Quinto Império, por Caetano Veloso

Este artigo do Caetano saiu no Segundo Caderno do Globo este domingo. É um exemplo acabado de como uma canção pode causar uma epifania, e como uma simples interpretação com a efetiva compreensão do complexo (a antíetse na frase é proposital) conjunto de relações entre melodia, harmonia, letra, relações intertextuais, históricas, psicológicas, transparecendo na voz e no toque de um instrumento, pode ser ao mesmo tempo sintética e plena de reverberações, e como a escuta é parte integrante deste processo em igualdade de condições. E como, por mais que ainda haja tanto a dizer sobre a canção, às vezes é o silêncio que se faz absolutamente necessário.
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Eu vinha do Jardim Botânico com meu filho na madrugada vazia. Ele no assento do carona e o rádio do carro ligado. Tocou Pra que mentir com Paulinho da Viola acompanhado de César Faria, seu pai, no violão. Já conhecia a gravação de inúmeras audições, mas fazia algum tempo que não a escutava e — mais importante — meu filho nunca a tinha ouvido e não se lembrava particularmente desse samba de Noel (eu canto vários para ele, desde que, menino, ele precisava que eu cantasse para ele dormir).

A gente sente essa identificação profunda com os filhos, funde a alma nas deles, adivinha caminhos por onde elas começam a conhecer o que a gente supõe que já sabe. De repente eu ouvia Pra que mentir com Paulinho pela primeira vez. Que maravilhamento! A afinação se firma na voz dos cantores das mais diferentes maneiras. Quando se firma. Em Paulinho — em especial nesse Paulinho de Pra que mentir — surge uma afinação precisa, abissalmente inteligente e, no entanto, impensada, miraculosamente acontecendo na garganta, no peito, nos ossos da face, no ar ao redor, como uma emanação orgânica inevitável. Se ele está cantando Pra que mentir, o reconhecimento, por parte de sua mente, das notas a serem atingidas será assim. Sobretudo se o acompanha o violão de César, aquela baixaria celestialmente fluente e lógica. Eu me sentia em estado de graça ouvindo essa manifestação da arte brasileira no meio da noite. Poucas coisas são tão bonitas nesse mundo — e fruí-la assim, na espera do sinal do encrencado cruzamento Lagoa-Barra (espera que parece durar horas se a rua está, como estava, totalmente vazia: eu paro no sinal de madrugada), ganha caráter de revelação.

Um dos mais resistentes recalques que nossa clínica geral precisa vencer é a dependência do aval internacional para proclamar obra-prima universal o que é obra-prima universal mas ainda é propriamente conhecido apenas no Brasil. O outro lado da moeda é mais antigo: o de olhar com suspeição o que tem reconhecimento apenas ou predominantemente no estrangeiro. Mas são áreas diferentes da sociedade brasileira — e da mente de cada brasileiro — que reagem dessas formas opostas e complementares (ambas conservadoras e covardes) a fenômenos de criatividade oriundos do nosso país. Paulinho é exemplo luminoso. Lembro-me de ter lido no New York Times um respeitoso artigo sobre uma apresentação dele em Nova York. O crítico nova-iorquino considerou o concerto muito austero. A gente entende por quê. Mas se o Brasil tivesse o maior número de bilionários citados na revista Forbes, uma das mais potentes Forças Armadas e assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, a gravação de Paulinho com César fazendo esse Noel seria reconhecida como um dos momentos mais altos da expressividade humana. E isso levaria a centenas de buscas e revalorações, com Elton e Dona Ivone, Wilson das Neves e Mumuzinho, Marcelo D2 e Pretinho da Serrinha sendo estudados por milhares de nerds na Carolina do Norte e na Coreia do Sul.

Pra que mentir com Paulinho da Viola e César é um dos ápices da criatividade artística mundial. Vi isso realizado, não como um esperançoso profeta amador arriscando uma aposta: vivenciei a irreversível realidade disso luminosamente reconhecida por todos os homens sintonizados com os caminhos da História. O Quinto Império. Vivenciei tudo isso como um profeta verdadeiro, meu filho ao meu lado me guiando, à medida que descobria as qualidades — para ele apenas tranquilamente constatáveis — dessa arte amadurecida em séculos de miséria, opressão e incômoda originalidade. Lembrei-me de que, faz uns anos, senti algo semelhante ao ouvir Marisa Monte cantar Carinhoso acompanhada por Paulinho ao violão (era naquele filme tão belo e cheio de momentos Saura, dirigido por Isabel Jaguaribe): Paulinho era o César de Marisa, que era um Paulinho mulher: o Noel dos Faria é o núcleo do que chegou até aquele Pixinguinha ali. Na hora em que os fatores invencíveis se reúnam; em que educação não seja um aspecto isolado como no bom discurso de Cristovam Buarque; em que o sucesso de Sergio Mendes e de Airto Moreira, o prestígio do Cansei de Ser Sexy e do Bonde do Rolê (ou de Joyce no Japão) não pareçam irreais; em que o Brasil prove ter merecido a Bossa Nova – nessa hora brilhará no céu do mundo, numa das mais belas constelações, essa estrutura criada por pai e filho Faria a partir de Noel e Vadico. Na encruzilhada confusa que ainda se chama, em parte, Praça Sibelius (quem teria escolhido esse nome?), deu-se a iluminação. Não era nada demais. Apenas um modo adequado de se receber o que Paulinho, César, Vadico e Noel nos ofertam nessa peça.

O Feitiço do samba, o racismo da vila

O blog Obra em Progresso, criado por Caetano Veloso durante a elaboração do álbum Zii e zie, foi apagado. Pena, não apenas por ser a documentação de um processo criativo extremamente original, como também por ter sido uma ponte direta entre ele e seu público e ter se prestado a tratar de diversos outros temas, com participação ativa e relevante dos comentaristas, em vez de limitar-se à divulgação do trabalho, como é comum, dando voz a discordâncias e polêmicas interessantíssimas. Uma delas, por sinal, foi com o compositor e pesquisador Carlos Sandroni e se iniciou com a postagem deste vídeo:

Feitiço da Vila – Vadico e Noel Rosa, com Caetano Veloso

A impiedosa e tremendamente expressiva análise da letra de Feitiço da Vila por Caetano foi respondida à época por Sandroni nos comentários do blog. Caetano replicou e Sandroni treplicou – ambos civilizadamente, diga-se de passagem, de certo modo levando avante, sob outros termos, a polêmica original de Noel Rosa e Wilson Batista que motivou a composição do samba.

A discussão musical entre Noel e Wilson é já suficientemente documentada. Aqui e aqui, com vieses diferentes (um deles diz que o Feitiço não tinha nada a ver com a polêmica, sem apresentar argumentos), os fatos principais e a sequência de sambas de provocação e resposta estão todos relatados.

Os argumentos do Sandroni são, em sua maioria, baseado no seu excepcional livro Feitiço decente, em que ele disseca não apenas musicalmente o surgimento do samba, sua passagem da turma da Praça Onze para a do Estácio, que lhe impôs uma mudança rítmica fundamental, dando-lhe a divisão usada hoje, como também a passagem de música característica de uma parcela da população – eminentemente negra – para a música característica do Rio de Janeiro, e daí, mais tarde, de todo o Brasil.

O que ele diz é, basicamente, que o Noel não era racista, longe disso. Noel era amigo de todo mundo do samba, como Cartola, na casa de quem curou várias carraspanas. Noel insistiu com diversos dos sambistas da época que fizessem segundas partes para os refrões de improviso de domínio público, registrassem seus sambas e ganhassem dinheiro. Também fez a ponte para que cantores de sucesso da época gravassem esses sambas, possibilitando a aceitação pela classe média daquela música de preto e pobre. Em suma, as atitudes de Noel, em vez de racistas, foram justamente responsáveis pela assimilação daquela manifestação da cultura negra.

Ora, mas percebamos: estas duas análises – da canção por Caetano e da carreira de Noel por Sandroni – não são necessariamente excludentes. Talvez seja apenas o caso de aprofundá-las. Senão, vejamos: a discussão entre Noel e Wilson passou à história como sendo sobre os atributos de Vila Isabel, bairro de Noel. O buraco é mais embaixo: o que há é, da parte de Wilson, a exaltação de um modelo de sambista não assimilável pelo nascente mercado fonográfico, e da parte de Noel a tentativa de desacreditar este modelo, trocando-o por outro mais palatável, civilizado. No samba que desencadeou a briga, Wilson se descreve:

Meu chapéu do lado / Tamanco arrastando
Lenço no pescoço / Navalha no bolso
Eu passo gingando / Provoco e desafio
Eu tenho orgulho / Em ser tão vadio
(Lenço no pescoço, aqui com Silvio Caldas)

E Noel replica:

Deixa de arrastar o seu tamanco / Pois tamanco nunca foi sandália
E tira do pescoço o lenço branco / Joga fora essa navalha / Que te atrapalha
(…)
Com o chapéu de lado deste rata / Da polícia quero que escapes
Fazendo samba-canção / Já te dei papel e lápis / Arruma um amor e um violão.
(Rapaz folgado, aqui com Aracy de Almeida)

Percebe-se aqui, para além de alfinetadas de parte a parte, a estratégia de Noel, praticamente convidando Wilson a juntar-se a ele (na verdade, Wilson já era gravado, como fica claro acima). Depois, na sequência, a disputa assumiu ares bem mais pessoais, com Wilson chamando Noel de Frankenstein devido a seu queixo afundado (culpa do fórceps no parto) e Noel insinuando o xingamento de ladrão, na estrofe expelida de Feitiço (na verdade, improviso feito por ele num programa de rádio, o que não lhe tira a autoria). Neste meio tempo, Wilson também mandou: Cuide do seu microfone / e deixe quem é malandro em paz. Outra vez a questão da profissionalização vinha à baila: Noel não seria sambista, mas artista de rádio. A frase de efeito não disfarça o ressentimento: a inclusão do negro viria, mas por intermédio do convite de um branco que se identificou com aquela cultura e o apresentou aos outros, afiançando por ele. E neste meio tempo houve, sim racismo – admita-se.

Esta conversa vai longe, mas muito já foi dito do assunto, e mais ainda o será. Limito-me a indicar este ótimo artigo, que aprofunda o que eu disse aqui e ainda inclui um ótimo paralelo com Marcelo D2. O que quero fazer são algumas associações livres que me ocorreram, e que acho que podem contribuir com o assunto:

1- Monteiro Lobato publicou Caçadas de Pedrinho em 1933. Feitiço da Vila é de 34. Em 2010, o Conselho Nacional de Educação, órgão colegiado independente ligado ao Ministério da Educação, liberou um parecer sobre o livro de Lobato em que recomendava a inserção de uma nota explicativa pela editora, com esclarecimentos ao leitor sobre a presença de estereótipos raciais. Isto foi noticiado por boa parte da grande imprensa, interessada em desestabilizar o Ministro da Educação, como uma tentativa de censura. Na mesma época, vieram a público cartas de Lobato em que ele mostrava opiniões pessoais abertamente racistas – muito, mas muito mais que nos livros infantis. E que na música de Noel.

2- O Fla X Flu é um pouco mais velho que Feitiço da Vila: está completando 100 anos. Desde sempre, tricolores chamam flamenguistas de mulambada e gritam silêncio na favela para eles nos estádios. Desde sempre rubro-negros duvidam da masculinidade dos adversários das Laranjeiras. O Flamengo é time de massa, a torcida do Flu é apontada como de elite, de maior poder aquisitivo (como Noel fez questão de lembrar ter nível superior a Wilson). Há aqui racismo? Há homofobia? Há luta de classe? É possível – ou saudável – reduzir estas provocações mútuas politicamente incorretas a isto?

3- O processo de embranquecimento da música de preto não ocorreu apenas uma vez na música popular mundial. Elvis Presley, e Beatles conseguiram boa parte de sua popularidade inicial devido ao fato de tornarem palatável a um grande público consumir ritmos negros, já que agora eram feitos por brancos… O processo se repetiu inúmeras vezes ao longo do século XX: de Jackson Five a Backstreet Boys, passando por New Kids on the Block e antes pelos Menudos, a passagem é visível. Vanilla Ice no meio dos gangsta rap, Lisa Standfield, Norah Jones, Amy Winehouse, Adele, todas cantoras brancas cantando soul – a lista é quase infinita, e se completa de forma cruel em Michael Jackson, que representou este processo literalmente na própria pele. Aqui no Brasil, o próprio samba continuaria seu embranquecimento com a Bossa Nova. E o funk carioca atualmente vai se misturando com o chamado sertanejo universitário e sendo aceito por um público internacional – enquanto os funkeiros originais continuam segregados.

Sim, vai aqui um bocado de reducionismo, e proposital. Ou o que faço é apenas destacar determinados aspectos da questão, sem negar os outros. Que me parece que foi o que Caetano fez ao analisar Feitiço da Vila. Sua intenção era abrir o debate, escancarando e encarando um assunto que ainda escamoteamos muito – e minha intenção aqui é apenas levar o assunto adiante.

O racismo na obra de Monteiro Lobato levou decênios para ser, não detectado, mas encarado de frente – e mesmo assim causou espécie mesmo em pessoas que cresceram com seus livros – ou talvez por isso mesmo. Carlos Sandroni argumenta que não é possível estereotipar como racista alguém de 80 anos atrás sem levar em conta o contexto social, e é o que ele tenta fazer. O racismo de Lobato vem misturado com centenas de outras variáveis que fazem sua obra preciosa. Se há racismo na obra de Noel, vale o mesmo para ele. Mais útil do que julgamentos pessoais (deveríamos condenar toda a torcida de um time de futebol?), entendamos o processo pelo qual a sociedade – ou seja, nós – teve e tem necessidade de embranquecer os estilos de música negra que a encantam, para poder ouvi-la sem constrangimento, e porque os versos da dupla de funkeiros Amilcka e Chocolate soam ainda hoje como um tapa na cara, uma verdade dura: É som de preto, de favelado, mas quando toca ninguém fica parado!

Fulano de Tal – Vida e Obra

Em 1988, Cazuza voltou ao Brasil, depois de um curto período nos EUA, e lançou o álbum Ideologia. Nele havia a canção Boas Novas, que dizia:

Senhoras e senhores, trago boas novas
Eu vi a cara da morte, e ela estava viva!

No entanto, Cazuza oficialmente estava apenas recuperando-se de uma pneumonia que se complicara um pouco. Ele só admitiria publicamente ser portador do HIV no ano seguinte. Isto não o impediu, neste trabalho como eu todos os anteriores e posteriores, de colocar abertamente sua vida particular tanto em suas composições como na escolha de repertório alheio, como ao cantar Luz Negra, de Nelson Cavaquinho, a ponto de a revista Veja tê-lo colocado na capa – uma foto de quando pesava 40 quilos – com a manchete Uma vítima da Aids agoniza em praça pública, que causou enorme repercussão.

Cazuza foi um exemplo, como Michael Jackson no artigo abaixo, de artistas que são pratos cheios para exegetas, por colocarem – ou parecerem colocar, em certos casos – suas experiências reais, vividas, em sua obra. Isto dá ao seu trabalho artístico um sabor especial que vai bem além do valor estético: a sensação de penetrar na sua intimidade, pois suas canções são também, de certa forma, confissões. Mas para isto, em tese, é necessário que suas vidas sejam muito interessantes, é claro. Ou que sejam tornadas muito interessantes, e temos diversos exemplos de artistas que, independente do mérito de suas obras, sabem como ninguém utilizar a mídia a seu favor “criando” fatos pessoais para a promoção de sua arte. Mas o que dizer de uma vida absolutamente comum? Será capaz de suscitar uma boa canção?

Um Dia Útil, com Maurício Pereira:

Por outro lado, há uma espécie de senso (ou lugar?) comum de que a arte consiste na “expressão de sentimentos e emoções”. É óbvio que o artista, para criar, usa a si mesmo como matéria prima – seus conhecimentos, experiência, vivências (um amigo meu não pode ouvir ninguém dizer “Na minha opinião…” sem interromper: “Claro que é a sua, de quem mais?). Daí a considerar que obrigatoriamente as vivências relatadas são dele… Chico Buarque, célebre, entre outras coisas, por suas canções sob o ponto de vista feminino, que o diga.

O Meu Amor, com Chico Buarque:

Noel Rosa compôs Três Apitos para uma namorada chamada Josefina, que começara a trabalhar numa fábrica de botões no Andaraí. Noel foi procurá-la em seu carro velho, pensou que trabalhava em outra fábrica próxima, de tecidos.  A história desta confusão pode ser lida neste ótimo artigo.

Noel Rosa, em Três Apitos, fez uma descrição precisa das transformações profundas por que passavam o Rio de Janeiro e o Brasil na década de 30: a rápida industrialização da zona norte, as condições precárias do proletariado (“você no inverno/ sem meias vai para o trabalho”), a proliferação do automóvel, a popularização da publicidade (“quando a fábrica apita/ faz reclame de você”), enfim, uma nova cidade que se punha de pé. Esta análise econômico-social pode ser lida neste ótimo artigo.

Três Apitos é uma obra-prima porque, aliada à sua sensacional qualidade técnica e expressiva (colocando a palavra “grito” na nota mais aguda da música, por exemplo), traz algo do que o artista Noel Rosa era e do que ele via. Traz suas vivências transfiguradas, sua visão de mundo estilizada, e se torna bem maior que ambas. Se é verdade que sempre há uma parcela do público que quer o sangue do artista, cabe a ele realizar o milagre cotidiano da transformação deste sangue em vinho para oferecê-lo ao público. Sua vida não precisa ser espetacular para que sua obra o seja. Seu sangue não durará; o vinho, se tiver qualidade, ficará mais saboroso ao envelhecer, e sobreviverá a ele.

Três Apitos, de Noel Rosa, com Tom Jobim: