Atribui-se a Pedro Aleixo, vice-presidente do marechal Costa e Silva, uma frase famosa, que ele teria dito na reunião que decretou o AI-5, em 13 de dezembro de 1968, quando se inaugura o período mais feroz da ditadura militar. “O problema deste ato”, teria dito Aleixo, “não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país, mas o guarda da esquina.”
O trecho acima vem do artigo O guarda da esquina e sua hora, de Fernando de Barros Silva, editor da revista Piaui, anterior às eleições de 2018. Apesar de tratar especificamente de como a louvação da Ditadura Militar e seus crimes e a incitação da violência da campanha de Jair Bolsonaro prenunciavam o que estaria por vir em um governo seu – previsão perfeitamente confirmada-, o trecho destacado e que nomeia o artigo trata de uma herança mais ampla, e na qual o governo protofascista de Bolsonaro apenas surfa: a do aparato ideológico ditatorial aplicado hoje menos contra dissidentes ideológicos (mas novamente contra eles no governo atual), e mais e sempre contra pretos, pobres e moradores da periferia em geral. E se fosse necessária apenas uma prova no âmbito artístico desta herança nefasta e perene, a melhor de todas talvez fosse o álbum de 1999 do Rappa, Lado B lado A.
Lado B Lado A é o ponto máximo e último da formação da banda que fez os seus três primeiros (e importantes) discos. (…) O disco de 1999 foi o que deixou o legado desta formação inicial, e fecha uma trilogia não explicitada, mas cristalina nas suas transformações sonoras ao redor da poesia, cada dia mais refinada e contundente de Marcelo Yuka. O Rappa (1994), Rappa Mundi (1996) e Lado B Lado A (1999) nos mostram como este Rio do Rappa se impôs em nosso imaginário, com frases que usamos até hoje. (…) A qualidade sonora do disco de 1999 sublinha e amplia a sonoridade da banda, transformando as letras de Yuka em hinos de gerações. Alguns de seus refrões e frases entraram para o imaginário popular do carioca e do brasileiro.
Já esta citação é do pesquisador Fred Coelho, de seu Livro do Disco sobre o álbum em questão, da coleção homônima que ele e Mauro Gaspar organizaram e editaram. Nele Fred faz uma análise mais geral, mas também se debruça faixa por faixa do álbum. E a primeira delas já é exatamente sobre o resquício de ditadura que se representa todos os dias nas ruas não apenas do Rio de janeiro.
Tribunal de rua é a única canção do Rappa que não é cantada pelo vocalista Marcelo Falcão, e sim por seu autor, outro Marcelo (a banta chegou a ter três), o Yuka. Segundo Fred Coelho, história contada na primeira pessoa é a de uma dura da polícia tomada por um dos integrantes da banda. Mas a história é contada de forma algo propositalmente genérica, embora tenha aspas de falas dos policiais corruptos e cite até sua quantidade. Ainda assim, a sensação do ouvinte é de que aquela cena poderia estar acontecendo no subúrbio de qualquer cidade média ou grande do Brasil.. Por sinal que Yuka rima as palavras Brasil e fuzil, assim como, nos lembra novamente Fred, Gilberto Gil fizera didaticamente, soletrando cada uma, em Miserere Nobis, parceria sua com Capinan de 1968, plena ditadura.
Voltando à história narrada conscienciosamente, na letra há também várias referências específicas, e uma mais que todas, aos Cavalos Corredores, grupo de extermínio do 9�� Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro, sediado em Rocha Miranda. e responsáveis, entre outros casos, pela Chacina de Vigário Geral ocorrida em 1993, na qual 21 moradores da comunidade sem envolvimento com o crime foram executados. O nome do grupo de assassinos vem de sua prática de entrar correndo e atirando a esmo nas comunidades. O verso de Yuka que diz que os cavalos corredores ainda estão na banca refere-se a este grupo, mas poderia ser também ao Caso Favela Naval, reportagem da Rede Globo que exibia policiais militares de Diadema, Grande São Paulo, extorquindo, espancando e executando pessoas em 1997. Menciono apenas casos conhecidos anteriores ao álbum, mas a ascensão das milícias não apenas no Rio de Janeiro depois dos anos 2000 são a continuação lógica deste mesmo processo em que um Estado clandestino, autoritário e ilegal assume o lugar do Estado de Direito perante a população mais vulnerável.
Musicalmente, a harmonia do violão à Jorge Ben de Falcão traz três acordes, todos menores: Am, Dm e Em. O uso da dominante menor cria uma atmosfera de circularidade em que a tensão fica distribuída por toda a harmonia. A tensão é justamente a falta de uma definição de onde está a tensão, como numa rua suspeitamente deserta e silenciosa. A primeira parte da letra, descritiva e quase exclusivamente falada, fica a cargo de Yuka. Já a segunda, traça comentários sobre o acontecimento, complexificando a questão ao apontar a absorção do padrão ético do poder como estratégia de sobrevivência:
No fundo querendo estar
A margem do seu pesadelo
Estar acima do biotipo suspeito
Mesmo que seja dentro de um carro importadoCom um salário suspeito
Endossando a impunidade à procura de respeito
Esta parte ressoa na voz potente e expressiva de Falcão, tornando explícita agora a dramaticidade antes implícita na voz pequena e soturna de Yuka, para encerrarem ambas as vozes somadas na conclusão: era só mais uma dura / resquício de ditadura. O elo perdido entre a Ditadura Militar, as gangues de extermínio desde a década de 1970 até as milícias que sustentam boa parte do governo Bolsonaro. O tribunal de rua é neto do DOPS.
Porém, Lado B lado A não é exatamente um álbum sombrio, em especial por, como anuncia seu título, tratar de mostrar mais de um lado possível no panorama que pinta da vida urbana e suburbana. E lado a lado com Tribunal de Rua ou com o discurso lancinante do próprio tráfico em Se não avisar o bicho pega, o que há é uma visão afirmativa desta vida com todas as suas agruras e incongruências, e a possibilidade eventual até de um otimismo enviezado, do qual o melhor exemplo é provavelmente O que sobrou do Céu.
A letra de O que sobrou do céu parte do acontecimento da falta de luz durante o dia. O sol refletido na tela da TV iluminando a sala no lugar da luz elétrica é uma imagem poética de alta voltagem (mesmo sem eletricidade), por simultaneamente sugerir que a falta da TV induz as pessoas a fazer outras coisas (“ciências de baixa tecnologia”, que não demandem energia elétrica), tendo como corolário olhar o céu – ou o que sobrou dele. A noção da TV como algo que impede o olhar e o pensamento de se estenderem volta a ser abordada adiante no álbum pela outra canção que teve grande popularidade, a outra que recebeu um clipe: Minha alma (a paz que eu não quero), nos versos Não me deixe sentar na poltrona num dia de domingo / procurando novas drogas de aluguel/ nesse vídeo coagido. Desligada forçadamente, a televisão se converte em um espelho em que é possível aos espectadores se converteram em sujeitos e se enxergarem, e a todas as cores escondidas nas nuvens da rotina – que é o que a canção faz, levando-os ao protagonismo do retrato que pinta. Por sinal que, ao localizar a rotina entre nuvens e em seguida dizer que se vê o que sobrou do céu, o próprio céu ganha, além do sentido literal de ser visto entre os prédios, o céu em sentido alegórico – afastando a rotina, o que sobra é a vida, o céu da vida a ser vivido de verdade.
A harmonia de O que sobrou do céu também é em tom menor, como Tribunal de Rua, mas usa um estratagema para parecer em tom maior ao ouvinte: sua progressão de acordes parte sempre do acorde de sexto grau maior da escala, acorde que não se resolve e empurra a música para a frente, mas também ressoa aberto juntamente com a voz de Falcão desde a abertura com o vocalise Oh, lá, lá, Oh, lá, lá, um canto que de saída já soa como uma espécie de celebração, não um lamento, não um protesto, mas um canto da alegria possível. Assim também como uma canção em tom menor que dá um jeito de soar mais alegre do que é.
A diferença entre as letras de Tribunal de Rua e O que sobrou do céu mostra um bocado da versatilidade poética de Yuka. Enquanto a primeira é uma descrição quase linear dos acontecimentos, em que ele deixa para a segunda estrofe alguns comentários mais gerais, filosóficos, sociológicos, sobre os fatos narrados, mas trata de de relatá-lo ponto por ponto, sequencialmente, O que sobrou do céu não, traz uma espécie de filtro impressionista, as imagens se sucedem sugerindo os acontecimentos, que na verdade são muito poucos. A sequencia de imagens vai conduzindo o ouvinte a partir do momento em que falta luz, talvez este o único acontecimento real de toda a letra, e que dá a partida para tudo o que virá depois, e seguem-se então impressões que vão conduzindo umas às outras em parte por livre associação, em parte por comporem o mesmo cenário, como um olhar que gira por um ambiente: a luz do sol batendo na televisão e refletindo dentro de casa, a cerveja gelada na esquina, um chá para curar esta azia (o paralelo entre os dois líquidos sugerido pela sequência, ambos para espantar o mal, e a azia sendo ela própria um sucedãneo do mau agouro, da tristeza) não são necessariamente ações, são versos tão somente, mais até do que descrições, que vão conduzindo o olhar do ouvinte, numa impressionante sinestesia, de dentro de casa até a rua, voltando seu olhar da horizontalidade para a verticalidade, da superficialidade para a profundidade, da tela da TV para o alto, para o céu.
O que sobrou do céu propõe então uma possibilidade de quebra da rotina relatada minuciosamente em Tribunal de rua, uma rotina conhecida de geração em geração, e portanto arraigada, enraizada: Todo camburão tem um pouco de navio negreiro, diria o próprio Rappa em outra canção. Porém, a proposta de romper com esta rotina de violência pela mudança de subjetividade é muito mais audaciosa do que pode parecer à primeira vista. Não se trata tão somente de uma visada poética, mas um olhar aprofundado que é proposto, e, a par com ele, a compreensão dos mecanismos que movem as cordas da realidade e levam o guarda da esquina a se tornar agente de uma ditadura que já deveria ter acabado, que nominalmente não existe mas se faz sentir a cada dia. O despertar de uma hipnose que em 1999 vinha primordialmente da tela da TV, mas hoje tem outras telas e meios, igualmente superficiais, para se estabelecer, a percepção de que há um mundo maior que estas telas e que eventualmente as contraria, e a possibilidade de romper, precariamente que seja, com este transe, como primeiro passo para não ser mais uma peça submissa diante de uma realidade opressiva, mas compreendê-la, compreender de onde ela vem e onde se manifesta nas altas esferas, para além do guarda de rua, para melhor enfrentá-la.
A bateria de Marcelo Yuka conduziu o Rappa por seus três primeiros álbuns, até ele ser vítima da violência que descreve em Tribunal de rua, mas jamais se sujeitar a ela. A fusão entre diversos estilos promovida por ele – reggae, rock, dub, rap, drum’ bass, jungle – é a base para sua poética e a descrição precisa da periferia das cidades, mas principalmente da capacidade de seus habitantes de antes de tudo sobreviverem, e para além disso, lutarem por algo além de apenas sobreviverem, sua capacidade de, contra todas as expectativas, cometerem o ato insubmisso de olharem para cima, para o parco espaço entre os prédios onde mesmo à noite mal se veem estrelas, para o possível céu.
Lado B lado A – o álbum inteiro.
Meus agradecimentos ao Paulo Almeida, que me emprestou o Livro do Disco do Fred Coelho, entre outras coisas.