Uma do Jards, e sobre o João

Jards Macalé contou em entrevista ao jornalista Leonardo Lichote a seguinte história: Um belo dia João Gilberto telefona para ele e diz: Macalas, vem aqui para eu te mostrar o que é a Bossa-Nova. Claro que Jards não recusa. Vai, João pega o violão e fica cerca de uma hora fazendo a batida clássica em cima de um único acorde Jards espera, espera, e quando percebe que não vai passar disso, sai de fininho, chega em casa, e vai treinar a batida também… Tempos depois, João liga de novo para ele: Macalas, vou te dizer uma coisa: A Bossa-Nova não existe! E desliga. E Jards a partir daí passou a considerar que fez graduação e pós em Bossa-Nova.

Dessa história lembrei de um comentário do pesquisador Fred Coelho de que o Jards foi a pessoa no mundo que melhor entendeu o João. Lembro que na época concordei e me admirei da percepção dele, mas pensei também imediatamente nos Novos Baianos. E cheguei à conclusão de que os Baianos foram quem melhor entendeu o João, mas coletivamente, como um ente coletivo que era maior que a soma das partes. Pela união dos poderes deles, eles eram o Capitão Planeta, e olha que os poderes individuais já não eram poucos.

E tem ao menos duas coisas em comum entre eles e o Jards, fora suas trajetórias meio marginais e independentes. Uma é terem ambos tido aulas particulares como João, como estas acima, e a apresentação do Assis Valente aos Novos Baianos que resultou na gravação de Brasil Pandeiro e no melhor álbum deles. Mas tem uma outra ainda mais importante, que é o que eles fizeram com o aprendizado. E o incrível é que ambos tomaram a mesma direção, que foi fundir o violão do João com nada menos que o outro revolucionário das seis cordas: Jimi Hendrix.

E é aí que eles mostram o quanto entenderam João, tratando de não serem João. A fusão da batida da bossa com a distorção do rock acontece maravilhosamente nos dois, mas os Novos Baianos têm a vantagem do número, então podem dividir as tarefas: Moraes Moreira toma para si o balanço da Bossa, Pepeu Gomes a zoeira da guitarra (às vezes transcrita para bandolim). canal esquerdo, canal direito, sem contar as músicas que começam só ao violão para depois ganharem o peso, didaticamente – no álbum Acabou Chorare são quase metade.

Mas o Jards não tem esta vantagem, é só ele. E é aqui que opera o milagre, pois o cara consegue juntar as duas coisas em si. O violão do Jards, meio Bossa Nova e roquenrrol muito antes do Cazuza, traz em si a bateria de escola de samba e o power trio, com sua sonoridade suja e asfrada, com golpes repentinos de potência seguidos por pianíssimos, incorporando a trastejada à percussão como Hendrix incorporou a microfonia, e sem perder por um instante sequer a noção de que tem que dançar, dançando, como ensinou Jorge Ben (outro que entendeu João de forma única), tudo de uma vez só, forjando seu estilo inconfundível. Tudo ao mesmo tempo agora, esse é o Jards.

(Aí vai de brinde Let’s play that, o álbum que me apresentou ao Jards, as sessões dele com Naná Vasconcelos, que o acompanha lendo pensamento, como fazia costumeiramente.)

 

Palavra nova que dispensa explicação

Em 1987, aos 15 anos, Riroca tornou-se Sarah Sheeva, hoje missionária neopentecostal da Igreja Celular Internacional. Sarah limita-se a dizer que mudou de nome porque soava estranho. E de fato soa, não apenas pela óbvia possibilidade de trocadilho infame, mas também por uma impossibilidade fonética desafiada pelos país: o primeiro r de Riroca deve ser lido com o som de R no meio da palavra, feito com o auxílio da língua, e não o outro, feito no fundo da garganta. Só que não há palavra na língua portuguesa que se inicie com este som.

Revista QUEM: Você se chamava Riroca. Por que mudou de nome?
Sarah Sheeva: Essa história já tem mais de 15 anos, e tento o máximo possível não remeter a esse assunto. Riroca, em tupi-guarani, significa casa do amor. Era um nome muito esquisito. Algumas pessoas não entendiam e me chamavam de palavrão. Desenvolvi uma timidez excessiva e os meus pais entraram na justiça pedindo que alterassem o meu nome. Foi a melhor coisa que eles fizeram. A partir dali, eu me tornei uma menina normal.

Pepeu Gomes e Baby Consuelo levaram oito meses para decidir com que nome batizar a primeira filha. E quando o fizeram, criaram uma tremenda confusão. Não que eles se importassem muito. Em 1973, os Novos Baianos, grupo musical integrado pelos dois, já se mudara do apartamento em Botafogo dividido por 14 pessoas para o Cantinho do Vovô, em Jacarepaguá, onde viviam como uma colônia hippie e/ou anarquista. Lá tratavam de música, amor e futebol, numa ordem que variava conforme lhes dava na telha. Não à toa, o álbum lançado pouco após o nascimento de Riroca (mas provavelmente ela ainda não tinha nome) chamou-se Novos Baianos F.C. (Futebol Clube).

O álbum seguinte, chamado apenas Novos Baianos, ganhou logo o apelido de Alunte, por conta da faixa Linguagem do Alunte. Já esta música surgiu a partir do equívoco na grafia do tema Alimente numa edição do álbum anterior. A palavra foi impressa truncada, provocando risadas gerais quando um técnico do estúdio exclamou: Aí já é alunte!. A canção foi composta para (não) explicá-la. Assim como Ao poeta foi composta para não explicar Riroca.

Linguagem do Alunte (Morais / Galvão / Pepeu)

Ao Poeta (Morais / Galvão / Pepeu)

(O pesquisador Fred Coelho uma vez afirmou que, no fim das contas, o músico brasileiro que melhor entendeu o violão de João Gilberto foi Jards Macalé. Dizendo isso, sustentou que, embora muitos tenham tomado para si os ensinamentos de João em muitos âmbitos, Jards foi quem conseguiu levar especificamente o violão de João para o seu, sem que seu violão deixasse de ser personalíssimo como é. O violão de João está lá, inteiro, e transformado, para quem quiser ouvir.

Na época respondi, concordando, mas acrescentando: se Jards foi quem melhor traduziu João em seu próprio violão, individualmente, quem conseguiu a melhor compreensão coletiva de João foram seus discípulos mais diletos. Uma compreensão quase inconsciente talvez, em que os elementos de João se redistribuem por todo um grupo musical, mas também uma compreensão didática, em que há mesmo aulas – como quando João os incentiva a tocarem Brasil Pandeiro, de Assis Valente, como uma forma de compreenderem o samba mais a fundo, ou quando, passeando pelo bairro de Botafogo com Moraes, altas horas da noite, veem uma mulata descendo o morro cedo para trabalhar, e João exclama: Lá vem o Brasil descendo a ladeira! Moraes entendeu muito bem.)

Linguagem do Alunte e Ao Poeta tem em comum a desconstrução da linguagem. Cada uma foi construída em torno de um palavra inventada. Estão juntas no álbum de 1974, chamado apenas Novos Baianos, o último com a presença de Moraes Moreira. Alunte se inicia com a separação de sílabas de algumas palavras – a primeira, naturalmente, é bola. Porém, comparativamente,o arranjo e a construção de Linguagem do Alunte são relativamente tradicionais. Enquanto isso, Ao poeta parte para a ignorância, ou melhor, parte da ignorância na direção da sabedoria, numa formatação, mais que original, absolutamente congruente com o a desconstrução que se propõe a fazer.

A abertura de Ao poeta é o único momento da gravação em que se ouvem instrumentos melódico/harmônicos tradicionais – dois violões e flautas doces. Porém, já aí a presença das flautas mostra uma certa precarização proposital – os Novos Baianos não costumavam usá-las. A flauta doce, instrumento associado em música popular à musicalização infantil e a ao movimento hippie, causa um estranhamento imediato. Porém, logo após entra a voz de Paulinho Boca de Cantor, de forma surpreendente.

O primeiro som que ele faz não é palavra, nem som musical. É um barulho, um barulho que, pela repetição, vai aos poucos formatando a palavra filha – e mesmo assim em sua pronúncia mais informal, fia. A fia de Baby. A fia de Baby criou problema para a grafia. Está aí o tema, e o tema é a menina e seu nome, e a denominação do tema é, ela própria, feita montando as palavras a partir do barulho fundamental.

Em seguida, sobre uma levada de atabaques e palmas, surge um estranho naipe de trumpentes, instrumento improvisado feito com um pedaço de plástico colocado sobre um pente e soprado. Não há nota determinada. A sensação de precariedade se acentua, tudo se passa como uma improvisação, mas por outro lado os trumpentes tem claramente um arranjo combinado em que realizam eficientemente o papel de um naipe de metais. Sobre esta base ao mesmo tempo precária (na formação) e elaborada (na construção), a frase inicial da letra é repetida e explorada de frente para trás, de trás para frente, em pedaços. Diversas possibilidades de construção, agora gramatical, são investigadas, antes de se anunciar: isso eu ia dizer na capa, mas existe possível grafia. A nova surpresa da referência á capa do álbum como um possível complemento da mensagem da canção coloca a canção em contato direto com o mundo exterior à gravação, tangenciando a ideia de um diálogo do qual ela faria parte, sem explicitá-lo.

A base seguinte é ainda mais reveladora: agora o batuque se inicia somente a partir de sons vocais, antes de nova entrada dos atabaques, mas que aqui serão acessórios, como as palmas foram logo antes. Thi-qui ta-ca, ta-ca-ta-cum ta-ca. Caminho diverso do inicial, que passava do barulho à palavra, agora as sílabas tornam-se som musical. A palavra desconstruída torna-se arranjo para a frase que explicita a questão: A gramática prevê que só entre duas vogais o érre tem som de rê. A regra rígida que é enunciada na letra é desafiada a cada segundo no arranjo.

Próximo passo: ao som de um rufo de bateria de crescente tensão, anuncia-se finalmente o busílis da questão: Baby, é assim que o poeta, Baby, achou de botar o nome na menina de Riroca, só porque ela é carioca. No reforço máximo da pronúncia do R inicial e na menção ao sotaque do Rio de Janeiro, ocorre na prática um questionamento da norma culta que faz sentido entre linguistas: os registros locais da língua são integrantes da língua, todos dignos de respeito e com direito à existência. Na sequência, a bateria passa do rufo para uma interminável virada em que a tensão se despeja furiosamente para o argumento seguinte, evocando, claro o futebol: RRRRRRoberto Dinamite é convocado como exemplo acabado de R linguo-dental, como qualquer locutor esportivo que se preze sabe, abrindo caminho para RRRRRomários e RRRRRonaldos. Nasceu no RRRRRRio, arremata definitivamente Paulinho. O lugar, o uso, o povo faz a língua, não o contrário.

Mas ainda há mais. A bateria agora, estruturada a partir do barulho como a voz o fora, apronta uma levada típica de jazz (um estilo popular de extrema sofisticação), como que zombreteiramente. E zombeteiramente voltam os trumpentes, zumbindo enquanto agora a convocação segue irônica: Vamo lá, Caetano Veloso, Gil, Chico Buarque! Os ícones da canção, são chamados a referendar a presente canção, referendando por tabela a defesa da tese Riroca. A zombaria prossegue, agora evocando mediunicamente – finalmente! o Poeta:

Só na
Só na
Só na
Sessão espírita
Fernando pode dizer

Pessoa
Pessoa
Pessoa que não é prosa
Pode dizer poesia

E assim, Pessoa é irreverentemente deslocado para a sessão espírita – não pode mais opinar. Em compensação, o poder e a liberdade da poesia agora estão aí para quem chegar. Note-se que lá atrás é dito que foi o poeta que botou o nome de Riroca. Qual poeta? Ora, qualquer um. Ninguém sabe nada, ninguém tem o poder individual de determinar o som de uma letra ou de proibi-la de soar.

Ou talvez, um: Só Drummond, só Drummond, só Drummond. Mas se não Drummond, deixa eu vê… O encerramento de Ao poeta se dá novamente sem acompanhamento, como o início do canto/declamação de Paulinho, entre a canção e a poesia propriamente dita. As últimas sílabas de deixa eu ver, no mais autêntico sotaque carioca, se convertem em xô vê e daí em chover, chuvê… A passagem de sentido pela mudança sutil de pronúncia vai dissolvendo o sentido em fade out, mergulhando a canção no caos de onde veio. A voz e a palavra em estado puro, de onde Ao Poeta se originou e para onde retorna.

Uma criança, ao nascer, é capaz de produzir todos os sons de todas as línguas. De acordo com o lugar em que nasce, os pais que tem, o povo que a recebe, desenvolve alguns fonemas e esquece outros. Não apenas com o som, nossa educação foi desenvolvida para moldar, cortar arestas, tornar menor. Uma educação ideal, em um lugar ideal, talvez fosse a que permitisse às crianças não perder a infinidade de possibilidades que trazem ao nascer. Desenvolver algumas sem perder as demais, sem ter de reaprender os sons esquecidos mais tarde nos cursos de línguas. E para todos os saberes como para os sons.

Feita para uma questão específica, para responder a uma polêmica, Ao poeta (e também Linguagem do Alunte, indo em outra direção) extrapola seu assunto várias vezes, como a obra de arte deve fazer. Ao poeta, construída sílaba a sílaba, som a som, fonema a fonema, forma e conteúdo integrados milimetricamente sob aparência de improviso, poema concreto misto de canção, é um desafiador manifesto lançado ao vento. Como o antieuclidiano nome da menina Riroca foi também um desafio à norma, que Sarah Sheeva não pôde sustentar. Não se pode culpá-la, o mundo não é o Cantinho do Vovô. Quem sabe um dia seja como o poeta sonhou, ou seja: com os sons, e tudo o mais, que a gente quiser.

Discoteca Brasílica – Pandeiro, Brasil

Não me lembro do autor da declaração, mas lembro que foi durante o Rock’n Rio I. Ao ser perguntado sobre quem ou o que mais o impressionara no festival, uma estrela qualquer de uma grande banda qualquer respondeu : a grávida e o satriani. Estava se referindo a Baby (na época Consuelo) e Pepeu Gomes, que haviam tocado na noite de abertura (possivelmente foi David Coverdale ou John Sykes, ambos do Whitesnake que tocou no mesmo dia; sendo o primeiro ex-integrante do Deep Purple, do qual o virtuose da guitarra Joe Satriani também fez parte).

É conhecida a história da amizade de João Gilberto com os Novos Baianos, cheia de histórias incríveis, como a de João ensaiando dentro do armário para fugir da balbúrdia daqueles garotos. Moraes Moreira conta que uma noite passeava com João quando viram uma mulata descendo o morro, e João comentou: lá vem o Brasil descendo a ladeira. E Moraes gostou.

Em 2007, a Revista Rolling Stone Brasil fez uma lista dos 100 mais importantes/melhores álbuns de música brasileira de todos os tempos. Não, não ligo para listas, mas não acho estranho que tenha dado Acabou Chorare na cabeça (os dez primeiros comentados aqui, a lista completa aqui) Acabou Chorare (1972) transita num Campo Grande que vai de João Gilberto (faixa título) até Jimi Hendrix e Janis Joplin (Tinindo Trincando), puxado – simplificando um bocado – para um lado por Moraes, e do outro por Pepeu. O que não significa antagonismo, mas encontro. Vale a pena pegar um pouco do artigo de Marcus Preto:

Depois de um primeiro disco semitropicalista, um tanto psicodélico e essencialmente roqueiro gravado em São Paulo (É Ferro na Boneca, de 1970), a trupe se mudou de mala e cuia para o Rio de Janeiro e por lá se instalou. Luiz Galvão, letrista dos Novos Baianos, conhecia o pai da bossa nova desde a adolescência em Juazeiro e retomou o contato assim que pisou na Cidade Maravilhosa. Por algum motivo inexplicável, João se identificou com a turma de hippies e logo começou a freqüentar o, digamos, “alojamento” onde eles moravam. De cara, apresentou ao grupo um samba que, mal sabiam eles, se tornaria a peça-chave da transformação sonora que viria em 1972. Brasil Pandeiro foi composto nos anos 40 por Assis Valente especialmente para Carmen Miranda cantar, e fez quase tanto sucesso na época quanto faria trinta e poucos anos depois. A indicação do samba antigo vinha com um recado mais profundo: “Voltem-se para dentro de vocês mesmos”, disse João Gilberto ao grupo. Sob essa brutal influência, Acabou Chorare foi composto e gravado.

Brasil Pandeiro, na verdade, é exatamente de 1940. Aquarela do Brasil, de que tratei aqui, é do ano anterior. Ambas compartilham um contexto política comum, dentro da política norteamericana da boa vizinhança, que provocou a criação do Zé Carioca, avô das ararinhas azuis do desenho Rio. A este interesse americano, somado a investimentos que fizeram Getulio Vargas, depois de muita hesitação, entrar na Guerra contra a Alemanha e não a favor, correspondeu um movimento brasileiro de expansão, materializado na política econômica de substituição de importações que forjou nossa indústria, e na exportação de nossa cultura especialmente embalada para consumo yanque. Mais tarde, Carmen teve de rebolar para provar que não voltara americanizada – mas, sintomaticamente, não quis gravar Brasil Pandeiro, que acabou fazendo sucesso nas vozes dos Anjos do Inferno. A Aquarela de Ary já nasceu composta como um cartão de visita, um desses passeios que hoje se compra nas agência de viagem com as milhas do cartão de crédito em que se conhece a Europa em três dias.

Mas Brasil Pandeiro rompe sutilmente este coro de contentes. Se por um lado trai uma certa euforia ufanista pela atenção estrangeira dispensada ao país, considerando-a um sintoma de que “a hora chegou”, é por outro lado uma resposta à visão estrangeirizada de Ary Barroso. Enquanto ele exalta a natureza, Assis fala de gente o tempo todo: Salve o Morro do Vintém! A macumba que ele convoca não é para turista. Há uma certa ironia, especialmente na primeira parte: Eu quero ver o tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar pode significar um desejo ou um desafio. E, se o samba de Ary era quase estilizado (talvez para ficar mais fácil de sambar), já o de Assis era samba mesmo, que do recôncavo (ele era de Santo Amaro) vai parar na gafieira.

Brasil Pandeiro – Anjos do Inferno (não deixa de ser uma coincidência engraçada que os nossos Hell’s Angels tenham gravado esta música)

Aliás, Assis Valente faz referência explícita a esta estilização do samba para turista, ao dizer: Há quem sambe diferente noutras terras, noutra gente, num batuque de matar. Porém, logo a ironia fica em segundo plano, e Assis parece querer mostrar como fazer um samba exaltação que não seja para consumo externo. Por isso, assume o próprio Brasil como seu interlocutor. A melodia na primeira parte fora fortemente sincopada e com pequena extensão. Na estrada da segunda parte, o caráter melódico se acentua, ainda na região grave – O que há então é uma invocação, quase espiritual – Batucada, reuni vossos valores, pastorinhas e cantores, expressão que não tem par. É a preparação para a explosão final, subitamente saltando ao agudo no quase grito de Brasil! E aí a celebração finalmente tem início, é festa.

Na gravação dos Anjos do Inferno, esta leitura que fiz da composição fica pouco nítida, sob um arranjo convencional e intervenções de coro (afinal, era um grupo vocal) que eram, elas mesmas, copiadas de grupos americanos. Mas nesta, deve ficar mais perceptível.

Novos Baianos

A gravação dos Novos Baianos traz em si toda esta discussão entre o samba para americano e o rock para brasileiro. Pepeu ouvia Jimi Xendrix, Baby ouvia Janis Joplin, e ambos caíram no samba, com Pepeu tocando craviola – instrumento brasileiro, espécie de violão de 12 cordas criado por Paulinho Nogueira. A gravação de Brasil Pandeiro que abre Acabou Chorare é o suprassumo  daquilo que consagrou o grupo: a capacidade de reunir estas influências tão distintas numa fórmula incendiária. Mais da metade da música é cantada por Baby, Morais e Paulinho Boca de Cantor (adoro este nome) apenas com o acompanhamento do violão de Morais, modelo repetido em Preta pretinha, Swing de Campo Grande, Mistério do planeta, A menina dança – ou seja, mais da metade do álbum. Em todas estas, a batucada e as guitarras e o baixo entram só mais adiante. As exceções: Tinindo trincando, que, conforme o nome indica, já começa a toda, eletrificada; a maravilhosa Besta é tu, que começa a toda, mas no sambão; e a faixa título, no extremo oposto, uma bossa-nova algo surrealista, composta sob inspiração direta de João. E o tema instrumental Um bilhete para Dadi, apresentado duas vezes: uma com regional, outra com o power trio d’a Cor do Som, conjunto formado a partir dos Novos Baianos.

O que quero dizer com isso? Que o substrato, o chão sobre o qual caminham as canções, é o samba, e eles fazem questão de deixar isto claro. E sobre esta base, cabe a batucada empolgante e cabem os solos de guitarra, ou o violão de aço tocado como guitarra, cabe o desvario vocal de Baby (que também sabe cantar contido, diga-se). O caminho percorrido pelos Novos Baianos ao cantar, por conselho de um baiano mais velho, a canção de outro baiano mais velho ainda, foi repetido mais tarde de diversas maneiras por diversas outras turmas: o caminho que permite à música brasileira se renovar trazendo para si elementos de qualquer lugar sem necessariamente se descaracterizar, ao contrário, se reafirmando e renovando.

Assis Valente suicidou-se, desesperado e afundado em dívidas. Já tentara se atirar do alto do Corcovado – a queda foi amortecida pelas árvores. Agora, apenas sentou num banco de rua e tomou veneno. Em seu último bilhete, pedia ao amigo Ary Barroso que pagasse por ele dois meses de aluguel em atraso. Por um lado, a diferença entre o êxito (inclusive) financeiro de Ary e a trajetória de Assis poderia indicar que a estética para turista da boa vizinhança vencera a parada.  Mas a amizade entre os dois indica o inverso: a dicotomia é falsa, transitória, e a música brasileira encontra seus caminhos, como o rio descendo para o mar. Provavelmente, Ary e Assis sabiam disso, no fundo. Os Novos Baianos foram apenas mais alguns que provaram isso, mas o fizeram com catiguria. Uma gente bronzeada mostrando o seu valor, e o de um mulato Valente, para a turma do Whitesnake e para a mulata descendo a ladeira, nos terreiros e no palco do Rock in Rio.