Caboclos, Ponteios e MPB

Resumindo brutalmente, o início já se sabe: Mário de Andrade disse que o compositor brasileiro que não cuidava de fazer música com cara de brasileira era uma reverendíssima besta, e Villa Lobos concordou. E tome-se a fazer orquestrações sinfônicas de temas folclóricos, metendo instrumentos europeus em temas africanos, violinos onde se ouvia tambores, com resultados… surpreendentemente bonitos. Principalmente porque eram o resultado possível.

O que não era esperado, principalmente pelo Mário, era que estes resultados com o tempo extrapolassem da música erudita para a popular. E o processo para isto também é inesperado: uma parcela da música popular passou a estudar e tratar diretamente com o folclore… por influência da música erudita, a despeito da sua, teoricamente, maior proximidade.

Isto se deu não só pelo exemplo de Villa-Lobos, mas também de Guerra Peixe, que teve uma trajetória peculiar: depois de anos filiado à corrente experimentalista dodecafônica de influência do professor Koellreutter, quando participava do Grupo Música Viva, ele deu uma guinada e se voltou para o nacionalismo, primeiro procurando nacionalizar a escala de doze sons, e depois abandonando-a e abrindo os braços para a música popular, ao fazer inclusive arranjos sinfônicos para músicas de Chico Buarque, Luiz Gonzaga e Tom Jobim. Mas não só: compôs também ponteados para violão ou viola, Folias de Reis, Linhas de Catimbó. Coisas bastante distantes do que os compositores populades brasileiros costumavam fazer, com raras exceções.

E aí estas pesquisas do Guerra Peixe, mas não só dele, serviram como uma senha para que a nascente MPB – a dos moldes atuais, pós Bossa Nova – tivesse a coragem de partir decididamente para a imensa multiplicidade musical brasileira, o que deu permissão para, anos depois, Tom Jobim virar parceiro de Jararaca, da dupla caipira Jararaca e Ratinho, na música O Boto. E aí veio Edu Lobo.

Ponteio, de Edu Lobo e Capinan – Edu Lobo e Marília Medalha

Edu Lobo, Dori e Marília Medalha contam a história de Ponteio

Ponteio é, como Viola Fora de Moda, também do Edu, uma tentativa de fusão ente o erudito e o folclórico no campo teoricamente neutro do popular. São composições muito idiomáticas – o que significa que não faria sentido serem feitas em outros instrumentos, a começar pelos títulos. São canções, mas são também peças instrumentais escritas para violão em seus acompanhamentos. O que não significa que não possam ser regravadas como canções populares, simplesmente, com resultados variados, na medida em que se tenha em conta suas origens e se saiba tirar partido delas. É possível transformar Ponteio em um sambalanço? É.

Ponteio com Grooveria Eletrônica

Mas o que a canção tem a ver com este arranjo, com esta interpretação?

É possível transformar Ponteio em um drum and bossa? É.

Ponteio com Da Lata

É de se notar as diferenças entre estas duas releituras: na primeira, uma narrativa que envolve violência e tem referência políticas veladas é tratada de forma festiva e descontextualizada. O arranjo usado poderia servir para praticamente qualquer música, a despeito de sua qualidade instrumental. No segundo caso, a atmosfera de tensão da composição é mantida com o uso de uma harmonização próxima da original, e elementos regionais como o triângulo são amalgamados com a base eletrônica predominante. É claro que não deixa de haver um distanciamento entre esta sonoridade e o relato da letra. No entanto, a presença de um violão soando durante a introdução – e apenas nela – evidencia um desejo de contextualizar a versão, como que apresentando sua origem logo de saída, de modo a permitir as liberdades que são tomadas depois sem que se perca de vista o mote fundamental:

Ô voce, de onde vai, de onde vem?
Diga logo o que tem prá contar.

 Fica faltando uma comparação:

Pé de Calçada – Mestre Ambrósio

Pé de Calçada (referência ao forró de pé de serra, considerado o legítimo pela sua ascendência folclórica), tem uma diferença crucial para Ponteio: embora ambos sejam cantados na primeira pessoa, na letra de Capinan o personagem narrativo é o próprio homem do sertão (em mistura com a leitura política. Porém, mesmo nessa, está implícita a visão politizante do camponês, como nas Ligas de Francisco Julião); já na canção de Siba, o narrador se assume em sua urbanidade, e admite claramente estar fazendo, digamos, um folclore de segunda mão, sem contudo com isto perder sua legitimidade. Ele apenas não tenta se camuflar como homem do campo, como se apenas este tivesse legitimidade para fazer forró – ou ponteio -, antes deixa claro que, como a população brasileira em geral, tem sua origem no sertão e hoje vive na cidade – de caboclo eu sei minha situação.

Com isso, também não tenta implantar mais ou menos à força uma harmonização “européia”, ainda que tendo estudado os modalismos sertanejos etc., mas consegue uma mistura muito mais homogênea dos elementos de diversas orígens (no caso desta gravação, a produção foi do iugoslavo Mitar Subovic, o Suba, falecido precocemente num incêndio de sua casa em SP). Em vez das orquestrações sinfônicas (que continuam pela nova tradição Armorial), a rabeca de Siba, violino que na verdade tem origem árabe.

De modo que há na comparação entre estas duas canções separadas por 30 anos a percepção de um avanço – independente de qualidade composicional – na concepção de nossa relação com a música folclórica. As reverendíssimas bestas de Mário de Andrade ficaram para trás?

De Mário de Andrade a Mestre Ambrósio – uma epopéia

Capítulo 1

Era uma vez um Chico. Nascido em 1904 segundo a certidão de casamento, em 1908 segundo a carteira de trabalho, em Cortez, aldeola do Rio Grande do Norte. Seis anos de escola, analfabetismo e trabalho na roça para toda a vida. E depois dos doze anos, o coco.

Com vinte anos, Chico Antônio era o maior coqueiro da região, vencendo desafios com os mais afamados cantadores . O que para o Brasil “civilizado”, “aculturado”, o Brasil que tinha achava saber o que era o Brasil, significava absolutamente nada. Ainda faltava muito para o Brasil conhecer o Brasil. Mas já havia quem desconfiasse disso.

Era uma vez Mário de Andrade. Mário era escritor, crítico de arte, musicólogo, e acreditava firmemente na vocação do Brasil para ser Brasil. Mário, com sua imensa cultura e sua visão panorâmica, influenciou praticamente todas as áreas de produção artística brasileiras de sua época, das artes plásticas à música. Pois Mário decidiu ele mesmo conhecer o país real, e parte em viagens etnográficas pelo Norte e Nordeste, recolhendo as impressões da arte que se fazia fora das dos centros que só conheciam a si mesmos. E em 1929, Mário e Chico se encontraram.

Ficaram amigos. Mário ficou fascinado com a capacidade de improviso de Chico, o ritmo que era capaz de dominar.

Que artista. A voz dele é quente e duma simpatia incomparável. A respiração é tão longa que mesmo depois da embolada inda Chico Antônio sustenta a nota final enquanto o coro entra no refrão. O que faz com o ritmo não se diz! Enquanto os três ganzás, único acompanhamento instrumental que aprecia, se movem interminavelmente no compasso unário, na “pancada do ganzá”, Chico Antônio vai fraseando com uma força inventiva incomparável (…).

Mário falou de Chico em nada menos que cinco livros. Convidou-o para ir para São Paulo com ele – Chico recusou, tinha mulher e filhos para criar. Não havia à época tecnologia para gravar o coco de embolada que ele sabia tirar. Só o que o Brasil aculturado soube de Chico foram os relatos de Mário. Ele virou uma lenda de um Brasil distante que ninguém pensou em conferir se existia mesmo de verdade. E Chico continuou na roça, tirando coco nos fins de semana.

Anos mais tarde, como tantos, foi tentar a vida no Rio de Janeiro. Trabalhou em Bonsucesso, Botafogo, Jacarezinho. Não se adaptou. Voltou, disposto a trabalhar na roça até morrer, e cantar coco como gostava e sabia. E sem saber da fama que tinha nos meios intelectuais de antropólogos e musicólogos, que também não tinham idéia se estava vivo ou morto.

Em 1979, a História deu a volta na esquina. O folclorista Deífilo Gurgel saiu com o carro da repartição do governo do RN (tinha o pomposo cargo de diretor de Promoções Culturais da Fundação José Augusto, e nenhuma verba) para fazer por conta própria pesquisas sobre o patrimônio cultural do estado. No último dia, estava em Pedro Velho, quando o tabelião local foi servir de guia e afirmou que perto dali havia um embolador de coco de primeira. Era tarde, Deífilo estava exausto, mas quando ele falou “Chico Antônio”, partiram imediatamente por 10 quilômetros de estrada de terra. Perguntou ao velho de 75 anos que encontraram numa casa de taipa: “O senhor lembra de um pessoal de São Paulo que veio ver o senhor cantar lá no Bom Jardim?” Resposta: “Lembro do doutor Mario. Mario de Andrade.”

A lenda ressussitara. Deífilo escreveu para os jornais locais, os jornais das cidades grandes do Brasil repercutiram, e logo o secretário da Cultura do Ministério da Educação foi conhecê-lo pessoalmente. Em 1982, Uma equipe da Funarte foi ao seu casebre para gravar sua arte. Ele chamou o vizinho Paulírio e cantou seus cocos. A voz não correspondia mais à da juventude, o ritmo já nem era tão firme, mas os improvisos estavam todos lá. O LP correu mundo. Chico cantou na TV, deu entrevista a jornais, ganhou pensão vitalícia do governo. Depois, passou de moda. Morreu em 1993, no casebre onde viveu toda a vida, no ano do centenário de Mário de Andrade.

Capítulo 2

Em 1992, um grupo de rapazes de Recife se juntou para fazer uma banda. Em meio ao efervecente movimento Manguebeat, decidiram chamá-la com o nome do mestre de cerimônias do teatro folclórico popular Cavalo Marinho na Zona da Mata, norte do estado de Pernambuco – Mestre Ambrósio. Pesquisaram a fundo as manifestações musicais nordestinas, e quando tiveram a oportunidade de gravar seu primeiro álbum, independente, no estúdio do Conservatório Pernambucano de Música, resolveram incluir entre temas instrumentais e canções autorais uma das músicas que conheciam do disco de Chico Antônio editado pela Funarte: Usina (Tango no Mango). Usina é uma típica canção “uma coisa puxa a outra” do folclore brasileiro, como A velha a fiar e tantas outras.

Gravaram-na com algumas adaptações em relação ao registro de Chico, (ladrão de corda virou ladrão de bode para rimar com nove, e o último ladrão não é mais de feijão, mas de ladrão – malícia acrescentada que podia bem ser do Chico. Mas nitidamente houve uma certa preocupação em não trair o espírito da versão “original”, tanto que Siba mantém o Dos dois só ficaram um de Chico, assim como seu ritmo declamatório, apenas mais regular com a introdução de outros instrumentos, mas ainda a passo andante e com ênfase na percussão, sem instrumentos de harmonia, apenas baixo e rabeca.

Aí, o álbum fez sucesso. No boca-a-boca, foi ganhando público, chegou a 20 mil exemplares vendidos, teve clip na MTV. E o grupo tornado cult assinou contrato com gravadora multinacional. Para o segundo CD, decidiram regravar algumas das músicas do primeiro – possivelmente por pressão da gravadora, que almejava alcançar públicos maiores. Agora, não se tratava mais de um trabalho de pesquisa, mas uma banda de música pop.

Então, Usina passou por uma transformação. A necessidade de se fazerem compreendidos por um público que agora incluia as grandes cidades que haviam ignorado Chico Antônio por anos e anos fez com que o poico roubado virasse biscoito; o verso ladrão de fé, que já virara de jegue, agora é de chiclete; o ladrão de rês agora rouba pão francês. A nega dum bordé que o próprio grupo havia colocado num verso incompreensível de Chico deu lugar ao inócuo verso pensando ser boa idéia. E o português foi corrigido na última estrofe: desses dois só ficou um. O ritmo foi acelerado, passando do discursivo para o dançante. Os instrumentos melódicos, que entravam no meio do arranjo da primeira gravação, agora já fazem a introdução, e um violão faz o enchimento harmônico antes desnecessário.

Ainda assim ou por causa disso, o resultado é magnífico, como todo o álbum, que ganhou elementos eletrônicos do genial produtor sérvio Mitar Subotic. Acabou ganhando reconhecimento nos EUA, e o grupo iniciou 2000 em turnê por lá.

Epílogo

O cantor Lenine encontrou em Toulouse, na França, uma estátua de Chico Antônio. A legenda dizia que se tratava do maior cantador do século XX. A estátua existe porque o pesquisador Claude Sicre, que traça um paralelo entre os cantadores nordestinos e os trovadores medievais, ouviu o CD da Funarte e convenceu o governo a erguer a estátua na Place des Troubadours.

O músico, dançarino e pesquisador Antônio Nóbrega gravou em 1996 o CD Na pancada do ganzá, em que gravou a canção homônima, parceria com Wilson Freire. Nóbrega terminou a gravação bradando entusiasmado: “Chico Antônio! Chico Antônio! Este coco é pra Chico Antônio!”

A casa onde Chico Antônio viveu foi tombada em 2004 pelo Patrimônio Histórico e Cultural do Estado do Rio Grande do Norte. Em 2006, estava caindo aos pedaços, mas não podia ser concertada por ser tombada. Não consegui nenhuma informação posterior a isto. Os filhos e netos de Chico moram alí perto. Trabalham na roça.

O Brasil já bateu duas vezes na porta de Chico Antônio. Entrou, gostou do que viu e ouviu, e foi-se embora. Enquanto isso, a música de Chico está por aí. No repente que segue nas feiras e ganha a mídia vez por outra, nos raps, no movimento Manguebeat, em trabalhos eletrônicos espalhados pelo Overmundo, em que se mistura com o que aparecer, mudando como a cultura muda, sem o peso de ter que manter uma tradição, e mantendo-a ao se modificar, como fez o Mestre Ambrósio ao gravar duas vezes a mesma música, fazendo-a duas músicas diferentes. Influenciando artistas como Lenine, Zeca Baleiro, Tom Zé, Naná Vasconcelos e outros, que ganham mundo reprocessando a voz dos cantadores que o Brasil há séculos não faz questão de escutar. A casa de Chico possivelmente virará pó, se depender do descaso do país. Sua voz continua ecoando. Basta prestar atenção.

Usina (Tango no Mango), com Chico Antônio (A foto no vídeo foi tirada por Mário de Andrade)

Usina (Tango no Mango), com Mestre Ambrósio – primeiro álbum

Usina (Tango no Mango), com Mestre Ambrósio – álbum Fuá na Casa de Cabral

P.S. Este post enorme serve de comemoração pelos dois meses de blog, completados ontem, e é dedicado ao pessoal do CCBB Educativo do Rio de Janeiro. Abração, pessoal.