Em 1987, aos 15 anos, Riroca tornou-se Sarah Sheeva, hoje missionária neopentecostal da Igreja Celular Internacional. Sarah limita-se a dizer que mudou de nome porque soava estranho. E de fato soa, não apenas pela óbvia possibilidade de trocadilho infame, mas também por uma impossibilidade fonética desafiada pelos país: o primeiro r de Riroca deve ser lido com o som de R no meio da palavra, feito com o auxílio da língua, e não o outro, feito no fundo da garganta. Só que não há palavra na língua portuguesa que se inicie com este som.
Revista QUEM: Você se chamava Riroca. Por que mudou de nome?
Sarah Sheeva: Essa história já tem mais de 15 anos, e tento o máximo possível não remeter a esse assunto. Riroca, em tupi-guarani, significa casa do amor. Era um nome muito esquisito. Algumas pessoas não entendiam e me chamavam de palavrão. Desenvolvi uma timidez excessiva e os meus pais entraram na justiça pedindo que alterassem o meu nome. Foi a melhor coisa que eles fizeram. A partir dali, eu me tornei uma menina normal.
Pepeu Gomes e Baby Consuelo levaram oito meses para decidir com que nome batizar a primeira filha. E quando o fizeram, criaram uma tremenda confusão. Não que eles se importassem muito. Em 1973, os Novos Baianos, grupo musical integrado pelos dois, já se mudara do apartamento em Botafogo dividido por 14 pessoas para o Cantinho do Vovô, em Jacarepaguá, onde viviam como uma colônia hippie e/ou anarquista. Lá tratavam de música, amor e futebol, numa ordem que variava conforme lhes dava na telha. Não à toa, o álbum lançado pouco após o nascimento de Riroca (mas provavelmente ela ainda não tinha nome) chamou-se Novos Baianos F.C. (Futebol Clube).
O álbum seguinte, chamado apenas Novos Baianos, ganhou logo o apelido de Alunte, por conta da faixa Linguagem do Alunte. Já esta música surgiu a partir do equívoco na grafia do tema Alimente numa edição do álbum anterior. A palavra foi impressa truncada, provocando risadas gerais quando um técnico do estúdio exclamou: Aí já é alunte!. A canção foi composta para (não) explicá-la. Assim como Ao poeta foi composta para não explicar Riroca.
Linguagem do Alunte (Morais / Galvão / Pepeu)
Ao Poeta (Morais / Galvão / Pepeu)
(O pesquisador Fred Coelho uma vez afirmou que, no fim das contas, o músico brasileiro que melhor entendeu o violão de João Gilberto foi Jards Macalé. Dizendo isso, sustentou que, embora muitos tenham tomado para si os ensinamentos de João em muitos âmbitos, Jards foi quem conseguiu levar especificamente o violão de João para o seu, sem que seu violão deixasse de ser personalíssimo como é. O violão de João está lá, inteiro, e transformado, para quem quiser ouvir.
Na época respondi, concordando, mas acrescentando: se Jards foi quem melhor traduziu João em seu próprio violão, individualmente, quem conseguiu a melhor compreensão coletiva de João foram seus discípulos mais diletos. Uma compreensão quase inconsciente talvez, em que os elementos de João se redistribuem por todo um grupo musical, mas também uma compreensão didática, em que há mesmo aulas – como quando João os incentiva a tocarem Brasil Pandeiro, de Assis Valente, como uma forma de compreenderem o samba mais a fundo, ou quando, passeando pelo bairro de Botafogo com Moraes, altas horas da noite, veem uma mulata descendo o morro cedo para trabalhar, e João exclama: Lá vem o Brasil descendo a ladeira! Moraes entendeu muito bem.)
Linguagem do Alunte e Ao Poeta tem em comum a desconstrução da linguagem. Cada uma foi construída em torno de um palavra inventada. Estão juntas no álbum de 1974, chamado apenas Novos Baianos, o último com a presença de Moraes Moreira. Alunte se inicia com a separação de sílabas de algumas palavras – a primeira, naturalmente, é bola. Porém, comparativamente,o arranjo e a construção de Linguagem do Alunte são relativamente tradicionais. Enquanto isso, Ao poeta parte para a ignorância, ou melhor, parte da ignorância na direção da sabedoria, numa formatação, mais que original, absolutamente congruente com o a desconstrução que se propõe a fazer.
A abertura de Ao poeta é o único momento da gravação em que se ouvem instrumentos melódico/harmônicos tradicionais – dois violões e flautas doces. Porém, já aí a presença das flautas mostra uma certa precarização proposital – os Novos Baianos não costumavam usá-las. A flauta doce, instrumento associado em música popular à musicalização infantil e a ao movimento hippie, causa um estranhamento imediato. Porém, logo após entra a voz de Paulinho Boca de Cantor, de forma surpreendente.
O primeiro som que ele faz não é palavra, nem som musical. É um barulho, um barulho que, pela repetição, vai aos poucos formatando a palavra filha – e mesmo assim em sua pronúncia mais informal, fia. A fia de Baby. A fia de Baby criou problema para a grafia. Está aí o tema, e o tema é a menina e seu nome, e a denominação do tema é, ela própria, feita montando as palavras a partir do barulho fundamental.
Em seguida, sobre uma levada de atabaques e palmas, surge um estranho naipe de trumpentes, instrumento improvisado feito com um pedaço de plástico colocado sobre um pente e soprado. Não há nota determinada. A sensação de precariedade se acentua, tudo se passa como uma improvisação, mas por outro lado os trumpentes tem claramente um arranjo combinado em que realizam eficientemente o papel de um naipe de metais. Sobre esta base ao mesmo tempo precária (na formação) e elaborada (na construção), a frase inicial da letra é repetida e explorada de frente para trás, de trás para frente, em pedaços. Diversas possibilidades de construção, agora gramatical, são investigadas, antes de se anunciar: isso eu ia dizer na capa, mas existe possível grafia. A nova surpresa da referência á capa do álbum como um possível complemento da mensagem da canção coloca a canção em contato direto com o mundo exterior à gravação, tangenciando a ideia de um diálogo do qual ela faria parte, sem explicitá-lo.
A base seguinte é ainda mais reveladora: agora o batuque se inicia somente a partir de sons vocais, antes de nova entrada dos atabaques, mas que aqui serão acessórios, como as palmas foram logo antes. Thi-qui ta-ca, ta-ca-ta-cum ta-ca. Caminho diverso do inicial, que passava do barulho à palavra, agora as sílabas tornam-se som musical. A palavra desconstruída torna-se arranjo para a frase que explicita a questão: A gramática prevê que só entre duas vogais o érre tem som de rê. A regra rígida que é enunciada na letra é desafiada a cada segundo no arranjo.
Próximo passo: ao som de um rufo de bateria de crescente tensão, anuncia-se finalmente o busílis da questão: Baby, é assim que o poeta, Baby, achou de botar o nome na menina de Riroca, só porque ela é carioca. No reforço máximo da pronúncia do R inicial e na menção ao sotaque do Rio de Janeiro, ocorre na prática um questionamento da norma culta que faz sentido entre linguistas: os registros locais da língua são integrantes da língua, todos dignos de respeito e com direito à existência. Na sequência, a bateria passa do rufo para uma interminável virada em que a tensão se despeja furiosamente para o argumento seguinte, evocando, claro o futebol: RRRRRRoberto Dinamite é convocado como exemplo acabado de R linguo-dental, como qualquer locutor esportivo que se preze sabe, abrindo caminho para RRRRRomários e RRRRRonaldos. Nasceu no RRRRRRio, arremata definitivamente Paulinho. O lugar, o uso, o povo faz a língua, não o contrário.
Mas ainda há mais. A bateria agora, estruturada a partir do barulho como a voz o fora, apronta uma levada típica de jazz (um estilo popular de extrema sofisticação), como que zombreteiramente. E zombeteiramente voltam os trumpentes, zumbindo enquanto agora a convocação segue irônica: Vamo lá, Caetano Veloso, Gil, Chico Buarque! Os ícones da canção, são chamados a referendar a presente canção, referendando por tabela a defesa da tese Riroca. A zombaria prossegue, agora evocando mediunicamente – finalmente! o Poeta:
Só na
Só na
Só na
Sessão espírita
Fernando pode dizer
Pessoa
Pessoa
Pessoa que não é prosa
Pode dizer poesia
E assim, Pessoa é irreverentemente deslocado para a sessão espírita – não pode mais opinar. Em compensação, o poder e a liberdade da poesia agora estão aí para quem chegar. Note-se que lá atrás é dito que foi o poeta que botou o nome de Riroca. Qual poeta? Ora, qualquer um. Ninguém sabe nada, ninguém tem o poder individual de determinar o som de uma letra ou de proibi-la de soar.
Ou talvez, um: Só Drummond, só Drummond, só Drummond. Mas se não Drummond, deixa eu vê… O encerramento de Ao poeta se dá novamente sem acompanhamento, como o início do canto/declamação de Paulinho, entre a canção e a poesia propriamente dita. As últimas sílabas de deixa eu ver, no mais autêntico sotaque carioca, se convertem em xô vê e daí em chover, chuvê… A passagem de sentido pela mudança sutil de pronúncia vai dissolvendo o sentido em fade out, mergulhando a canção no caos de onde veio. A voz e a palavra em estado puro, de onde Ao Poeta se originou e para onde retorna.
Uma criança, ao nascer, é capaz de produzir todos os sons de todas as línguas. De acordo com o lugar em que nasce, os pais que tem, o povo que a recebe, desenvolve alguns fonemas e esquece outros. Não apenas com o som, nossa educação foi desenvolvida para moldar, cortar arestas, tornar menor. Uma educação ideal, em um lugar ideal, talvez fosse a que permitisse às crianças não perder a infinidade de possibilidades que trazem ao nascer. Desenvolver algumas sem perder as demais, sem ter de reaprender os sons esquecidos mais tarde nos cursos de línguas. E para todos os saberes como para os sons.
Feita para uma questão específica, para responder a uma polêmica, Ao poeta (e também Linguagem do Alunte, indo em outra direção) extrapola seu assunto várias vezes, como a obra de arte deve fazer. Ao poeta, construída sílaba a sílaba, som a som, fonema a fonema, forma e conteúdo integrados milimetricamente sob aparência de improviso, poema concreto misto de canção, é um desafiador manifesto lançado ao vento. Como o antieuclidiano nome da menina Riroca foi também um desafio à norma, que Sarah Sheeva não pôde sustentar. Não se pode culpá-la, o mundo não é o Cantinho do Vovô. Quem sabe um dia seja como o poeta sonhou, ou seja: com os sons, e tudo o mais, que a gente quiser.