio de empatia; e no terceiro, admite a impossibilidade de abarcar o que vê com seu samba, e escolhe calar-se. O paralelo com o passeio de Sidarta, a caminho de iniciar sua jornada de iluminação, é patente. Com algumas diferenças. A principal é que Sidarta se distancia de casa, e Paulinho retorna a ela.

A estrutura de Coisas do mundo, minha nega é a do samba clássico, primeira e segundas, mas com uma variação: a primeira não é sempre exatamente a mesma. Se as três segundas correspondem aos três encontros, as quatro primeiras partes, iniciadas com o mesmo verso, têm por sua vez uma espécie de evolução do assunto. A cada uma Paulinho retoma um fio condutor interrompido pelas histórias e avança de uma postura culpada inicialmente (Na boca as mesmas palavras / No peito o mesmo remorso) para uma de apaziguamento (Guarda bem minha viola / meu amor e meu cansaço) e humildade (Querendo aprender contigo / a forma de se viver). Há um sutil desenvolvimento, como se, a cada história rememorada, Paulinho aprendesse algo com ela também. Como uma versão rio de Heráclito, que nunca é o mesmo a cada vez que mergulhamos nele, Paulinho emerge diverso à narrativa de cada encontro.

Um detalhe melódico-harmônico contribui para a expressão desta mudança de atitude: ao cantar o desfecho da primeira história, em que canta zombeteiro a desgraça alheia, a estrofe se encerra numa nota aguda e acorde em suspenso, para em seguida engatar sem transição no refrão, ao passo que nas duas segundas seguintes, o encerramento se dá aterrissando suavemente na nota fundamental do acorde de tônica, passando da instabilidade anterior ao apaziguamento.

Em 1976, Paulinho voltou a visitar Coisas do Mundo, minha nega, no álbum Memórias cantando.

É preciso notar a tremenda diferença da interpretação de Paulinho nesta segunda gravação. Na primeira, inexperiente e talvez inseguro num primeiro álbum, ele tem a preocupação evidente de cantar o samba, escandindo as sílabas para evidenciar a melodia e tornar a letra compreensível, mas com isto perde grande parte da espontaneidade do seu canto. Na segunda, esta preocupação se esvai. A divisão de samba de Paulinho aqui é segura, mas também imprevisível, porque extremamente próxima da fala coloquial. Paulinho efetivamente conta os episódios de sua volta para casa como se estivesse sentado à mesa da cozinha com sua nega, enquanto ouvimos algo intrusivos esta conversa tão pessoal.

Finalmente, já em 1997, Paulinho registra-a novamente, agora ao vivo no álbum Beba da chama.

Se na segunda gravação em estúdio os importunos arranjos de cordas e metais já haviam sido retirados em favor da batucada, no show correspondente a seu último álbum de inéditas, Beba do samba, Paulinho optou por levar Coisas do mundo, minha nega apenas ao violão – mesmo tendo os demais músicos ali ao lado, tanto que os apresentou ao público em seguida. Não é portanto uma decisão sem fundamentação. O samba foi sendo despido ao longo de quase trinta anos, reduzido ao essencial, ao violão que acompanhou o eu-lírico do autor em sua longa jornada noite adentro, e tendo seu caráter intimista e filosófico realçado mais e mais.

As pausas introduzidas no arranjo na segunda gravação, ao término de cada segunda, permanecem ao vivo. O silêncio repentino a cada vez ganha contornos diferentes: se na primeira história o breque soa quase sarcástico, amplificando o choque do ouvinte ao saber que Paullinho, ao invés de consolar, fez chacota de quem lhe pedia ajuda; na segunda história, ao contrário, o silêncio após seu amigo cair no sono parece cuidadoso de agora não o acordar, e na terceira e última… é quando a constatação da transcendência invade decididamente o samba e praticamente exige um silêncio contemplativo.

Pois é aqui que o sambista encontra os limites de sua arte. Ao recusar-se a tocar diante do cadáver que encontra na rua, Paulinho reconhece estes limites e escolhe conscientemente o silêncio – agora ilustrado literalmente na pausa. A própria imagem do pandeiro, pivô da briga que desencadeou o assassinato, caído no chão sem uso e mesmo incômodo ao lembrar a insignificância do motivo, reforça esta desolação. O contraste com a primeira história, em que Zé Fuleiro se queixa da falta de amor, dinheiro, saúde e sorte, é gritante: nada disto estava em jogo aqui, e no entanto algo muito maior ocorreu, causado, de certa, forma, pelo samba, o mesmo samba que reconhece não ser capaz de descrever o que realmente está em jogo.

Este momento, porém, é precedido pelos versos da segunda vez que canta a primeira parte. Neles, Paulinho diz que veio Tentar fazer em teus braços um samba puro de amor / Sem melodia ou palavra pra não perder o valor. É quando acontece pela primeira vez a renúncia da expressão verbal, mas não voltada para a morte, e sim para o amor – incluindo neste o sexo em sua alusão tão elegante. O amor e a morte, mediados pelo sexo, cantados e recantados, realizam-se em si mesmos, e Paulinho sugere apenas a simetria entre eles nos posicionamentos de cada um, um na primeira do samba, outro na segunda; um no início da canção, outro no fim; a morte na rua, o amor em casa.

E aqui fica evidente a divergência nos caminhos de Paulinho e Sidarta: pois se o príncipe indiano considera sua casa um lugar de estagnação e vai em busca do mundo, Paulinho faz o caminho de volta. Sidarta sai de casa para procurar a saída da roda do Samsara, o ciclo de repetições da existência, vida e morte, mas também a ilusão de movimento que esta repetição contém, impedindo-nos de enxergar o essencial. O lapidar verso final de Coisas do mundo, minha nega é a uma definição sintética e exata do sair da roda do Samsara – As coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender-, mas Sidarta e Paulinho tomam caminhos opostos. Para Paulinho, a volta para casa é a saída do Samsara, o amor é a transcendência que ele procura, e o samba o conduz até aí. E então para.

E então, paradoxalmente, ao admitir sua impotência é que o samba se torna mais potente. Exatamente ao reconhecer sua impossibilidade de abarcar em si a vida, o amor, a morte, o samba e a arte em geral se tornam maiores, levando-nos até a fronteira para termos vislumbres desta transcendência. Ou como diz o próprio Paulinho em um outro samba, do primeiro dos dois álbuns lançados em 1971, ninguém pode explicar a vida num samba curto. Nem longo, afinal. Mas algumas pistas ele nos traz. Faça silêncio e ouça. Ou Sambe.

 

 

Quinto Império, por Caetano Veloso

Este artigo do Caetano saiu no Segundo Caderno do Globo este domingo. É um exemplo acabado de como uma canção pode causar uma epifania, e como uma simples interpretação com a efetiva compreensão do complexo (a antíetse na frase é proposital) conjunto de relações entre melodia, harmonia, letra, relações intertextuais, históricas, psicológicas, transparecendo na voz e no toque de um instrumento, pode ser ao mesmo tempo sintética e plena de reverberações, e como a escuta é parte integrante deste processo em igualdade de condições. E como, por mais que ainda haja tanto a dizer sobre a canção, às vezes é o silêncio que se faz absolutamente necessário.
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Eu vinha do Jardim Botânico com meu filho na madrugada vazia. Ele no assento do carona e o rádio do carro ligado. Tocou Pra que mentir com Paulinho da Viola acompanhado de César Faria, seu pai, no violão. Já conhecia a gravação de inúmeras audições, mas fazia algum tempo que não a escutava e — mais importante — meu filho nunca a tinha ouvido e não se lembrava particularmente desse samba de Noel (eu canto vários para ele, desde que, menino, ele precisava que eu cantasse para ele dormir).

A gente sente essa identificação profunda com os filhos, funde a alma nas deles, adivinha caminhos por onde elas começam a conhecer o que a gente supõe que já sabe. De repente eu ouvia Pra que mentir com Paulinho pela primeira vez. Que maravilhamento! A afinação se firma na voz dos cantores das mais diferentes maneiras. Quando se firma. Em Paulinho — em especial nesse Paulinho de Pra que mentir — surge uma afinação precisa, abissalmente inteligente e, no entanto, impensada, miraculosamente acontecendo na garganta, no peito, nos ossos da face, no ar ao redor, como uma emanação orgânica inevitável. Se ele está cantando Pra que mentir, o reconhecimento, por parte de sua mente, das notas a serem atingidas será assim. Sobretudo se o acompanha o violão de César, aquela baixaria celestialmente fluente e lógica. Eu me sentia em estado de graça ouvindo essa manifestação da arte brasileira no meio da noite. Poucas coisas são tão bonitas nesse mundo — e fruí-la assim, na espera do sinal do encrencado cruzamento Lagoa-Barra (espera que parece durar horas se a rua está, como estava, totalmente vazia: eu paro no sinal de madrugada), ganha caráter de revelação.

Um dos mais resistentes recalques que nossa clínica geral precisa vencer é a dependência do aval internacional para proclamar obra-prima universal o que é obra-prima universal mas ainda é propriamente conhecido apenas no Brasil. O outro lado da moeda é mais antigo: o de olhar com suspeição o que tem reconhecimento apenas ou predominantemente no estrangeiro. Mas são áreas diferentes da sociedade brasileira — e da mente de cada brasileiro — que reagem dessas formas opostas e complementares (ambas conservadoras e covardes) a fenômenos de criatividade oriundos do nosso país. Paulinho é exemplo luminoso. Lembro-me de ter lido no New York Times um respeitoso artigo sobre uma apresentação dele em Nova York. O crítico nova-iorquino considerou o concerto muito austero. A gente entende por quê. Mas se o Brasil tivesse o maior número de bilionários citados na revista Forbes, uma das mais potentes Forças Armadas e assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, a gravação de Paulinho com César fazendo esse Noel seria reconhecida como um dos momentos mais altos da expressividade humana. E isso levaria a centenas de buscas e revalorações, com Elton e Dona Ivone, Wilson das Neves e Mumuzinho, Marcelo D2 e Pretinho da Serrinha sendo estudados por milhares de nerds na Carolina do Norte e na Coreia do Sul.

Pra que mentir com Paulinho da Viola e César é um dos ápices da criatividade artística mundial. Vi isso realizado, não como um esperançoso profeta amador arriscando uma aposta: vivenciei a irreversível realidade disso luminosamente reconhecida por todos os homens sintonizados com os caminhos da História. O Quinto Império. Vivenciei tudo isso como um profeta verdadeiro, meu filho ao meu lado me guiando, à medida que descobria as qualidades — para ele apenas tranquilamente constatáveis — dessa arte amadurecida em séculos de miséria, opressão e incômoda originalidade. Lembrei-me de que, faz uns anos, senti algo semelhante ao ouvir Marisa Monte cantar Carinhoso acompanhada por Paulinho ao violão (era naquele filme tão belo e cheio de momentos Saura, dirigido por Isabel Jaguaribe): Paulinho era o César de Marisa, que era um Paulinho mulher: o Noel dos Faria é o núcleo do que chegou até aquele Pixinguinha ali. Na hora em que os fatores invencíveis se reúnam; em que educação não seja um aspecto isolado como no bom discurso de Cristovam Buarque; em que o sucesso de Sergio Mendes e de Airto Moreira, o prestígio do Cansei de Ser Sexy e do Bonde do Rolê (ou de Joyce no Japão) não pareçam irreais; em que o Brasil prove ter merecido a Bossa Nova – nessa hora brilhará no céu do mundo, numa das mais belas constelações, essa estrutura criada por pai e filho Faria a partir de Noel e Vadico. Na encruzilhada confusa que ainda se chama, em parte, Praça Sibelius (quem teria escolhido esse nome?), deu-se a iluminação. Não era nada demais. Apenas um modo adequado de se receber o que Paulinho, César, Vadico e Noel nos ofertam nessa peça.

Cartola, Paulinho, samba de raiz e preconceito

Lendo o ótimo post do Fred Coelho sobre ensaio do artista plástico Nuno Ramos sobre Paulinho da Viola num livro da PubliFolha, (post aqui, na verdade anotações sintéticas que instigam a ler o ensaio, informações sobre o livro aqui),  fiquei pensando numa questão que sempre me incomodou quando se fala nos nossos bambas do samba, e que talvez tenha raízes mais profundas do que imaginamos.

A questão é simples, mas com um monte de possibilidades de expansão do assunto. Resume-se a um incômodo toda vez que se fala de Cartola. Principalmente Cartola, representando com seu nome vários dos autores sambistas tidos como clássicos , chamados Velha Guarda e com raízes lá dentro da favela.

E o incômodo é porque quase nunca consigo perceber com clareza, nas louvações e encômios despejados sobre eles, o que é realmente o reconhecimento dos compositores que foram e são, relacionados diretamente ao valor das obras musicais que nos legaram e legam, do simples espanto pelo fato de pessoas sem escolaridade regular, tidas como iletradas, terem a capacidade de realizar estas obras. É como se os sambas de Cartola tivessem um valor agregado pelo fato de o Agenor morar na favela, ser negro ou ter completado apenas o primário. Como se o fato de usar tu e vós, ainda que misturado com você, fosse por si só suficiente para aplausos. Como se ele fosse uma espécie de maravilha amestrada, um milagre brasileiro, e a música então ficasse para segundo plano. Cartola, o prodígio semi-analfabeto compositor, como os índios que foram levados para a Europa no século XVII para encantar as cortes.

Divina Dama- Cartola

Estou cansado de ver Cartola ser apresentado assim, ressaltando-se sua falta de escolaridade, seja abertamente ou nas entrelinhas. O problema é que a música de Cartola é bem maior que esta questão, muito maior. Cartola e Noel foram amigos. Noel era branco, de classe média e com curso universitário. No entanto, as letras de Noel primam pelo coloquial, chegando ao cúmulo de uma Conversa de Botequim, que Cartola nem em sonhos escreveria. E se escrevesse, será que teria o reconhecimento que teve, e que Noel teve? Noel teve autorização para cair no coloquial por ter, ao menos em tese, o domínio da cultura erudita. Se Cartola tivesse em sua época feito samba como Noel, independente de sua qualidade, possivelmente não teria tido a metade do seu reconhecimento.

A poética de Cartola é diametralmente oposta à de Noel (e no entanto foram parceiros). Noel é do cotidiano, da ironia; Cartola é quase metafísico. E Paulinho da Viola foi quem conseguiu a melhor fusão entre os dois.

Coisas do mundo, minha nêga – Paulinho da Viola

Paulinho tem ao mesmo tempo a capacidade de cronista do cotidiano de Noel – mas menos sarcástico, mas crítico mesmo assim – e a profundidade psicológica e filosófica de Cartola. Paulinho consegue conjugar a vivência cotidiana a um olhar distanciado que, nas palavras do Fred Coelho sobre o Nuno,

não permite que a poética de Paulinho seja desviada de sua homenagem permanente ao que mais profundo existe na cultura do samba, sem deixá-lo cair no discurso vitimizador ou ingênuo de outros autores.

Paulinho é de uma família de classe média – como Noel Rosa, e mulato (vai uma interpretação um tanto esquemática para fechar, mas que tem o seu sentido). Se por um lado isto impediu uma simplificação de seu discurso, talvez o tenha feito  também escapar da necessidade de uma legitimização por pretensões eruditas como a que atingiu Cartola. Paulinho teve a chance, e a capacidade, de realizar esta fusão de duas vertentes possíveis do samba, e a faz com precisão, abrindo caminhos para novos compositores retratarem este lirismo por sob a realidade e escapando de preconceitos de ambos os lados, sem a necessidade de a retratarem pitorescamente, nem a de empolarem um palavreado vazio emulando uma profundidade inexistente.

Ou seja, Paulinho se recusa a fazer um arremedo festivo da crônica da favela de que Zeca Pagodinho é mestre (e legitimamente), mas a faz acrescentando a ela uma leitura que pode chegar a ser trágica: pode guardar as panelas que hoje o dinheiro não deu. E também se recusa a um linguajar rebuscado que tentam impingir como característica marcante em Cartola (inutilmente, pois ele é maior que isso), mas a partir daquele cotidiano ele consegue o que o Nuno Ramos chama de fazer samba sobre abstrações – e ele o faz tanto em Dança da Solidão quanto em Comprimido, pois não está falando tanto da história do homem que se mata, mas de sua angústia. Não escolhi à toa o samba de Paulinho que ilustra este post: é exatamente disso que ele trata em sua música: coisas do mundo, minha nêga.

A tradição do samba no futuro do pretérito

Em seu livro Tem Mais Samba: das raízes à eletrônica (parcialmente disponível aqui), o jornalista Tárik de Souza afirma:

Mesmo sem violentar o formato tradicional, Paulinho tomou liberdades com o velho ritmo. “Meu samba não se importa se eu não faço rima/ se eu pego na viola e ele desafina” como ele mesmo anuncia em Roendo as Unhas, uma de suas gravações mais próximas do atonalismo.

A harmonia de Roendo as Unhas, do álbum de Paulinho da Viola Nervos de Aço, de 1973, é circular, nunca se resolve. Paulinho usa eufemismos assustadores (“cheirar pelas esquinas minha flor nenhuma”) em uma melodia que caminha aparentemente sem rumo certo, e mesmo quando repete algum motivo numa direção específica (como na repetição ascendente de “se desapareço”, o faz apoiada em acordes que parecem não chegar a lugar nenhum. A canção desafia qualquer formato tradicional de samba, incluindo a divisão de primeira e segunda partes. No entanto, é um samba. E não soa estranha na obra de Paulinho.

Roendo as Unhas – Paulinho da Viola

Estava lembrando de um grupo da década de 90, logo anterior a este tremendo renascimento do samba na Lapa, a Família Roitman, cujo vocalista, Leo Tomassini, ainda está por aí. O grupo sempre me pareceu bem intencionado, mas mesmo quando o assisti ao vivo, nunca consegui me empolgar. Tinha a impressão de que o grupo era muito “certinho”, impressão que se confirmou ao ver o título de seu primeiro CD: O Samba nas regras da arte. Era a confissão da tentativa de se colocar numa fôrma (com acento, que esta Reforma Ortográfica só atrapalha a compreensão), de repetir a tradição  e de se legitimar de alguma forma, os jovens brancos cantando os sambas antigos. Só que o tiro saia pela culatra: a tentativa de seguir “as regras da arte” soavam falsas, fracas, e a sensação de “tem branco no samba” só se fortalecia.

Lobão, uma vez, fez um samba. Se desesperou, ligou para o baixista Artur Maia e disse: “Fiz um samba. E agora, o que faço com ele?” Artur foi à casa dele ouvir o samba, e conversa vai, conversa vem, fizeram outro samba. E se desesperaram de novo: “Meu Deus, agora são dois sambas!” Lobão acabou gravando alguns. O primeiro foi Girassóis da Noite, no álbum Vida Bandida (aliás, a faixa título também tem a célula rítmica básica de samba). Lobão mandou o disco para o Paulinho da Viola ouvir. Paulinho respondeu que os sambas eram excelentes, mas pediu para que o Lobão não deixasse de fazer rock’n roll…

Não fosse Paulinho um autêntico cavalheiro, seria uma crítica irônica aos sambas. Não era. O que Paulinho queria dizer é que Lobão não tinha porque abrir mão de sua vivência em favor de outra – no máximo conectá-las. Não tinha que imaginar que sua música seria menos brasileira ou menos autêntica que qualquer outra. Lobão na verdade já sabia disso, tanto que afirma: “sou músico, sou popular e sou brasileiro”.

Girassóis da Noite – Lobão (não reparem a propaganda no fim ao som de outra música)

O Casuarina lançou seu primeiro álbum em 2005, dez anos depois da estréia da Família Roitman. Em comum, o fato de ter apenas sambas antigos ou feitos por bambas consagrados, como Nelson Sargento e Nei Lopes. A destoar um pouco, apenas o Suingue de Campo Grande, do repertório dos Novos Baianos. Não poderia ser diferente, pois o repertório era calcado no que o grupo costumava tocar na noite.

Porém, no segundo álbum isto mudou. Seu título (e da faixa-título, em que nitidamente os clichês habituais do samba procuram caminhos harmônicos que surpreendam o ouvinte) já diz algo sobre as cobranças a que o grupo foi submetido por ser formado por universitários de classe média (outro paralelo com a Família Roitman), e a afirmação de legitimidade por parte de quem a buscou tocando com quase toda a velha guarda do samba carioca. O cantor João Cavalcanti afirma:

Certidão é um grito. De quem vem sendo posto em cheque por fazer samba. Logo o samba, sempre tão popular e acessível, agora tinha uma cartilha determinando quem o podia ouvir e fazer. Certidão é a resposta dos músicos-não-sambistas-que-fazem-samba-ainda-assim. Quando João Fernando me mostrou a melodia, vi na hora que ela se prestava, como uma luva, a esse propósito de gritar que não pedimos endosso, não pedimos para ser sambistas, apenas ouvimos sambas, fazemos sambas e vivemos do samba. Um pouco por vocação, um pouco por contingência, muito porque ninguém faz samba por preferir.

Esta postura expressa na última frase, de certa forma, é oposta ao pensamento expresso pela velha guarda em composições como O samba é meu dom, de Wilson das Neves (no entanto, a letra de Certidão afirma que “ninguém detém o dom”). João assume que faz samba por uma contingência – o que é comprovado pelas notícias de seu primeiro álbum solo, que está sendo gravado e tem rock e bolero no repertório. O bandolinista João Fernando (abração, João), no início do Casuarina tocava também no grupo Forró na Contramão, que teve de deixar quando o Casuarina ganhou espaço. Longe de ser um demérito, isto é algo recorrente. Beth Carvalho, oriunda da classe média como os rapazes do Casuarina e da Família Roitman, não iniciou sua carreira no samba e chegou a gravar Sentinela, de Milton Nascimento, em um de seus primeiros álbuns. Só com o estouro do samba Só Quero Ver,  de Edmundo Souto e Paulinho Tapajós, foi que ela passou a se assumir sambista, chegando hoje a ser a madrinha de toda uma geração de músicos oriundos do Cacique de Ramos.

E onde é que eu quero chegar com isso tudo? Resumindo: na possibilidade de renovação do samba a partir do histórico cultural diversificado dessas novas gerações, desde que não tentem mimetizar isto em troca de uma aceitação, seja de mercado, seja pelas velhas guardas. Paulinho da Viola não tem uma história diferente das outras relatadas aqui. Filho do violonista Cesar Faria, do conjunto Época de Ouro, mas também funcionário da Justiça Federal, Paulinho cresceu em Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro e conheceu Jacob do Bandolim e Pixinguinha ainda criança. Depois, entrou em contato com os compositores de samba frequentando seus ambientes, e emplacou suas primeiras músicas, inclusive em parceria com eles. Isto o levou a dominar a forma clássica do samba com maestria. Porém, assim que isto aconteceu, ele se deu o direito de mudar esta forma, de retrabalhá-la, de misturá-la com as outras coisas que ouvia. Não para deturpá-la, mas para levá-la adiante, investigar suas possibilidades.

Foi isso que Paulinho quis dizer a Lobão: que não desistisse de sua linguagem ao adotar outra, que não deixasse de ser roqueiro ao ser sambista. O caso extremo de Lobão é perfeitamente aplicável ao Casuarina, que analiso aqui como (não únicos) expoentes de toda uma turma que dá duro na Lapa de segunda a segunda. Depois de um aprendizado reverente, o grupo está chegando ao ponto de maturidade, e se declarando apto a voar mais alto, e se inserir na música nacional como um trabalho original, como um passo à frente na evolução do samba. Boa sorte para os rapazes, agora que tiraram o peso das costas. E divirtam-se/nos.

Certidão – Casuarina