Lendo o artigo abaixo, de Henry Burnett, lembrei do José Ramos Tinhorão, como também do Ariano Suassuna, que é citado na versão completa do artigo, aqui. Lembrei porque suas posturas abertamente nacionalistas e um bocado pessimistas, a despeito da fantástica produção de ambos, me parecem muito alinhadas tanto com os pensamentos de Theodor Adorno e de Mário de Andrade – ou melhor dizendo, são a possível confluência destas duas linhas.
E, no entanto, sempre me parece que algo escapa à análise deles quando se trata da produção da música popular. E talvez seja exatamente o fato de eles, Tinhorão e Suassuna, de certa maneira, aplicarem à música popular o diagnóstico de Adorno e Mário, que não era exatamente voltado para a música popular – e quando era, a subestimava.
A análise crítica que Tinhorão faz da música brasileira é confessadamente marxista, assim como a teoria da Indústria Cultural de Adorno é baseada na dialética de Hegel, que influenciou Marx decisivamente. Em ambas, chega-se à conclusão desalentadora de que, embora seja preciso resistir, não é possível resistir. A supererstrutura econômica sempre é mais forte, e sempre passa como um trator sobre as peculiaridades regionais, nivelando tudo por baixo e matando a cultura genuinamente popular. Coincidentemente, enquanto Adorno condena o jazz como um fruto da padronização técnica da música, Tinhorão condena a Bossa-nova exatamente pela sua influência exógena, o jazz.
Assim também Ariano Suassuna considerou que o movimento Manguebeat estaria para o maracatu (e o rock) como a Bossa-nova estaria para o samba (e o jazz): seria uma deturpação da cultura popular original por uma outra cultura, industrial e estrangeira. Em ambos os casos, existe a preocupação com uma determinada identidade nacional que estaria sendo solapada pela mistura. Mesmo sabendo perfeitamente que a cultura popular – a chamada folclórica – está sempre em transformação, eles não aprovam a grande maioria das transformações que ocorrem.
Adorno e Mário tem uma coisa em comum, quanto ao período em que viveram: assistiram, de formas diferentes, ao nascimento de uma música popular absolutamente diferente da música “séria” de Adorno e dos compositores eruditos brasileiros que Mário influenciou, e diferente também da música folclórica que Mário pesquisou a fundo e de forma pioneira em suas viagens pelo Brasil. Mário defendeu veementemente que compositores eruditos brasileiros usassem temas populares (folclóricos) em suas composições, a fim de que, em um estágio mais adiante, esta forma de escrever “brasileira” se incorporasse a seu estilo. Porém, em 22, Villa-Lobos apresentava peças debussyanas na Semana da Arte Moderna em São Paulo, os Onze Batutas de Pixinguinha excursionavam pela Europa… A música popular estava, na prática, vários passos à frente do pensamento modernista. Mas Mário não soube reconhecer isto.
Tinhorão, em uma entrevista ao programa de TV Roda Viva em abril de 2000 (disponível aqui), conta:
…eu fiz um acordo no Jornal do Brasil. Quando eu aceitei aquela idéia de escrever lá, em 1975, eu fiquei escrevendo no Jornal do Brasil de 1975 a 1980 sobre… Já morando aqui em São Paulo, eu tinha vindo para ser sub-editor da Veja, e eu mandava a coluna para o Rio. Mas eu disse o seguinte: “eu só quero escrever sobre música brasileira.” Aí, fizemos um acordo, eu fiz um acordo com o Tárik de Souza [jornalista e crítico musical]. Ele escrevia, por exemplo, sobre Rita Lee, Mutantes, Roberto Carlos e tal [risos], sobre o que quisesse de música estrangeira, e eu… Por isso é que depois de cinco anos eles me mandaram embora, porque eu só escrevia exatamente sobre sujeitos que não vendem. Eu escrevia sobre Zé Coco do Riachão [(1912-1998), músico do norte de Minas Gerais conhecido pelas rabecas que fabricava], o comparei a uma figura da Renascença [séculos XIV-XVI], porque o Zé Coco do Riachão tocava viola, dançava, compunha para viola e fabricava a viola. Então, ele era, assim, um “da Vinci caboclo”.
Tinhorão deixa claro que sua questão não é contra o instrumento ou tecnologia estrangeira, mas sim o “sotaque” que a acompanha. Assim como a rabeca é um instrumento derivado do violino europeu, a guitarra baiana de Armandinho é considerada por ele um exemplo da capacidade de absorção da tecnologia sem a contaminação estética.
Esta discussão da contaminação estética me lembra a divisão de Humberto Eco em Apocalíptcos e Integrados, sujeita a simplificações aviltantes, diga-se de passagem. Longe de querer pela enésima vez tentar refutar o pensamento de Tinhorão e Suassuna. O que se quer aqui é procurar alternativas às questões que eles apresentam. O que me parece, como já afirmei, é que a capacidade de a música popular brasileira subverter as influências estéticas externas é subestimada por eles.
E sem dúvida esta capacidade tem a ver com o movimento musical que se filiou mais fortemente ao modernismo de Mário de Andrade: a Tropicália. Foi então que influências do rock e do pop, que até então eram copiadas pela Jovem Guarda, começaram a ser digeridas em uma produção com características brasileiras. Era um desdobramento da antropofagia de Mário. E dos integrantes da Tropicália, ninguém mais que Tom Zé se manteve no espírito desta antropofagia.
Esteticar – de Tom Zé, Vicente Barreto e Carlos Rennó
O álbum Com defeito de fabricação, de onde veio esta canção, traz um texto de Tom Zé sobre a estética do plágio, ou do arrastão, conceito que norteia o álbum e do qual Esteticar é, nas palavras do autor, a Espinha dorsal. Um trecho:
A estética de Com defeito de Fabricação re-utiliza a sinfonia cotidiana do lixo civilizado, orquestrada por instrumentos convencionais ou não (…) unidos a um alfabeto sonoro de emoções contidas nas canções e símbolos musicais que marcaram cada passo da nossa vida afetiva. A forma é dançável, rítmica, quase sempre A-B-A, com coros, refrões e dentro dos parâmetros da música popular. O aproveitamento desse alfabeto se dá em pequenas células, citações e plágios deslavados.
O rítmo de Esteticar é um “mulato” baião quebrado. A palavra mulato vem a calhar para definir o hibridismo da música popular. Tom Zé reage à subestimação do protagonismo da cultura popular, em duas estrofes que são um primor de sintaxe, para logo depois desertar desaforadamente da cultura erudita: “penso e dispenso a mula da sua ótica / Ora, vá me lamber tradução intersemiótica!” Tom Zé responde à denúncia da descaracterização da música nacional recaracterizando-a, sem negar nenhuma influência, mas, pelo contrário, aproveitando de tudo para fazer algo autenticamente nacional, de forma aparentemente simples, mas carregada de referências. O título Esteticar é perfeito ao dar voz ativa ao artista representante de sua cultura no molde de sua arte.
Isto não significa que Tom Zé absolva toda obra de arte como reprocessamento de influências, e pronto. Em outros momentos ele critica, e ferozmente, a que é feita meramente pela utilização do molde mercadológico. Mas, assim como Mário de Andrade recomendava o uso da fórmula popular pelos compositores como um estágio consciente de formação da própria linguagem, talvez a cópia da fórmula estrangeira possa ser considerada um primeiro estágio de assimilação, como a Jovem Guarda contribuiu para a Tropicália, ao copiar arranjos em até expressões do rock inglês e americano. Haveria então um processo histórico em que a cultura do país digeriria as intervenções externas, para reaparecer mais adiante, transformada, reformulada, mas não necessariamente descaracterizada.
Enfim, esta discussão vai longe. O que me fica é a sensação de que, talvez pela ortodoxia de uma visão marxista, talvez por um conceito de nacionalismo que vai-se tornando obsoleto, Adorno e Mário – e Tinhorão e Suassuna – deixam escapar entre os dedos as possibilidades de entendimento teórico do que a música popular faz cotidianamente, seja conscientemente como Tom Zé, ou não, como bandas Calipso e outras, reprocessando o lixo e o luxo cultural em produtos novos, não resistindo à influência estrangeira, mas devolvendo-a reciclada. Os pedidos de socorro de Tom Zé em Esteticar não estão na letra do encarte. Talvez possam ser lidos sem as vírgulas, ou talvez sejam um chamado para estes dois pesquisadores e criadores se juntem a ele. Mas não me parecem irônicos.