Uma vez Chico Buarque e Mané Garrincha se encontraram na Itália, e foram a um café bater papo. Chico falou de futebol, e Garrincha, de música. Chico ficou com a melhor das impressões, e conta que o Mané não mostrou nada da figura quase folclórica que ficou dele mais tarde: “era sensível, entendia João Gilberto”.
A relação entre música e futebol me parece a de um casal que se ama mas nem sempre se entende. Há as manifestações espontâneas das torcidas, criando cantos ou reinventando-os (a torcida do Fluminense cantando uma saudação ao Papa sempre me pareceu o fino do surrealismo. E o pior é que às vezes acontecia um milagre mesmo). Há também os funks divulgados oportunisticamente na esteira de vitórias, exaltando clubes ou jogadores. São manifestações extremamente saudáveis e que mostram a vitalidade criativa da nossa cultura, versões atualizadas do folclore. E, no outro extremo, há as tentativas várias de tradução direta da estética futebolística para dentro da pauta, para a linguagem musical.
Quem transita entre estes dois mundos com maior desenvoltura é Jorge Benjor. Canções como Fio Maravilha e Umbabarauma (Ponta de lança africano) encontram-se exatamente na fronteira entre eles, e conseguem ao mesmo tempo fazer a louvação e/ou a crônica de forma próxima da espontaneidade da torcida, e colocar em seus elementos correspondências com elementos futebolísticos – o drible, o chute, o suspense da jogada ainda inconclusa (quando a respiração de todo um estádio fica em suspenso), como na primeira parte de Fio Maravilha, aguardando a explosão do gol que vem na segunda parte. É uma partida de futebol, do Skank, segue a mesma trilha.
E na outra ponta desta equação ficam canções como esta:
O Futebol é do álbum de 1989 do Chico. Tive a idéia de falar da música depois de ler este post do Blog do Chico (outro Chico, o Assis Furriel), em que ele decupa a música do ponto de vista futebolístico. Aqui vai seu complemento, falando do ponto de vista musical. Se O Futebol, esportivamente falando, é filha das seleções de 58 a 70 e do futebol brasileiro de então, musicalmente é filha dileta da bossa nova, ou mais especificamente, de duas de suas canções-chave, contrárias e gêmeas, que são Desafinado e Samba de uma nota só.
As histórias e análises destas duas canções de Tom Jobim e Newton Mendonça são bastante conhecidas. Desafinado foi composta como uma resposta irônica às críticas que a recém-nascida Bossa Nova recebia, como “música de desafinado”. Tom e Newton colocam a melodia sempre nas dissonâncias dos acordes e criam uma melodia sinuosa que nunca vai na direção esperada. Já o Samba de uma nota só segue o caminho inverso: põe a melodia em linha reta enquanto a harmonia se move embaixo dela, como se o corredor ficasse parado enquanto o chão é que corre. José Miguel Wisnik analisa Desafinado na série O Fim da Canção – link aí ao lado – e um post deste blog tirado do blog Doida Canção – link ao lado – trata do Samba de uma nota só.
E O futebol então toma para si o melhor de dois mundos. Sua melodia busca reproduzir a imponderabilidade do jogo, ao mesmo tempo que traça uma vaga geometria – paralelas, diagonais, parábolas – e ainda relacionar esta geometria com questões estéticas – para emplacar em que pinacoteca, para emplacar o visual de um chute a gol. Ora a melodia avança em zigue-zague, equilibrando-se improvavelmente nas notas de ponta dos acordes, como Desafinado, como em para aplicar uma firula exata; ora se lança de repente em linha reta como o Samba de uma nota só, como em para avisar a finta enfim – e o verso seguinte, novamente sinuoso, enganoso: quando não é… e a palavra seguinte evoca a melodia em linha reta anterior em apenas uma sílaba, ameaçando segui-la novamente: sim… e a estrofe termina com a evocação agora da segunda frase, completando o sentido e o drible no ouvinte: no contrapé. Como as súbitas quase-arrancadas de Garrincha, em que o adversário ia e a bola ficava…
Poderia citar diversos outros exemplos desta interação absoluta entre melodia, letra e harmonia, desta interação entre as duas opostas/iguais da Bossa Nova. Como no verso para avançar na vaga geometria, que avança em curva, para logo depois desenhar o corredor em linha reta, euclidiano; e a paralela do impossível é obviamente curva… e o sentimento diagonal é reto, mas com o chão harmônico se movendo, de modo a tornar diagonal a linha reta da melodia; e vai por aí afora.
Mas não posso deixar de tratar da dedicatória em forma de locução de futebol que Chico acrescenta no final. Trata-se de apenas uma frase melódica, que começa em linha reta no agudo para depois descender e terminar suavemente. Para Mané, para Didi, para Mané (a matriz futebolísitca é de quando jogadores não se chamavam Maicossuel ou Fábio Rochemback), em ritmo rápido e entrecortado, numa linha reta que tem sentido diferente das anteriores, remetendo ao grito do locutor; e que aos poucos se converte numa lista emocionada de dedicatórias: para Pagão, para Pelé e Canhoteiro. Nesta curva descendente da melodia, o futebol se converte de uma diversão de massas (simbolizada na figura do locutor) para uma vivência particular e uma lembrança do próprio Chico, que é compartilhada com o ouvinte.
O Futebol é uma canção sofisticada, como o próprio futebol pode ser, quando bem jogado. Não é definitivamente para ser cantada por uma torcida em coro num estádio, mas para ser sentida em termos pessoais, até intimistas, como a Bossa Nova. É uma das múltiplas possibilidades de união entre estas duas grandes forças da cultura do país. Como Chico e Garrincha batendo papo numa mesa de bar. À sombra de João Gilberto.
O Futebol – versão ao piano solo – André Mehmari
(essa vai de brinde)