Umas noites em 72

A história do disco é conhecida. Depois de Milton Nascimento enfrentar a gravadora para gravar seu próximo álbum lado a lado com um rapaz de 19 anos, o álbum Clube da Esquina se tornou uma referência da música brasileira, e o rapaz subitamente passou a ter uma carreira promissora. Foi instado então a gravar imediatamente seu próprio álbum, e o fez with the little help of his friends, os mesmos que haviam estado com ele no Clube: Beto Guedes, Toninho Horta, entre outros, revezando-se nos instrumentos. O álbum foi gravado em toque de caixa: de manhã, Lô Borges compunha uma canção, à tarde a letra era posta, em geral por seu irmão Márcio, e à noite os amigos se reuniam e a gravavam praticamente de primeira. Assim foi feito um álbum de rock progressivo, vocais dos Beatles, toada mineira, baião, experimentalista e brasileiro que se tornou objeto de culto, um clássico obscuro. Terminado o trabalho, Lô faz o que as próprias canções e capa do disco prenunciavam: põe o pé na estrada, sem turneé nem lançamento, e só retoma sua carreira anos depois.

Falta a história do show. Em 2016, Lô Borges encontra em Minas o músico Pablo Castro, faz uma participação em um show seu e assiste Pablo, que tem um conhecimento enciclopédico da MPB em geral e do Clube da Esquina em particular, tocar as canções do Disco do Tênis e outras com uma fidelidade espantosa. E daí surge a ideia de refazer o álbum ao vivo. Lô entrega a direção musical a Pablo, que arregimenta os músicos e põe em pé os arranjos originais fielmente. E eles põem o pé na estrada.

Há um risco inerente a um projeto como este, aliás dois, ligados entre si. De um lado, a possibilidade de ser visto como um mero caça-níqueis, como os revivals de bandas de rock, algumas delas revisitando seus álbuns clássicos com formações que não são a sombra das que os gravaram, como covers de si mesmos; e além disso, a questão técnica ligada neste caso à feitura do álbum: o Disco do Tênis traz em si o processo de sua feitura improvisada, urgente, intuitiva (às vezes bêbada). Algumas das canções do álbum são muito curtas apenas pela falta de tempo para fazê-las maiores – e tornam-se apenas vinhetas, ou na gravação intermezzos instrumentais criados no estúdio emendam-se a elas dando-lhes a consistência necessária. Se os mesmos amigos tivessem que gravar três vezes o mesmo repertório, certamente teriam saído três Discos do Tênis totalmente diferentes. Faz sentido levar ao palco a reprodução meticulosa de algo criado tão livremente?

A resposta, como não poderia deixar de ser, é dada no palco, e se resolve em dois âmbitos: no repertório propriamente dito e na performance da banda. No repertório, porque ele ressurge de 45 anos atrás surpreendentemente novo e fresco. O Disco do Tênis envelheceu muito bem – ou, como os sonhos da letra de Clube da Esquina nº2, não envelheceu. Suas fusões ainda hoje soam orgânicas e as letras continuam desafiadoras, nada óbvias mesmo quando algo ingênuas, e embora conectadas com a realidade da época, voltam a se fazer ouvir nos escuros tempos atuais.

Por que ando triste eu sei
É que eu vivo na rua
Espero algo mais deste frio
Espero um pouco mais e aprendi
A ser como o machado,
Que despreza o perfume do sândalo

A verdade é negra, eu sei
E o homem é mau
Espero algo mais desse ódio
Espero um pouco mais e aprendi
A ser como o meu gato,
Que descansa com os olhos abertos

E a outra garantia do trabalho está na própria banda, ou melhor dizendo, no entusiasmo com que se entrega à reconstrução meticulosa das noites de 1972, bem mais que um trabalho estritamente musical. A turma do Pablo Castro, mais que reproduzir nota por nota os arranjos originais, se insere neles – e Lô reconhece isto em diversos momentos do show, inclusive na apresentação dos músicos ao final, em que diz que Paulim Sartori, por exemplo, foi Toninho Horta e Beto Guedes no baixo. Ou quando ele destaca que até a nota errada de um solo seu no álbum é reproduzida por Guilherme de Marco. Ou finalmente, quando, rindo, apelida a banda de Os Xiitas. A atmosfera é menos a de um show individual de Lô do que de uma cooperação entre iguais – não comparável à formação original das gravações, mas fazendo-a presente em espírito. Se há saudosismo na platéia que vai ao show, no palco não há.

E sim, depois do repertório que dá nome ao show, vindo de um disco de apenas meia hora, há o restante do repertório de Lô lançado em 1972 – ou seja, sua metade do álbum Clube da Esquina, e mais Para Lennon e McCartney, gravada em 1970 por Milton, de brinde, e todas com os arranjos originais, que em sua maioria são tocadas no álbum pelos mesmos que gravaram com Lô logo depois. É a parte solar do show, em que o público canta junto um repertório que acompanhou Lô por sua carreira, ao contrário do outro, deixado de lado por todos estes anos. Sua presença é indispensável por ser a outra parte daquele rapaz de 20 anos, a que ficou na memória do seu público. Mas a noite afinal não é dela, e sim da outra parte, a que ficou muda por toda uma carreira, mas de certa forma a alimentou subterraneamente por todos estes anos. E o trabalho de arqueólogo de Pablo afinal não resultou na exumação de um cadáver e muito menos em reviver um repertório, porque afinal as canções do Disco do Tênis sempre estiveram bem vivas.

Como brinde, duas matérias excelentes sobre o Disco e o Show do Tênis, aqui e aqui.

 

 

O Anterior, de uma perspectiva histórica posterior

PrestençãoSer músico popular em Minas Gerais tornou-se uma doce maldição depois do Clube da Esquina. A gigantesca influência deste grupo de músicos fenomenais não permite dubiedades: quem permanecer mineiro (diferentemente de um João Bosco, que, mineiro de nascimento, tornou-se músico carioca, voltando a Minas ocasionalmente muito mais tarde) será o que for, mas será, em alguma instância, em relação ao Clube. Seja indo radicalmente em outra direção (Nós já cagamos muito na cabela do Clube da Esquina, ouvi uma vez numa entrevista do mineiro Sepultura), ou para subir nos ombros de suas grandes obras e assim enxergar mais longe.

No fim de 2012, o músico Pablo Castro publicou no Facebook, e depois no site Massa Crítica MPB, de Luiz Henrique Garcia, uma seleção analisada de 30 canções do Clube da Esquina. (Mais recentemente, fez o mesmo com 30 lados B de Paul McCartney.) Só estas escolhas já dizem muito: Pablo nem pensa em negar a tradição. Mas isso não o faz um continuador automático ou mesmo reverente – antes um conhecedor que escolhe cuidadosamente o que lhe interessa continuar.

Num artigo excepcional sobre o Clube, Ivan Vilela (também um tremendo violeiro) diz:

O Clube da Esquina foi um movimento de síntese da música brasileira. (…) O Clube da Esquina traçou um caminho singular com harmonias muito próprias e originais, como se tivesse pegado um atalho e chegado na ponta das conquistas adquiridas ao longo das décadas. Olhando para a singularidade e ouvindo as harmonias de Milton Nascimento, Toninho Horta e Tavinho Moura fica-nos fácil perceber essa marca.

Este me parece ser o ponto de partida de Pablo Castro.

Anterior – Pablo Castro (clip voz e violão)

Dizer que um álbum de música popular brasileira é composto de canções pode parecer uma rotunda redundância. Mas no caso de Anterior, é pertinente dizer isso no sentido de que seu fundamento está numa tremenda depuração do formato canção. Pablo se esmera – ou mais precisamente esmera cada canção em um alto grau de refinamento. Isto é nítido em cada curva melódica, em cada progressão de acordes. Não que não haja fluência, que soe artificial, nada disso. Mas trata-se de uma fluência conseguida à custa não apenas de inspiração, mas de muita transpiração.

Mas – e aí voltamos à questão referencial, novamente baseados na avaliação certeira do Ivan Vilela – onde o Clube da Esquina é sintético, Pablo é prolixo. Uma das reportagens de lançamento o descreve como neobarroco, o que sem dúvida é uma tentação para um compositor mineiro, mas me soa algo exagerada, pois Pablo não permite que a profusão de detalhes se transforme em descontinuidade ou fragmentação. (caberia aqui uma extensa discussão sobre a influência do barroco sobre o Clube. A mim parece que cabe a aproximação, mas não exatamente estilística, no sentido de uma explosão de dramaticidade, e sim em termos de uma intensidade que não exclui contrastes internos, além da óbvia questão da religiosidade. Mas isso é outro assunto).

Pois em Pablo esta referência do Clube ainda assim me soa forte, mas no retorno do pêndulo. O detalhismo composicional de Pablo não é sintético como no Clube, e está atrelado a uma composição para violão (mais até que meramente uma harmonia) que vai ser sublinhado meticulosamente pelos arranjos do próprio Pablo, e também de Marcos Braccini, Avelar Jr, João Antunes, entre outros. Voltamos a Ivan Vilela:

Cada movimento usou o som orquestral de maneira distinta. A Bossa-nova utilizou a orquestra como uma moldura sonora em torno da canção. A tropicália tratou-a de forma mais discursiva, em que a orquestra narrava os acontecimentos da canção. No Clube da Esquina vimos uma orquestração de caráter mais impressionista, criadora de ambiências sonoras e timbres que resultam da junção de instrumentos distintos, que, por vezes, corrobora o texto.

Esta sequência típica da linha evolutiva permite ouvir as orquestrações de Anterior sob perspectiva. Pablo não economiza, isto é certo. e onde a canção diz mata o arranjo diz esfola. Como na Banda dos Descontentes, que já se inicia com um vigoroso violão solo, crescer em intensidade até explodir em revolta popular de metais e a voz de Pablo ultrapassando seus limites. Ou em Moby Dick, de primeira parte épica e segunda trilha sonora de perseguição, perfeita para uma caça à baleia. E em ambos os casos, posso estar falando tanto da canção em si quanto do arranjo, irmanados na mesma direção.

Mas agora deixo espaço para a entrevista/bate-papo que fiz com Pablo, enquanto ia ouvindo o álbum e preparando o artigo. Creio que na troca informal de impressões que tivemos, e que editei o mínimo possível, estão alguns dos maiores insights sobre Anterior:

Eu – Pablo, estou ouvindo devagar e gostando à beça, e quero fazer uma pergunta. Você ouve rock progressivo? Digo porque achei algo na condução das canções e mais ainda nos arranjos detalhados e com viradas meio inesperadas que me lembrou isso. E você sabe que o Clube da Esquina tinha essa relação. Faz sentido ou é viagem minha?

Pablo – Cara, já ouvi mais, mas sempre volto sobretudo ao Genesis com Peter Gabriel, não ligo muito para Yes e Pink Floyd, enquanto Genesis é fundamental, embora eu não aprove tanto aquele jeito de se fazer colagem em todas as músicas, sou mais da canção, e prog já é outra forma, embora em Genesis tenha muita canção foda entre uma aventura instrumental e outra. Saca The Lamb Lies Down on Broadway?

Eu – Cara, pois era exatamente nosso que eu estava pensando. A maneira de condução do instrumental me lembrou muito, essa vivacidade. O legal é ver isso com harmonias pós bossa nova e ritmos variados, sem preocupação explícita com gênero. Esta liberdade é que eu acho que me lembrou.

Pablo – É, é um disco que atira pra muito lado, né, tem uma camaleonice nele, mas isso também remete a Beatles, com aquele carrossel de estilizações que tem nos discos deles.
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Eu – Pablo, vou te fazer uma pergunta batida, mas que acho que pode ter um viés diferente. Você enxerga Clube da Esquina no teu trabalho?Digo isso porque, para além de questões harmônicas, eu enxergo algo de Clube da Esquina ampliado, no jeito próprio de processar samba, bossa com rock, pop, algo nos arranjos (que me levou ao progressivo)… Você acha que faz sentido?

Pablo – Acho que faz sentido sim, com certeza, Túlio. Inevitável porque é algo que ouvi desde a infância. Acho que você tá na pista certa, talvez meu trabalho seja uma tentativa de processar esses elementos à maneira do Clube, só que de uma perspectiva histórica posterior. Tomando o rock, por exemplo, em alguns momentos, de forma mais central, com sua dicção harmônico melódica, como a tônica com sétima, algo que o Clube sempre tomou cuidado para modificar, e são raros os rocks típicos do Clube embora muitas músicas apresentem elementos dele. O Gil já se lançou sobre ele, sofisticando a harmonia repleta de empréstimos modais e da ambiguidade funcional dos acordes maiores com sétima, que funcionam tanto como tônica como enquanto subdominante. Mas o Clube sempre filtrou os elementos do rock de maneira a não se lançar tão dentro dele como o Gil fez. Enfim, tem muito Gil nessa história também, né, com essa coisa de depurar os estilos sem deixar de ser original em cada um deles.

Eu – Tem Gil, é verdade. Mas embora o seu som seja decididamente urbano, não me soa ligado à Tropicália. Você tem uma sofisticação harmônica que poderia remeter a ele. Mas a condução geral, e principalmente melódica, não vai por aí. Mesmo o harmônico vai no meu ouvido em algo entre Lô, Beto Guedes e Toninho Horta. Não por acaso você resenhou tantas canções deles de outra vez. É como se o alargamento no espaço que o Milton sonhou fazer com o Clube, chamando músicos estrangeiros etc. você o fizesse no tempo, e de forma muito mais natural – pois o tempo realmente passou…

Pablo – É, eu acho que a marca mais indelével do Clube no meu trabalho é essa busca harmônica mesmo, por um tipo de efeito surpreendente, algo que seja expressivo sem perder o sentido, e tem toda uma ressonância meio misteriosa que intuitivamente muitos compositores daqui buscam, até mesmo aqueles que não ouviram o Clube como eu e são bastante posteriores. Mas tem realmente uma busca. Coisas como O Grande Verão, Moby Dick, Ponto Oriental, O Sétimo Selo vão muito nesse viés. No Grande Verão, fiz uma referência direta ao Beto Guedes, com o quatro venezuelano e aquelas changuanas que permeavam os discos dele. O Sétimo Selo tem umas soluções harmônicas interessantes, a partir de acordes simples, sem tantas dissonâncias, acho que isso é uma invenção bem Miltoniana. Todo o disco também tem muitos traços daquela típica guitarra mineira harmônica do Toninho Horta.

Eu – Tenho a impressão de que ainda por trás destes paralelos e destas aproximações há uma questão de procedimento. Achei um artigo do Ivan Vilela sobre o Clube em que ele lembra que o Clube é o 1° movimento depois da Tropicália. Só que a mistura que na tropicália era heterogênea e chocante, no Clube virou um amálgama muito natural. A ponto de ele antecipar a world music. Esse negócio de aceitar a influência incorporando a uma sonoridade bem mesclada e amadurecida é algo que se aplica ao seu som. Seu samba não é samba típico, nem o rock, nem mesmo o baião que tem baião no título. Antes de ser idiomático, tem uma identidade comum muito forte.

Pablo – Cara, que bom que você pensa assim, porque o maior desafio de se tentar abarcar tanta heterogeneidade é perder justamente a capacidade de amalgamar e trazer todas as peças pra dentro do mesmo jogo, né. Há em geral uma tensão conceitual presente na feitura dos álbuns que é completamente diferente da composição de canções, uma a uma: como alinhavar esse conjunto de músicas num todo. Uma das soluções mais predominantes hoje é enfatizar, por algum viés, a unidade, seja pela adoção de um estilo muito específico, seja, pela instrumentação, o tom das letras, enfim, a sonoridade, a voz, e tudo mais que amarra um disco. A mim, pessoalmente, sempre me agradaram mais aqueles discos com várias vozes cantando (a exemplo dos Beatles e do Clube da Esquina), com maior variedade e de alguma forma relendo tudo aquilo sob o mesmo prisma. Mas, enfim, não sou um músico “natural” que seria capaz de inventar um estilo, ou apurar algo muito específico em alguma fresta de algum gênero musical, sempre tentei saber fazer um pop e também um samba-canção, uma valsa ou um baião, uma canção de câmara ou um rock despudorado. “O maior desafio é amalgamar”, e não perder a capacidade de amalgamar, como escrevi acima.
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Eu – Pablo, dá uma olhada nisso que escrevi, diga para mim se faz sentido para você:

Um dos acordos tácitos que serve de base para a construção de uma canção é o da relação melodia/letra. A simbiose entre estes dois elementos é um dos objetivos da composição, e tanto maior for, mais longe a canção vai. Porém, se um dos dois elementos tiver que sobressair, usualmente, será a letra, capaz de conseguir comunicação mais direta com o ouvinte. (Obviamente, há inúmeras exceções a esta tese e ela própria é ponto de partida para diversas discussões. Mas parto dela como regra geral, e basta ligar o rádio para comprovar). Porém, na música de Pablo esta premissa parece se inverter, não propositalmente, mas como consequência natural da maneira como ele trabalha as melodias apuradas, que poderiam se bastar por si. Nas canções de anterior, a letra parece estar a serviço do efeito causado pela melodia, e não o contrário. Em Moby Dick, por exemplo, a narrativa quase óbvia dos acontecimentos serve a uma composição com dois climas bem definidos, um majestoso e épico, mas com um movimentos sincopado que balança como um navio sobre as ondas (se com isso se aproximar da dança de forma alguma) e uma movimentada segunda parte, em que o clímax da ação, a caça e o naufrágio falam por si, quase sem a necessidade da narrativa das palavras.

Pablo – Fiquei muito contente em ler seu texto, e acho que você sacou algo que eu mesmo nunca tinha pensado. Acho que é por aí mesmo, a melodia é muito estruturante nas minhas canções. Antigamente eu fazia praticamente a música inteira e depois ia pensar na letra. Agora, não mais, tem me sido mais decisiva a direção da letra no desenvolvimento da música, mas ainda assim, a melodia tem que ter um caráter mais íntegro pra que eu acredite na canção. Outro dia mesmo completei uma música que tinha um A que me agradava, para o qual fiz, com Murilo Antunes, algumas estrofes de letra, enquanto o B não havia e tentamos desenvolver a letra para depois musica-lo. No fim, acabei achando um padrão melódico convincente e aí terminei a melodia para depois letrar … um velho vício!

Eu – Mas eu acho que esse é justamente um ponto de ligação com o Clube também, e que criou uma geração inteira de letristas especializados – Brant, Dubas, Marcio Borges, o próprio Murilo. As suas melodias já contam a história. A da Banda descontente já se exalta sozinha, a da Feira já faz a feira, e assim por diante. Isso dá uma solidez muito grande às composições.

Pablo – Agora, acho que tem também um papel da harmonia aí, porque é meio estruturante aí uma certa busca de harmonias relativamente originais, cujos efeitos, conjugados com a melodia, são o que me importa mais. Não sei se consigo fazer uma melodia convincente para uma sequência harmônica banal.

Eu – Ah, certamente. E nesse ponto é que o encontro mineiro entre o pop rock e a bossa-nova se consuma. Tem uma complexidade aí que é muito particular, mas que também está a serviço. A harmonia é que abre o caminho para a melodia caminhar, não o contrário.

Pablo – Com certeza, são traços típicos mesmo dessa tradição do Clube. Claro que é uma herança que nem todos querem carregar (ou assumir), até porque implica uma exigência de elaboração harmônica que não é fácil manter. Mas é interessante, nesse ponto, comparar algumas outras propostas artísticas de meus contemporâneos conterrâneos, por exemplo , o trabalho do Kristoff Silva, do Rafael Macedo, enfim , vários outros muito bons compositores que provavelmente você não conheça. Para o Kristoff, com um diálogo intenso com a vanguarda paulista, especialmente Luiz Tatit, a harmonia é ainda mais complexa, mas sempre à serviço da letra. Já ouviu algo dele?

Eu – Ainda não. Já vi o nome relacionado a você e o Makely, que toma um caminho mais discursivo e de quem já falei no blog. É uma boa indicação. Vou buscar mais tarde. Pablo, acho que com isso o artigo se aproxima de estar pronto. Se tem mais algo que quer dizer, esteja à vontade.

Pablo – Cara, acho que talvez a única coisa que valeria acrescentar aqui, principalmente em contraste com a desconhecida cena autoral mineira contemporânea, de que faço parte, é que meu trabalho busca também um equilíbrio com a história da MPB, vamos dizer assim. Hoje, do que ouço de mais inovador na música popular, ultrapassaram-se certas formas arquetípicas de forma, melodia e tal, que eram estruturais na MPB clássica. Eu ainda busco dialogar com os “clássicos” de maneira mais sistemática, enquanto outros vão sem medo para um caminho radicalmente particular, às vezes beirando um certo hermetismo, mas ao mesmo tempo levando as soluções estéticas para lugares mais insuspeitos do que os meus. Talvez, num sentido muito específico, eu seja o mais tradicionalista entre os meus pares.

E meu P.S.: Talvez por isso um título inusitado como Anterior. Pablo não tem receio de dialogar com o passado. Sua música revela uma escuta apurada como condição inicial, e mais que isso, uma escuta escolhida que lhe permite uma construção meticulosa do próprio som. Um pé fincado no anterior, dando apoio e impulso para o passo à frente. De onde sempre se olha para trás com mais clareza, preparando o próximo passo.

O ponto oriental – de Pablo Castro e Luiz H. Garcia (clip voz e violão)

Moby Dick – de Pablo Castro e Luiz H. Garcia (clip voz e violão)

E o serviço: Pablo viabilizou este álbum pelo sistema de crowdfunding, por este site. A campanha já está encerrada, mas pode-se entrar em contato pelo email palavrasom@gmail.com . Ou comprar o CD aqui.

A página do diário íntimo elétrico de Beto Guedes

Para começar, com a palavra o músico Pablo Castro.

A Página do Relâmpago Elétrico, de Beto Guedes e Ronaldo Bastos, é mais uma dessas canções meio inexplicáveis, por mais que se tente analisar cada parte, visto que o conjunto é algo transcendente. Esse rock 12/8 , em versos de 6 compassos, depois alternando para 8, tem uma letra incomumente longa e das mais icônicas, imagéticas, e, alguém diria, vagas, mas de qualquer maneira incisivas, das melhores letras de Ronaldo Bastos. “Que nem ronco do trovão que eu lhe dou para guardar” está entre os versos mais surreais e cortantes do cancioneiro brasileiro, algo talvez inspirado em Guimarães. A melodia em graus conjuntos e saltos precisos se encadeia numa forma capciosa, com quatro longas estrofes, enquanto a execução instrumental decola depois da segunda estrofe pra avoar que nem asa de avião até o fade-out final. Harmonicamente, passeia no território modal/tonal e modula de C# pra E maior, passando por vários acordes com nona, sétima maior, baixos invertidos, enfim, e isso tocado com notável ferocidade, numa onda destituída de blue notes, por isso não é um típico roque, e por cima de tudo o cortante falsete arrepiante e estridente de Beto Guedes e as cordas rasqueadas do seu violão e bandolim. Ficha técnica : Bandolim, violão e voz – Beto Guedes; Violões – Zé Eduardo; Baixo – Toninho Horta; Bateria – Robertinho; Percussão – Hely; Côro – Vermelho, Flávio e Beto.

E mais talvez não fosse preciso dizer à ótima análise de Pablo, parte do projeto pessoal de esmiuçar a sua lista pessoal da 30 canções imprescindíveis do Clube da Esquina (do Facebook, a lista foi reunida em posts do ótimo blog Massa Crítica MPB: primeira parte, segunda, terceira, quarta e quinta). A primeira canção do primeiro álbum de Beto Guedes, de 1977, porém, como o próprio Pablo reconhece, tem uma soma que transcende a soma das partes, nas imagens que se acumulam como nos acordes maiores com sétima maior que se sucedem e nos levam por caminhos desconhecidos da tonalidade. A Página do Relâmpago Elétrico é a porta de entrada da música de Beto, sua carta de apresentação, o convite para a entrada em seu mundo, diário íntimo da alma desarrumada:

Abre a folha do livro
Que eu lhe dou para guardar
E desata o nó dos cinco sentidos
Para se soltar

É de se notar neste convite o terceiro verso, que, com a influência escancarada de Beatles e do rock progressivo nos mineiros do Clube, faz desconfiar do uso de ácido lisérgico, que aumenta a capacidade sensorial, gera alucinações visuais e auditivas, altera a noção temporal e espacial e causa sinestesias – estado neurológico em que os sentidos se confundem entre si, permitindo ver sons, tocar cores etc.. E não, por acaso, o convite para desatar os sentidos é seguido de uma sutil sinestesia, agora figura de linguagem: Que nem o som clareia o céu nem é de manhã.

A estrutura dA Página do Relâmpago Elétrico,de uma simplicidade enganosa, tem importância fundamental para entender melhor o mergulho a que ela nos chama. Da intrincada cadência da primeira estrofe, que vai se repetir nas seguintes, a única integralmente letrada é a primeira. Na segunda e na terceira, um trecho que tinha letra é tocado apenas instrumental, e os dois versos finais são cantados depois deste intervalo, porém integrando a mesma estrutura – o que pode dar a impressão de versos soltos a um desavisado. E na estrofe final, a parte da harmonia do instrumental é retirada, e os dois versos finais são cantados emendados, ou seja, a estrutura harmônica é abreviada.

Esta estruturação firme, porém com estas sutilezas, contrasta com a aparente desestruturação da letra, e é exatamente o que lhe dá a base firme para voar. Ao mesmo tempo, o convite para embarcar na viagem mental de Beto/Ronaldo se fortalçece ao observarmos a organização de cada estrofe: dos quatro versos iniciais que citei acima, os dois primeiros (A) se repetem com uma alteração (A’) para o agudo que serve de ponte para os seguintes, onde não há mais repetições melódicas. Este início com repetição serve de âncora estrutural para toda a composição, permitindo remissões inclusive na letra, como veremos adiante. Ao mesmo tempo, a frase (A’), finalizada para o agudo, anuncia a decolagem para uma sucessão de imagens que guarda relação íntima com as letras fantásticas do rock progressivo, seguindo a deixa dos versos de abertura, mas cruzada com algo do imaginário sertanejo mineiro que Pablo associa a Guimarães Rosa: e um cego canta até arrebentar.

Não por acaso, a entrada do peso instrumental de baixo e bateria se dá exatamente neste ponto, mas na segunda estrofe, o que é outra sutileza. Pois esta característica da introdução a um mundo paralelo (expressão clichê, mas vá lá) acontece simultaneamente em dois planos, na canção como um todo e dentro de cada estrofe. Por isso, a primeira estrofe é toda cantada apenas sobre violões, bandolim e percussão leve, numa suave cama flutuante quase como um acalanto (reforçado pelo compasso ternário), como um aprofundamento no sono para, com a irrupção instrumental, despertar, mas no outro plano, onde o caráter não lógico das frases da letra – e aparentemente arbitrário dos acordes – assume sentidos particulares, expressão bem a calhar. Vários sentidos a desatar seus nós.

Mas há ainda um elemento fundamental do pequeno estudo de Pablo a ser desenvolvido: a voz de Beto Guedes. Voz que outro blog que consultei localizou entre Bob Dylan e Neil Young. Voz desconfortável, cortante como navalha, que sobrevoa as nuvens das cordas palhetadas e a tormenta da explosão instrumental, e que, por cima disso tudo, pede silêncio:

Encontrar o coração do planeta
E mandar parar
Pra dar um tempo de prestar atenção nas coisas
Fazer um minuto de paz
Um silêncio que ninguém esquece mais

Mas um silêncio ele mesmo marcante, incômodo, e talvez por isso mesmo absolutamente necessário. A voz de Beto soa como a de um pregador no deserto. A paz e o amor que ele e Ronaldo pedem e pregam são ferozes, podem ser teríveis. E os versos que encerram a canção (repetidos na terceira e na última estrofe) explicitam esta ferocidade, ao contrastarem absurdamente com os imediatamente anteriores, que acabei de citar: Que nem ronco de trovão / que eu lhe dou para guardar. Um silêncio que nem ronco de trovão, que ninguém esquece mais. Fusão de contrários para não ser entendida, mas sentida com os cinco sentidos, e que é coisa que ninguém separa mais. Versos que remetem por sua vez aos primeiros, pela repetição parcial: o livro que Beto nos oferta é ronco de trovão do relâmpago elétrico, que é também silêncio, um minuto de paz em 5 minutos e vinte segundos de trovão. Um vislumbre da alma inquieta de Beto que nos é ofertado como seu bem mais precioso. Para guardar.

Rômulo Fróes e um debate

O artigo do Rômulo Fróes que postei aqui gerou também um intenso debate no Livro de Caras, provocado pelo compositor e cantor Chico Saraiva, que botou o artigo (publicado originalmente no jornal Estado de São Paulo) no seu perfil. A partir daí, um time de músicos passou a se pronunciar, incluindo o próprio Rômulo, e mais Mauro Aguiar (autor do ótimo álbum Transeunte), Silvio Mansani, Paulo Conceição Rocha, Pablo Castro, Makely Ka, o excepcional Sérgio Santos… e o que vos fala. Daí que considerei que não se podia deixar aquela quantidade de opiniões abalizadas (embora descompromissadas como em todo bom bate-papo, e às vezes até provocativas no calor da hora) descer linha do tempo abaixo. Portanto, transcrevo aqui a discussão (recomendando novamente a leitura anterior do artigo, linkado acima), eliminando apenas os comentários alheios ao assunto em pauta, para facilitar a compreensão. O post ficou longo, mas vale a leitura de cada vírgula, para se entender um pouco melhor como os acontecimentos de mais de 40 anos atrás são, de certa forma, determinantes daquilo que é considerado a modernidade da música brasileira atual. Aproveitem.

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Silvio Mansani: Ótimo texto, concordo que a galera tem curtido mais esse lance dos timbres com ótimo resultado aqui e ali… mas pra mim o plano da composição é fundamental porque foi onde o Brasil melhor se diferenciou do mundo. Opinião pessoal. Espero que essa nossa época de músicos (como nunca antes na história desse país) estudados chegue a uma bela síntese de nosso som. Acredito que muitas fichas ainda precisam cair…

Mauro Aguiar: Li e discordo de quase tudo. Mas quem sou eu, né? Concordo com o Silvio. Por que o dito moderno tem que passar por esse alinhamento? Esse julgamento do Luis Cláudio é simplista, peloamordedeus! Anteontem foi guitarra, ontem foi teclados, hoje é “barulinho”. Muita gente se pendura nisso, e a música continua soando, nota após nota, e alguns silêncios que ninguém é de ferro, né?

Sílvio Manzani: Verdade, Mauro, o que mais incomoda é o julgamento simplista do Cláudio, que fez coisas maravilhosas com o Chico. Mas o texto vale enquanto porque toca nas questões fundamentais, deixando seu ponto de vista. Quanto ao Caetano, acho fantástico quando a sua “modernidade” vem alicerçada por uma boa composição, o que nem sempre tem acontecido em seus últimos trabalhos. Para mim um belo arranjo não salva uma canção ruim (ponto de vista, novamente).

Paulo Conceição Rocha: Senhores, questão de clareza: fui ler o artigo tendo antes corrido os olhos aqui nos comentários “o julgamento simplista do L. C. Ramos”, fiquei curioso, mas o que rola mesmo (sem dubiedade) é um julgamento simplista (e eu diria, maldoso) SOBRE o L. C. Ramos. Enfim… o texto traz algumas boas análises mas, para mim, perde valor ao juntar os cacos do que foi analisado (quebrado). Ponto principal um: desde os lieds a canção não tem mais tanto vínculo com a forma somente. Ponto principal dois (e não menos relevante): se fosse pra ser prosaico bastaria dizer que “compor é organizar sons e pronto”, se fosse pra ser pirracento “pobre daqueles que não passam da página 20 nos livros de teoria e acham que depois do ritmo e da melodia, a harmonia é a coisa mais complicada na música ocidental”, mas serei (ou tentarei ao invés de meramente desfazer algo) construtivo no meu ponto de vista sobre o cenário atual (e o de sempre!!)… silêncio-ruído-intermitência-ritmo-textura-harmonia-melodia-tema-respiro-silêncio, perto do que Platão já chamou de música das esferas. E esse é apenas um padrão em parábola invariavelmente atingido pelo tempo, pelo caráter, pelo timbre, pela dinâmica etc. Mas, honestamente, voltando ao autor… não dá pra levar a sério quem escreve num jornal de grande circulação essa pérola “Os músicos dessa geração discutem sobre pedais, amplificadores, microfonação, válvulas, softwares de gravação, instrumentos antigos, etc., tanto quanto PROPRIAMENTE DE MÚSICA.” Então eu não sei mais o que é música!!

Sílvio Manzani: Paulo, minha leitura dinâmica não atentou para o “propriamente de música” kkkkk

Mauro Aguiar: Quanto a esse comentário: Os músicos dessa geração discutem sobre pedais, amplificadores, microfonação, válvulas, softwares de gravação, instrumentos antigos, etc., dou a palavra a Schopenhauer:

A cada trinta anos, desponta no mundo uma nova geração, pessoas que não sabem nada e agora devoram os resultados do saber humano acumulado durante milênios, de modo sumário e apressado, depois querem ser mais espertas do que todo passado. É com esse objetivo que tal geração frequenta a universidade e se aferra aos livros (substituiria nesse caso por tecnologias) sempre o(a)s mais recentes, o(a)s de sua época e próprios da sua idade. Só o que é breve e novo.” Ou seja se abraçam ao efêmero, como náufragos desesperados, tentando se salvar no meio de um oceano de signos insignificantes!

Paulo Conceição Rocha: Mauro, entendo perfeitamente sua linha de raciocínio (eu mesmo sou um brigão contumaz à Academia e aos ‘novíssimos’ processos artísticos, estéticos e blablablás)… mas a discussão que levantei com essa citação do autor não foi por conta de mérito ou demérito para qualquer geração… e sim pelo espanto de alguém não considerar PROPRIAMENTE música aquilo experimentado à guisa de timbres e técnicas… não estou levando em consideração absolutamente nenhum juízo de valor quanto ao produto dessa gente. Ah, vale lembrar que a música ocidental tal como nós conhecemos é quase um bebê se comparada às práticas sonoras (essas sim milenares) de outros povos… alguns deles estuprados pelas novas tecnologias da Europa pós-Idade Média.
E outra (só pra identificarmos um pouco apesar do facebook-capuz)… sou um grande viciado em estrutura musical (totalmente tapado em eletrônica ou barulhinhos). Mesmo que conteste o engessamento da Academia, vivo me escorando em técnicas literárias e compositivas para escrever nem que seja um recado em papel de pão… contudo sou eu mesmo que as tento criar, só servem pr’aquele propósito… natimortas… tais qual poesia mergulhada em idioma instantâneo. Estou certo que discordamos nesse ponto, mas às vezes o produto é a coisa menos importante… processo porém. É que ferramentas também gostam de ser inventadas!!

Eu: Senhores, estou aqui lembrando de uma entrevista do Caetano há anos, falando do distanciamento entre os tropicalistas e o Chico, ainda na década de 60/70. Ele dizia que o Chico e outros continuavam na busca do belo, enquanto ele, Gil, Tom Zé, se interessavam também pelo que era, de alguma forma, feio. Acho que isto tem um pouco a ver com o texto do Rômulo. Grosso modo, é uma separação de dionisíaco e apolíneo.
Agora, outra coisa é pensar na questão do timbre como um condutor da canção, tanto quanto letra, melodia e harmonia. Se antes da bossa nova a harmonia era, de certo modo, secundária, a geração do Chico e Caetano a recebeu já posta na linha de frente. Mas o tropicalismo foi o primeiro momento em que o timbre se assumiu também protagonista, a ponto de eventualmente ofuscar outros componentes. Então, acho que isso passa pelo que o Wisnik chama de canção expandida. O Chico permanece como um mestre pré-timbre (não cronologicamente), o Caetano fazendo questão de se atualizar, mas ambos mantendo-se fieis ao que determinaram para suas obras ainda em 68/69, indo à últimas consequências. Enfim, elucubrações. Abraços a todos.

Chico Saraiva: Lendo ainda só o, já muito interessante, último escrito. É aquele negócio da “régua e do compasso” né… O Tatit no “século da canção” traça isso entre o tropicalismo e a bossa. mas como o chico diz que “tudo que fez foi pro Jobim”, concordo com Túlio, parece ser equivalente…

(Chico então abre um novo post para levar o debate adiante)

Camaradas, acordando em casa e com água-cristal de cachoeira de ouro preto ainda no corpo procuro então ajudar na busca contínua do cristal-idéia, que possa multipicar luz…
Ainda na “Régua/Compasso” que muitos apontam (tatit por exemplo em o “século da canção” – com a bossa em uma das pernas) como os dois principais parâmetros da música brasileira, em jogo que se dá entre o sentido “extenso” de “Buarque/Jobim” e “Tropicália”:
As noções de “moderno”ou”novo”ou”atual”ou “contemporâneo” variam de caso pra caso. Felizmente até pois é sinal de fertilidade, e a faísca do choque normalmente faz fogueira. Porém as vezes estão simplesmente falando de coisas diferentes e claro, gerando confusão de entendimento.
Hoje os jornais, com exceção do Tárik de Souza e não muitos outros, consideram o “novo” na acepção “pop”, que o tropicalismo sempre soube mastigar e que hoje se serve tanto dos “pedais” quanto dos sensacionais softwares que, a partir do clique/beat, chegam a resultados texturais (que a partitura nunca atingiria) com um simples “ctrl c ctrl v” e que com trabalho duro gera música. Esse trabalho mais rítmico-timbrístico, e mais dado á “De-Composição” (no melhor dos sentidos) é aqui a “Régua” tropicalista.
Mas há também o entendimento, “Buarque/Jobim” do que seria o “novo” . E, falando do que sei (que é música e não letra) esse impulso age no sentido da Composição melódica-harmônica. Busca que chega a pontos radicais nos últimos cds do Chico Buarque, que não cessa (e nem deve cessar) de intuir mais e mais soluções musicais para o que aprendeu ao pé do piano de Jobim. E vasculhar a explosão do sistema-harmônico-tonal que paira no ar historicamente ao alcance do ouvinte “médio”. Eis o “compasso”.
O curioso é que o “novo” para “jobim/buarque” por ser melódico-harmônico é tido como o “velho” pelo “tropicalista de hoje” qdo esse se torna quase exclusivamente tímbrístico-rítmico.
Ué!! Já que estamos aqui e temos essa riqueza toda de possibilidades vamos usá-las, e agir artísticamente!!
Salve a música melódico-harmônica-timbrística-rítmica !!!!
Agora vou tomar banho.

Rômulo Fróes: Caro Chico! Sem me estender muito, pois não caio nesse discurso Fla x Flu, Jobim/Buarque x Tropicália e sei que você também não!
Em momento nenhum no meu texto, pra quem ler com atençÃo, coloco Chico ou Caetano a frente do outro. Ao contrário, falo, penso, discuto os dois por achar que hoje são eles, os grandes da nossa música, ainda mais se pensar na triste figura de Milton Nascimento, no afastamento de Gil para a Política e em Paulinho que não grava mais e que numa entrevista disse não querer mais compor!
Pois bem, dito isto, o mote central do meu texto é que Chico e Caetano são os dois que ainda tentam levar adiante a canção brasileira, cada qual a seu modo. E a meu ver, Chico encontra mais dificuldades, justamente por não estar ligado no novo jeito de produzir música que é algo muitíssimo importante e que vai muito além dos pedais.
Do ponto de vista da composição, meu texto é claro pra quem quiser ver, que glorifico os três últimos discos de Chico, digo que ele talvez tenha encontrado novos caminhos na linha que você chama de melódico-harmônico, não só na musica dele, mas para a própria canção brasileira, não chamei hora nenhuma esse caminho de velho.
O que chamo de velho e acredito mesmo nisso é seu comportamento em relação a gravação dos seus discos, sem nenhum comprometimento, deixando para os outros o trabalho de registrar as canções em disco. Isso já foi dito por Chico e fica claro no documentário do disco Carioca.
Pois então, para mim, esse comportamento que ao longo de sua carreira não impediu de construir sua grande e incontestável obra, talvez nesse novo momento que vivemos, impeça a plena realização da novidade que são suas canções recentes! E volto a afirmar, acho os arranjos dos discos de Chico Buarque muito pobres, sem nenhuma imaginação. Digo isso sem ofensa, nem polêmica, artifícios dos idiotas.
Para mim discutir a obra de um grande artista, como são Chico e Caetano, está longe de desrespeitá-los, ao contrário, só exerço meu pensamento com quem tenho grande admiração!
Isso porque não iria me estender muito,rsrsrs
Grande abraço seu Chico!

Pablo Castro: Sou a favor das duas “novidades” : a composicional e a de arranjos , timbragem e produção nas gravações. Mas sinto muito que o pólo vigente hoje tende muito à segunda : daí que, embora admire a audácia, os últimos discos de Caetano não me convencem tanto. Mas concordo que o Chico entregou há uns 30 anos a produção de todos os seus discos ao Luis Cláudio Ramos, excelente arranjador, mas conformado ao modelo clássico de sonoridade . Na época do Francis Hime como arranjador dos discos do Chico, a coloração era mais variada, por vezes mais pesada, de qualquer maneira mais incisiva. O Caetano parece querer sair mais e mais desse lugar confortável, o Chico parece resignar-se a ele. Mas parece ter mais direção como compositor hoje, mais consistência, o Caetano vai pra onde ninguém foi …

Sérgio Santos: Meu caro Chico Saraiva, tudo bem com você? Esse assunto é de corroer as entranhas e, por ser o cerne da apreciação que se faz hoje da nossa música popular, merece páginas e mais páginas de reflexão. Li o artigo do Estadão, de Romulo Fróes de Carvalho, e, respeitosamente, discordo de quase tudo ali. Ele me parece produto de uma maneira atualmente predominante de pensar a música em geral, e mais particularmente a canção, maneira essa que parece abolir da avaliação da música a importância dos seus componentes principais – harmonia, melodia, ritmo, e no caso da canção, o texto. Aos olhos dos que comungam essa visão, a lida monstruosa que significa o domínio dessa linguagem perde importância gradativamente, perdendo significado diante do que hoje passou a se chamar “produção”. É tanta a reverência às “sonoridades” que a tecnologia traz, que o olhar dito moderno sobre a música atual classifica a não utilização desse arcabouço como retrocesso. A importância que se dá ao todo poderoso “produtor” capaz de gerar as novas “sonoridades” é tal que se questiona o produtor de Chico, como se ele fosse um artista incapaz de ter nas mãos as rédeas do que faz, ou mesmo de demitir seu produtor caso percebesse algo que fuja de sua concepção musical. Critique-se a Chico pelo que for criticável em sua obra, ele assina a concepção do que faz. Tudo bem Caetano ter perdido o medo da música com Morelenbaum. Certamente isso elevou seu trabalho. Afinal, até onde sei, Caetano é compositor de música. E tudo bem também que depois tenha buscado outro rumo. A eleição desse caminho como paradigma é que me parece um grande problema!! Parece que a busca da renovação que passe pela elaboração do conteúdo daquilo que você tão bem classifica de “composição melódico harmônica” (e essa busca de renovação existe em uma infinidade de trabalhos recentes), simplesmente não seja mais possível sem que passe pelo apertar dos botões da manipulação de timbres de um processador. Nada contra isso, mas por favor, sinto que o padrão de julgamento que qualifica “ser novo” e “ser velho” partindo desses princípios está ficando cada dia mais deturpada e infantil. Sem desmerecer um milímetro quem segue o caminho da eletrônica, há que se reconhecer que saber lidar com aparelhos não faz de ninguém melhor músico do que alguém que se dedica de outra forma à composição. Eu, por exemplo, tenho dedicado horas da minha vida a entender como soa a combinação de timbres entre um violoncelo e um fagote, em que região e com que expressão eles melhor se somam, ou que efeito é possível conseguir com suas diferenças de timbre. Será que eu sou “velho” e consequentemente ultrapassado por isso, comparando-me a alguém que lide com a produção tímbrica possibilitada pela eletrônica? Música para mim não é isso. Isso está mais próximo do preconceito que da música. Os dois caminhos são meras ferramentas de desenvolvimento de idéias. As idéias sim, elas serão inovadoras ou não, ou melhor ainda, originais ou não!!! Citando dois trabalhos recentes, Canteiro, de André Mehmari, e Flor de Fogo, de Chico Pinheiro (poderia citar dezenas), vejo neles belos exemplos de mergulhos na complexidade da linguagem musical. Prescindiram de qualquer base eletrônica. Estão desconectados de seu tempo por isso? Talvez seja menos perceptível e mais difícil aos ouvidos aquilo que envolve a complexidade harmônica e melódica. E bem mais trabalhoso de se gestar. As inovações da “sonoridade” eletrônica, ao contrário, são imediatamente perceptíveis. Mas quem sabe até quando isso será visto como “inovador”? Coisas do tempo. Eu cá comigo, torço para que a música brasileira não se renove apenas pelo “som”, mas principalmente por aquilo que esse “som” veicula, as idéias musicais criativas, as belas composições, as belas melodias, as belas harmonias, as inovações rítmicas, a elaboração e a complexidade, estejam elas em que “som” estiverem. Se forem criativas, fatalmente estarão sendo levadas por um “som” igualmente criativo, portanto por um belo “som”. Um abraço grande Chico!!!!!

Chico Saraiva: Salve camaradas.
Agradeço as palavras, inclusive a do autor do artigo, no qual vi polaridade e por isso apertei no “share”. E que está fazendo agente trocar idéias , portanto, funcionando.
Li. E se tem uma coisa que me dá felicidade é ver a música brotar de coisas aparentemente distantes. Acho mesmo que isso acontece com todo mundo que compõe, só variando os pólos de atração pra cada pêndulo-artista. Pelo menos só tomo como referência quem tem essa incapacidade de escolha nítida, apesar de admirar as, cachaças por exemplo, puras. E mesmo no que supomos puro isso acontece, pois pra ser puro primeiro foi misturado, e tá lá o boi comendo a bagaceira da cana, que não me deixa mentir.
E nós demos a sorte de nascer no Brasil, terra do misturado.
Com o que aprendemos com a grande geração de cancionistas dá pra fazer de um tudo. e tudo tá aí pra ser feito. das mais variadas maneiras, sem que procuremos um espelho exato do nosso modo de fazer no modo de fazer do outro. o que aliás seria chatíssimo. Vamo no plural que esse é a nosso cacoete.
E o papo não é evasivo, é de tentar pelo menos trincar os muros que vão se criando. É crença no “indefinido”, e respeito pela diferença e pela força maior que brota dela.
Cito um pensamento que me veio.

Esse regime de “indefinição” (entre o branco e o preto, entre o
homem e a mulher, entre a casa grande e a senzala) continuaria a ser
pensado como nossa principal característica, nossa grande
particularidade, e também como aquilo que nos dá “graça”.
Hermano Vianna em “O mistério do Samba”

Boas noites camaradas!
Agradecendo de novo á Rômulo, Sérgio e Pablo e os amigos que estão curtindo o papo que tem tudo pra ser é muito bom.

Pablo Castro: Uma coisa interessante a se notar dentro dessa dicotomia é a influência perene do tropicalismo que, ao abrir o leque das influências antropofagocitáveis, num contexto histórico explosivo, acabou criando uma tradição da eterna assimilação dos elementos da indústria cultural, e uma quase impossibilidade de criticar a imposição de vários desses elementos na música brasileira. Ilustrando isso, note-se o especial de fim-de-ano da Globo, em que Gil e Caetano aparecem com Ivete Sangalo como se fosse a coisa mais natural do mundo. O próprio efeito perverso da dominação da Globo de norte a sul do país sequer é comentado nem por Caetano nem por Gil- embora seja importante lembrar que como Miinistro da Cultura Gil chegou a enviar para o Congresso o projeto da Ancinav, que pretendia regulamentar minimamente a questão da mídia e sua correlação com a produção cultural do país ( o projeto foi , naturalmente, barrado) . A música brasileira hoje evita qualquer tipo de reflexão e crítica, pior ainda, se consolidou em torno dela uma espécie de pirâmide simbólica de nobreza, totalmente impermeável a qualquer coisa que não seja o mercadão, caracterizado pelo amplo predomínio do jabá e por relações sempre afáveis entre os artistas , vemos de Lulu Santos a J Quest, Charlie Brown Jr a Michel Teló, Lenine a Ana Carolina, de Otto ao Rappa, um quadro tão desfigurado e sem liga que dá pena saber que a música brasileira seja representada por uma amostra tão limitada de expressões musicais – limitada não pela falta de heterogeneidade, mas pela falta de qualidade mesmo, simplesmente. Essa clara diminuição da importância da canção na história cultural do país se dá muito mais pela manutenção dessas relações oligopolísticas entre as gravadoras, as tvs e as rádios , do que pelo esgotamento da linguagem intrínseca da canção, como chegou a sugerir Chico Buarque na citada entrevista de 2004.
Outra coisa que me incomoda em relação tanto a Chico quanto a Caetano é o absoluto descompromisso com as novas gerações de cancionistas, acho que a intuição deles seja a de que não há mais o que fazer de significativo em matéria de canção, depois de sua própria geração. Isso é o que perpassa a idéia da morte da canção , em que Chico parece querer dizer : : depois de mim quem vai sequer se igualar em termos de obra, quanto mais me superar ? Provavelmente ninguém depois dele vai conseguir se igualar em termos de influência cultural, alcance da obra, quantidade de obras-primas, impacto político etc Mesmo no aspecto puramente composicional, harmônico -melódico, pra não falar das letras, é muito difícil um compoisitor hoje construir uma obra tão vasta, tão original e auto acumulativa como o Chico. Ou tão absolutamente inovadora e poética como a do Caetano. Mas isso não significa que seja impossível fazer coisas novas na canção, na harmonia, na melodia, no ritmo, na letra. Realmente tendo a concordar mais com o Chico Saraiva e com o Sérgio Santos : é mais difícil fazer uma música original do que um arranjo ou uma produção originais. E mesmo os filtros que deveriam selecionar entre a produção musical independente o que seria realmente original , falham continuamente nesse propósito, preferindo no mais das vezes simplesmente encaixar trabalhos bem feitos em categorias próximas às do mercado. Nesse ambiente, é o vale-tudo : a quantidade de gente fazendo música hoje , e o alvoroço em difundir essa produção na internet diluiu tanto a música que pensamos estar numa terra de surdos.
Pra finalizar, só pontuando o que o Sérgio Santos falou : a criatividade e a originalidade melódico-harmônica devem ser buscadas, mas nem sempre o arrojo e a complexidade musicais por si mesmas geram grandes canções ; na imensa maioria das vezes, quando grandes instrumentistas ou compositores de música instrumental fazem canções, o resultado tende a ser aquém da expectativa, em geral faltam uma forma sintética e uma relação mais orgânica entre letra e melodia.

Makely Ka: Muitas questões aqui Chico e Rômulo! Na verdade o que mais me chamou atenção nem foi a discussão do tema em si, que é pra mim tão orgânico que não se apresenta mais como dicotomia, digerida que vem sendo aos poucos no meu próprio trabalho. Acho que as posições aqui já estão definidas com bastante clareza e não quero entrar aqui na questão dos arranjos protocolares do Luiz Cláudio Ramos nem nas habilidades técnicas do Pedro Sá. Acho também que inevitavelmente, para quem mergulha na canção, o paradigma Chico e Caetano está tão presente que parece ser possível ouvirmos cada um em ouvidos separados num headphone com canais independentes para deixar o cérebro misturar as referências como pano de fundo de nossa própria música. Como se fosse normal e confortável ouvir Carioca e Zii e Zie ao mesmo tempo!
Fora isso acho muito significativo e sintomático que reflexões tão profundas sobre o fazer musical estejam sendo feitas exclusivamente por músicos/compositores. Não admira portanto que a matéria que gerou a discussão tenha sido escrita por um outro compositor. Fico me perguntando se será um indício de que a crítica não consegue mais acompanhar o raciocínio.
O tema recorrente da morte da canção me parece nesse sentido mais uma dificuldade de interlocução com a crítica, que por sua vez sempre cumpriu o papel histórico de mediar a relação com o público, menos como tradutor que como instigador. Talvez porque as inovações hoje sejam mais sutis, o alcance menor, o retorno a longo prazo e o tema muito complexo.
Por acaso essa semana eu li na Bravo um artigo falando exatamente sobre a formação sentimental dos lusitanos a partir das canções de Chico e Caetano escrito por uma portuguesa. Fiquei surpreso que esse ainda seja um tema para os portugueses, e não somente um tema para os “músicos e compositores” portugueses. O texto é esse e demonstra a perícia e paixão que nossos jornalistas parecem ter perdido no decorrer dos anos (matéria aqui)

Sérgio Santos: Caro Makely, não sei, tenho grandes dúvidas se o que pra você é orgânico e deixou de ser dicotomia, de fato funciona assim tão digerido e assimilado para todos que se ocupam da música. Na verdade o que sinto é que há sim dois universos distintos, e que um deles é visto como continuidade do outro, no sentido de uma linha evolutiva. E é exatamente esse aspecto, essa idéia da qual discordo, que permeia a todo o texto do Romulo. Não estou aqui me referindo a Chico versus Caetano, mas às maneiras de se pensar e produzir música hoje. Acho que a tecnologia trouxe sim uma espécie de ruptura nisso, estabelecendo uma maneira distinta de realização, e com isso pouco a pouco foi se gestando um novo caminho estético. Na minha opinião, e isso é apenas a minha opinião, vejo isso muito mais como um rompimento gradativo, e cada vez mais estético, do que como uma linha evolutiva. Resumindo, não consigo achar que Pedro Sá ou Kassim sejam a evolução de Morelenbaum ou de LC Ramos, por mais que se possa gostar de uns ou de outros. Para mim, eles apenas lidam com linguagens diferentes e com maneiras diferentes de produzir música. Não cabe exigir de Morelenbaum ou de LC Ramos que produzam uma textura eletrônica, ou de Pedro Sá que escreva para orquestra. Eles poderiam até fazê-lo, mas nunca melhor do que aquilo que fazem em seus próprios universos. Não consigo entender que Chico tenha mais dificuldades em levar adiante a canção brasileira por não estar ligado ao novo jeito de produzir música, como acima afirma Rômulo Fróes. Nesse raciocínio está implícito que há uma única possibilidade evolutiva para nossa música, que é a filiação ao universo gerado pela tecnologia. Esse raciocínio, e ele existe como modo de pensar de uma grande parcela de quem produz e de quem “critica” música (concordo com você na sua opinião sobre a “crítica”), é o que define um caminho como evolução do outro, na minha opinião de forma equivocada. Eu vejo isso muito mais como universos distintos, com parâmetros diferentes, e que exigem critérios diferentes de produção, de avaliação e de fruição. Acho que todos os que se ocupam da música criativamente, independente da linguagem formal à qual se filiem, estarão contribuindo para a evolução da música brasileira, sendo a sua criatividade dentro dessa linguagem o único parâmetro válido para se avaliar essa contribuição. Mesmo que se queira passear pelos dois universos, para isso é preciso trocar os chips. E é ótimo que haja artistas que queiram fazê-lo, como Caetano, ou você. Da mesma forma que é ótimo haver os que só se dão bem com os botões; ou os que, como eu, não se sentem à vontade com eles. Não é a atitude individual que questiono. O que não me bate, e o que me soa como um grande equívoco, é enxergar um universo como evolução do outro.

Eu: Caramba, que maravilha de debate. Queria meter minha colher, partindo de um detalhe aparentemente insignificante, para depois generalizar. Não sei mais quem falou aqui que o Caetano teria “perdido o medo da música”, como definiu o Sérgio Santos, com o Morelenbaum. Acho que esquecemos aqui que ele trabalhou com o Duprat bem antes, o Duprat que era ligado às correntes da vanguarda musical erudita (assim como o Tom Zé, que é formado em composição). Numa comparação entre os dois arranjadores, o tratamento musical do Morelenbaum soa conservador.
E daí voltamos ao Tropicalismo como o divisor de águas desta história, a meu ver. Pois, grosso modo, até a bossa-nova (e aí me remeto ao que diz o Luiz Tatit) a composição brasileira era fundamentalmente melodia e letra, da qual se inferia harmonia – e isso valia mesmo para gênios como Pixinguinha, que foram tanto mais geniais talvez por estarem atados a estes parâmetros. Aí vem a bossa-nova, e incorpora um novo elemento, ou melhor, coloca-o em pé de igualdade com os outros: a partir daí, faz sentido pensar numa canção composta a partir da harmonia, com melodia e letra vindo depois – exatamente o ponto de Chico, d’après Jobim. E com o Tropicalismo surge pela primeira vez na canção brasileira (na brasileira, repito) a questão do timbre como elemento diferencial, no sentido de interferir na própria composição. E acontece a bifurcação entre Caetano e Chico – bifurcação que não é necessariamente completa, mais da parte do Caetano, que sempre voltou a se reportar à bossa-nova, enquanto o Chico permanece mais ou menos fiel à idéia de desenvolver até seus limites o modelo harmônico que herdou.
Desculpem se acabo soando meio didático (mas tinham sentido falta de críticos do debate…). O que enxergo é que hoje, como o Rômulo diz no artigo (ou numa entrevista que li, não sei), e o Makeli confirma, o que era rompimento no Tropicalismo hoje se apresenta como mais uma possibilidade, como um, ou vários novos instrumentos, ou como uma multiplicidade de métodos composicionais, vertentes diferentes que coabitam e podem trocar. Estou ouvindo o Recanto, canções de Caetano para a Gal Costa, arranjos eletrônicos em geral, e percebo que a maioria das melodias é extremamente simples, e me parece que de propósito, como se o Caetano quisesse se adequar a este universo. Na canção mais elaborada harmonicamente, Mansidão, que é na verdade uma bossa-nova e cuja letra faz menção a um violão que não se ouve (o contrário das obviedades que o Rômulo aponta no Luiz Claudio Ramos), o arranjo também é quase obrigado a ser menos cheio dos barulhinhos de que se falou. Então, são pontos de partida diversos, e há que se adaptar.
Finalizando, creio que há hoje diversos pontos de partida composicionais, frutos de uma história da música brasileira, e que podem e devem dialogar entre si, sem necessariamente condenarem um ao outro. Esta turma da qual o Rômulo, o Kassim e tantos outros músicos excepcionais fazem parte está investindo em algo próximo daquilo que o Wisnik identificou como a canção expandida, em que, a meu ver, o elemento timbre (e por extensão suas possibilidades de exploração num estúdio) tem papel fundamental, mas o próprio Rômulo já reconheceu uma vez que ainda falta uma certa maturação nos cancionistas desta turma para chegarem a um grau de excelência comparável ao da turma que trabalhou e trabalha partir das questões harmônicas e melódicas – nos quais incluo o Chico Saraiva e o Sérgio Santos – embora eles, obviamente, tenham uma enorme preocupação com o timbre também, ou não seriam músicos. Além destas duas possibilidades, pode-se pensar também no pessoal do rap, que parte dos elementos letra/ritmo, depois o timbre, harmonia por último. E vai por aí afora. Saudações.

Sérgio Santos: Caro Túlio, a a firmação de que Caetano teria dito que perdeu o medo da música com Morelenbaum veio do artigo de Romulo Fróes. Não consigo pensar como você, vendo Morelenbaum conservador em relação a Duprat. O que é ser conservador? O que acho é que eles são de praias diferentes e que ambos serviram como veículo das idéias musicais de Caetano, em momentos distintos. É Caetano que define o que quer dos seus trabalhos, e é ele quem determina a sua concepção e escolhe os seus produtores, o martelo é dele. Para concordar com você é preciso assumir que o Caetano que interagiu com Morelenbaum é conservador em relação ao Caetano do início do tropicalismo. Na verdade são fases distintas de um compositor inquieto do ponto de vista formal, e que lançou mão de diferentes arranjadores para viabilizar suas idéias. Também discordo que foi o tropicalismo que trouxe a questão do timbre como elemento diferencial. O tropicalismo pode ter incluído outros timbres como o da guitarra e do baixo elétrico, mas o timbre enquanto elemento musical já era explorado, e magnificamente, por Radamés, Cyro Pereira, Lyrio Panicalli e tantos outros maestros que tão bem sabiam usar o elemento timbre. A introdução de Aquarela do Brasil é tão conhecida quanto a própria composição, mesmo sem constar dela.

Eu: Sérgio, entendi o seu ponto, retiro a palavra conservador. Ela fica contraditória com o que escrevi depois, em relação aos vários caminhos. Reconfiguro dizendo que o Morelenbaum parte de um princípio diferente, que privilegia melodia e harmonia, enquanto o Duprat privilegiou timbre – agora, é óbvio que privilegiar um aspecto não significa descurar outro, é uma questão do que vai para a boca de cena em determinado momento – falando de arranjo.
Quanto à outra questão, Sérgio, tenho consciência que há inúmeras exceções à minha, digamos, generalização didática. Eu me referia exclusivamente ao uso do timbre como ponto de partida para a composição, prevalecendo sobre melodia e harmonia, ou mesmo eventualmente dirigindo-a. Sem dúvida a introdução da Aquarela é parte da música, e os maestros citados são mestres no timbre. Mas os arranjos deles somente poderiam influenciar a canção a posteriori, enquanto hoje há a possibilidade de se criar uma canção a partir, digamos, da sonoridade de um teclado, ou de um efeito de estúdio. Enfim, o que quis foi diferenciar a questão orquestral e de arranjo, onde o timbre sempre foi fundamental, da composição da canção, onde ele surge mais recentemente.
Mas agora me dou conta que na música regional brasileira, que é em grande parte o seu universo, o timbre se reveste de uma importância diferenciada, num caminho totalmente à parte do que é trilhado por esta rapaziada urbana, e é talvez a isso que você se refira. Foi exatamente este universo timbrístico tão rico que influenciou Guerra Peixe, Edu Lobo. Acho que este pode ser exatamente um ponto de encontro entre estas vertentes, como – e aí volto a usar o álbum da Gal como exemplo – na última faixa, em que o velho garfo no prato do Recôncavo fecha um álbum todo eletrônico, e sem choques, como um encontro. Espero ter me explicado melhor. Grande abraço.

Sérgio Santos: Caro Túlio, o uso do timbre enquanto elemento composicional não é nada novo, e todo o desenvolvimento orquestral da música ocidental se apoia nisso. Compor para uma determinada formação instrumental significa saber lidar com seus timbres, suas combinações, e é o vocabulário próprio a cada instrumento, suas possibilidades melódicas e as especificidades de seu timbre o que vai interferir e determinar o desenvolvimento da composição. Isso é assim a séculos. Foi assim com Villa lidando, por exemplo, com cellos e voz de soprano na Cantilena das Bachianas, ou Cartola com o seu violão e sua voz. Se eles usassem formações diferentes, teríamos possibilidades diferentes, e consequentemente músicas diferentes. O próprio Edu Lobo que você cita, afirma que há na sua música a que é de piano e a que é de violão. O timbre sempre foi fundamental! O seu uso em si como elemento determinante da composição não é uma conquista do tropicalismo. O que há, repito, é a incorporação de timbres diferentes aos usuais na época, o que, por si só cria novas possibilidades e caminhos. E isso se acentua hoje, graças às possibilidades da tecnologia, e, principalmente, por colocar esse universo à disposição de um número muito maior de pessoas que se dão melhor lidando com botões e equipamentos do que com instrumentos (sem demérito, por favor). Mas tudo isso são apenas novas possibilidades e não há porque considerar que usá-las ou não defina o que seja “novo” e “ultrapassado” em matéria de composição. Não há absolutamente nada de especial ou de novo no fato de se criar uma música a partir da sonoridade de um teclado ou de um efeito de estúdio. Pode se fazer isso desde sempre a partir de qualquer som. Semana passada compus uma valsa dedicada ao maravilhoso clarinetista italiano Gabriele Mirabassi, totalmente motivado pelo timbre do clarinete que ecoava na minha cabeça. Se ele tocasse trombone a composição seria outra. Não há nada de genial em timbres eletrônicos além do que há de genial em qualquer timbre.

Chico Saraiva: senhores, vamos pensando só pelo prazer de pensar.
Tem mesmo uma diferença enorme entre:
o que busca um músico que trabalha todo santo dia (no dedo, no bico, no relaxamentos do pescoço…) pra tirar uma “sonoridade plena” de seu instrumento acontece com o grande músico e camarada Mirabassi. No caso dele tangenciando a escola efetivamente “erudita”. De fato músicos assim inspiram o compositor “melódico-harmônico” (de canção também, por que não?) pois o desenho melódico, o canto, alça o tão desejado vôo da composição.
o outro lado da busca, o qual sem dúvida conheço bem menos e outros daqui podem aprofundar melhor,mas acompanho assim por alto no cotidiano de alguns amigos mais ligados á tecnologia e que tenho trabalhado em meu novo duo de violão com Daniel Murray, parece evidentemente chegar a outro conceito de timbre, incorporando o ruído, coisa que acontece muito na música erudita desde o crash do sistema tonal. Isso o tropicalista sacou cedo como Túlio mencionou aqui.
Vivemos ao longo do século passado uma polarização, que reverbera muito muito fortemente (como vemos), entre o NACIONAL erudito/POPULAR (no sentido mais foclórico) e a VANGUARDA/MERCADO. A questão é fruto do catastrófico programa-modernista, e tem já quase a mesma idade da canção “comercial”.
Não é mole, mas já tá na hora de virar a página…abraços!!!

Eu: Sérgio Santos, queria destacar justamente a sua frase que me parece fazer a aproximação entre o esquema que eu tentei traçar – e que, como bom esquema, é bem esquemático – e a sua opinião:

O que há, repito, é a incorporação de timbres diferentes aos usuais na época, o que, por si só cria novas possibilidades e caminhos. E isso se acentua hoje, graças às possibilidades da tecnologia.

Eu entendo o Tropicalismo menos como um rompimento que como uma abertura – como o Caetano falava, da linha evolutiva. O Tropicalismo foi um momento em que se tratou desta questão do timbre com muita ênfase, não necessariamente por ser inédita, mas de uma maneira muito mais deliberada do que as questões idiomáticas que você citou, Sérgio – do Edu e do Cartola, por exemplo. Não acho que seja à toa que o Rômulo e outros se considerem ligados ao Tropicalismo no uso destes elementos tímbricos novos que a tecnologia trouxe.
Mas enfim, agora me retiro um bocado e deixo as discordâncias discordarem, esperando outras opiniões, senão fica chato. Abração.

Sergio Santos: Caro Túlio Ceci Villaça. Só tentando clarear um pouco mais a minha opinião, concordo que a Tropicália tem mais o significado de criação de possibilidades diferentes que de ruptura. No entanto não a vejo como linha evolutiva, até porque a continuidade do pós-bossa nova (digamos, a tal MPB) se fez à revelia dela. A grande obra de Tom, Baden, Chico, Milton, Dori, Edu, seguiu adiante. Até mesmo Caetano e Gil se somaram a essa trajetória. A grande diferença do que vem ocorrendo agora, é que esse novo caminho tecnológico, pelas possibilidades que traz, pelas características da produção nesse universo, pouco a pouco vem construindo uma vertente estética, essa sim, com um sentido muito mais carregado de ruptura. Não se trata mais de algo como o Egberto Gismonti lidando com os sintetizadores, há décadas atrás. Ali era a linguagem musical do Egberto vestindo um determinado arcabouço sonoro. Hoje, o próprio arcabouço tecnológico já interfere decisivamente na linguagem. Não é gratuita a afirmação que há no artigo do Estadão: hoje os músicos dessa vertente se concentram mais em discussões sobre softwares, processadores, samplers, etc, do que em instrumentos, porque isso é mais determinante para o resultado sonoro que querem. Posso estar enganado e morder a língua, mas esse caminho vem tomando uma dimensão cada dia mais hegemônica na nossa música, e com resultados totalmente diferentes dos que não optaram por ele. Ao contrário de você, acho um pouco difícil o cruzamento desse universo com o outro. Até aí, nada de mal, pelo contrário, são novas formas de expressão, o que obviamente não garante por si só a expressão com qualidade artística. Mas certamente há arte e artistas nessa concepção, e isso é espetacular. No entanto, o colossal problema é quando vai alguém e inclui nessa discussão o conceito de evolução artística. Há, sim, evolução tecnológica. Mas nada me mostra que a música tenha que passar por esse caminho para evoluir. Nada me diz que ele tem, por si, algo que o faça dono da modernidade estética. Nada me mostra que seja imprescindível que a canção passe por esse caminho para significar novidade. Foi essa idéia de evolução que me incomodou profundamente no artigo do Estadão. Um abraço grande.