De peixes e peixinhos

O que não falta no mercado hoje são filhos de cantores, compositores, instrumentistas, que seguiram a profissão dos pais. Nada mais natural, por um lado. É algo que me lembra as associações de ofícios da Idade Média, em que os artesãos passavam suas profissões adiante por gerações – e o trabalho com arte é sem dúvida um ofício artesanal ainda hoje, mesmo quando pensado para ser consumido por uma massa anônima e desconhecida, o que é uma de suas contradições inerentes.

Por outro lado, é algo que não deixa de me incomodar (em parte, claro, por eu não ser filho de ninguém famoso…), pela quantidade de filhos de músicos que não conseguiram nunca sair de baixo da sombra das obras dos pais – o que também não deve, ou não deveria, ser nada fácil para eles. Porém, noves fora os que abertamente tem carreiras fabricadas, e dos quais me eximo de falar, há casos dos que até tentaram se libertar desta sombra em suas carreiras, mas não conseguiram mostrar qualidades próprias que fossem superiores às semelhanças com seus predecessores, fossem físicas, vocais, ou de estilo.

Lembro bem quando Maria Rita, filha de Elis Regina e do grande pianista e arranjador Cesar Camargo Mariano, surgiu na mídia, apadrinhada por Milton Nascimento. Houve uma comoção no país, não exatamente pelo seu trabalho, ainda incipiente, mas pela semelhança da voz dela com a da mãe. O primeiro álbum, e também o segundo, seguiram trilhas de repertório próximas dos de Elis, e até a escolha de compositores novos, em vez de afastá-la, aproximava, já que a mãe fazia o mesmo – inclusive com o próprio Milton. A coisa chegou a ponto de o cantor Lobão ter dito em entrevista que assistia o maior fenômeno de necrofilia da história do Brasil. Talvez tenha sido por isso que Maria Rita, a partir do terceiro álbum, tenha enveredado por um caminho diferente, cantando sambas: para firmar uma carreira longe da pecha de filha da maior cantora que o país já teve.

Já Diogo Nogueira não parece ter constrangimento com a sua filiação. É filho do grande  sambista João Nogueira, de excepcionais composições. Seu primeiro álbum, de 2001, chamava-se Um sonho através do espelho, em referência ao álbum Espelho às canções Espelho e Além do espelho, de seu pai. Porém, curiosamente, este álbum é ignorado na discografia oficial de seu site.

Sendo assim, considere-se que Diogo foi lançado por um CD/DVD ao vivo – bastante cacife para alguém que não tinha um repertório gravado. Gravou vários sambas do repertório do pai, e composições novas, algumas com sua participação na autoria. E seu “primeiro”  CD de estúdio, então, tem nada menos que uma parceria de Ivan Lins e Chico Buarque, Sou eu, que foi direto para a trilha da novela e para as rádios.

Sou eu – Diogo Nogueira, com uma participação pouco perceptível de Chico Buarque.

Sou eu conta a história do sujeito que leva a moça para o samba, atura que ela jogue charme para todos os lados, com o consolo de que no fim da noite será ele seu acompanhante. É uma situação dúbia, em que não fica claro se o protagonista é um cara de sorte ou um fraco que não é respeitado pela namorada. Sendo cantado na primeira pessoa, é óbvio que o refrão será um meio de tentar transformar a situação embaraçosa em contação de vantagem. Mas há um detalhe na harmonia de Ivan Lins que contribui para solapar este grand finale: os acordes do refrão não se resolvem, escorregam de dominante em dominante e impedem que o “sou eu” repetido na letra se transforme em afirmação peremptória. Fica sempre a impressão de que esta assertiva tão firme na verdade é usada para disfarçar a insegurança de quem não sabe se é namorado ou chofer da moça em questão.

Por isso mesmo, não me agrada particularmente o fim da gravação do Diogo, em que ele coloca cacos na letra e se empolga na tiração de onda. Dizendo coisas como “modéstia à parte” e se intitulando “o rei do pedaço”, ele acaba com esta ambiguidade que é o grande trunfo do samba, recusando o papel do sofrido algo humorístico, que é comum na obra de Chico (em Ela é dançarina e Até o fim, por exemplo), em favor de um papel de malandro que é bem mais pobre. Fica a impressão de que Diogo não entendeu perfeitamente o espírito da coisa.

Mas o que mais me chama a atenção neste samba não é isto. O samba Sou eu é todo baseado em um motivo melódico de seis ou sete notas descendentes, dependendo da frase da letra, que pode ser ouvido em “Pra quem que ela arrasta asa?”, por exemplo, além do refrão. Acontece que esta é a mesma frase melódica, com uma divisão rítmica um pouco diferente, que serve de base para uma conhecida composição de João Nogueira.

Eu heim, Rosa! – João Nogueira, do álbum Parceria, com Paulo Cesar Pinheiro

Esta gravação com o próprio João pode não ser a melhor para perceber a semelhança, pois, já sem a agilidade vocal de outros tempos, ele malandramente aplaina a melodia descendente de “Se manca, segura essa banca de escrupulosa”, só apresentando a frase original ao cantar a primeira estrofe. Mas a gravação de Elis Regina deixa clara a semelhança. Em Eu, hein, Rosa!, o motivo melódico aparece na frase que já citei, mas também, reduzido para cinco notas, em frases como “quando precisar de mim”, ou estendido em “apelar pra ignorância é uma coisa indecorosa”

Eu heim, Rosa! – com Elis Regina, ao vivo

Muito bem, e daí? Será que é proibido fazer sambas baseados em melodias descendentes, apenas porque João Nogueira fez um? Imaginar que Ivan Lins tenha feito uma melodia propositalmente parecida com a de João para Diogo me parece absurdo. A hipótese de que Ivan tenha se influenciado involuntariamente pelo fraseado do pai ao compor para o filho já não me soa tão despropositada.

Mas o essencial nesta semelhança, sem dúvida, não é culpabilizar compositores ou cantores, e sim perceber o quanto esta semelhança pode ser utilizada numa estratégia de marketing, e o quanto esta utilização pode chegar a extremos de detalhe – como uma linha melódica. Quando Maria Rita se lançou cantora, a identificação com o mito que é sua mãe foi explorada cuidadosamente, fosse ou não confortável para ela – e nem sempre parecia confortável, sendo descartada quando a artista amadureceu – ou quando deixou de ser lucrativa. No caso de Diogo Nogueira, esta identificação está sendo feita de forma mais suave, guardadas as proporções entre Elis e João Nogueira, e Diogo parece bem mais à vontade. Talvez ambos consigam firmar carreiras de real significância na música brasileira, no sentido de apontar caminhos, e escapem da comparação com seus pais. Boa sorte para eles. Graças ou apesar de seus empresários.

Folclore. Folclore?

É sempre bonito ver quando alguém consegue cantar um tema assim chamado folclórico incorporando-o ao seu repertório sem rupturas. É sinal de que seus  pés estão bem fincados no chão, o que em música popular é fundamental. Mesmo a composição mais elaborada precisa manter este fio terra desimpedido, ou correrá o risco de se tornar mera teorização vazia, discussão intelectualizada – ou seja, vai deixando de ser arte, ou pelo menos arte popular.

Além disso, adoro comparar gravações. Gosto de ver como cada artista consegue trazer um tema escolhido para o seu universo musical, adaptando e adaptando-se, e muitas vezes revelando elementos fundamentais de seu trabalho que permanecem diluidos em outras músicas. Eventualmente, duas gravações da mesma música se distanciam enormemente, o que, sendo uma canção de domínio público, ao mesmo tempo é muito natural e pode ser espantoso.

Déa Trancoso é uma cantora mineira que mergulha fundo nas tradições populares. Gravou o seu primeiro CD, Tum Tum Tum em 2007 a partir do repertório musical do Vale do Jequitinhonha.

Wado é curitibano radicado em Alagoas, o que já dá uma boa medida de seu cosmopolitismo, e também de sua capacidade de misturar infuências. Gravou A Farsa do Samba Nublado, com a banda Realismo Fantástico, em 2004.

Grande Poder – com Déa Trancoso

Grande Poder – com Wado e o Realismo Fantástico

Mas há algo que considero talvez ainda mais interessante que isto: é quando o artista cria algo que tem ao mesmo tempo as características estéticas do seu trabalho, uma elaboração formal que dialogue com seus contemporâneos (ou com mestres), e uma identificação tal com a arte popular que pode mesmo vir a se confundir com o repertório folclórico. Volpi, nas artes plásticas, conseguiu isso, a meu ver. No campo da música brasileira, ninguém o fez melhor que Dorival.

Roda Pião – Dorival Caymmi

Roda Pião – Azymuth

Em tempo: Azymuth, trio de instrumentistas brasileiros radicados nos EUA, em atividade desde 1970 (!)

O cantor e compositor carioca Edu Krieger conta que um dia estava passando em frente a uma escola municipal, quando ouviu música no pátio, e se achegou ao portão para ouvir. Qual não foi sua surpresa ao reconhecer que uma ciranda sua estava sendo ensinada na aula de música. Ele ainda estava  gravando seu primeiro álbum, mas a canção já fora gravada por mais de uma cantora, como Rita de Cássia e Maria Rita. Edu esperou a aula acabar, pediu licença para falar com a professora e perguntou de onde ela conhecia a música. A professora então “informou” a ele que a canção era folclórica! Neste momento, Edu decidiu incluir a música no seu primeiro disco, antes que ela deixasse de ser dele e virasse folclórica…

Ciranda do Mundo – com Edu Krieger e Rodrigo Maranhão

Ciranda do Mundo – com Maria Rita

P.S. Deixo para o final o esclarecimento, bem no espírito deste texto: a canção Grande Poder não é de domínio público, tem autor. E este é Mestre Verdelinho, um dos maiores coqueiros e repentistas de Alagoas, perito no pandeiro e no ganzá. Mestre Verdelinho faleceu dia 18 de março de 2010. A ele, um dos muitos que realizaram a fusão perfeita da arte popular, dedico este post.