Um palimpsesto sertanejo

Makely Ka é um artista em movimento. Embora cada um dos seus trabalhos e álbuns seja um todo autônomo, faz mais sentido avaliarmos cada um como parte de um caminho que ele percorre, um caminho que não é exatamente linear, mas antes de ampliação de horizonte, como círculos concêntricos. Assim, depois de um primeiro álbum coletivo (com Pablo Castro e Krystoff Silva, mas também com boa parte da cena musical de Belo Horizonte), A outra cidade, em 2004 e um álbum de rock em 2007, Autófago, Makely mergulhou no sertão em 2014 com o Cavalo Motor, e agora, em Triste Entrópico, ele segue sertanejo, mas amplia e consolida sua visão, assim como, ao visitar pela segunda vez um lugar, nosso olhar consegue alcançar detalhes que passaram despercebidos e nossa visão de conjunto se torna mais nítida.

Cavalo Motor teve sua ignição na viagem empreendida por Makely, reconstituindo de bicicleta o Itinerário Tartarana (uma das canções do álbum) percorrido em Grande Sertão: Veredas. O álbum não seguia à risca este itinerário e nem era um álbum conceitual. Mas agora em Triste Entrópico o roteiro da viagem é inteiramente planejado por Makely. E se em Cavalo Motor a sonoridade de violas e percussões sofre interferências eletrônicas diversas e a guitarra particular��ssima de Arto Lindsay, desta vez estes recursos são dispensados em favor de uma sonoridade mais direta (mas com exceções, a serem tratadas adiante). Em compensação, a poética de Makely segue afiada e cumpre por sua vez a função de atualizar o sertão, ultrapassando os limites alcançados no álbum anterior – ou antes, partindo do ponto em que este nos deixara.

A escrita de Makely, mesmo desde Autófago e quando referenciada à cidade e ao mundo urbano, já trazia em si estruturas formais típicas do interior e do Nordeste – e quando digo escrita, me refiro tanto à literária quanto à musical. Por um lado, a organização estrófica e de rimas e escolha das metrificações dialoga com tradições brasileiras diversas, assim como a poética de Siba (mas este com um maior rigor de uso das metrificações tradicionais e Makely sem o compromisso da forma estrita); já as melodias e acompanhamentos de violão de Makely passeiam livremente por modalismos, num estilo particular desenvolvido lentamente e que se mostra ainda mais desenvolto aqui, a ponto de, permitir que, na faixa título, o movimento do arranjo (em compasso quinário!) se sobreponha a uma melodia quase estática, mostrando uma visão composicional que vai bem além do trinômio letra/melodia/acordes.

E por outro lado, a escrita de Makely se atualiza dentro da tradição de duas formas: uma, na narração de um sertão não idealizado, mas atual e real, em que o agro não é pop, mas destruidor, – Vou me contaminando desse estado / Do agronegócio e tanto fertilizante, canta ele na faixa título – e muito menos óbvio, em que o já cantado e consagrado pode ser um pouco deixado de lado em favor de locações e visões diversas; e além disso, sua poética dialoga não apenas com o sertão, mas com diversos outros cantos, sejam do sertão ou não – ou ampliações do sertão por parte de seus autores ou por parte da apropriação deles feira por Makely.

A primeira canção, Vento Vivo, referencia o Vento Bravo de Edu Lobo e Paulo Cesar Pinheiro, inclusive na divisão rítmica das primeiras estrofes. Já Suburbiando, a segunda, ressoa A Violeira, de Tom Jobim e Chico Buarque e interpretada por Elba Ramalho no filme Para viver um grande amor, com a diferença em que ela termina sua epopeia no Rio de Janeiro e nem trator nem alavanca a arrancam de lá, enquanto ele termina em Salvador e, ao descobrir-se filho de Exu, orixá dos caminhos e encruzilhadas, abre a possibilidade de não parar lá e continuar seu caminho adiante, sem porto nem pousada.

Assim, Makely se deixa levar pelo vento e passeia não apenas pelo Brasil ou pelo sertão, seja de que tamanho for, mas também pelo imaginário do sertão, igualmente expandido. Além das menções mais ou menos sutis mencionadas acima, algumas outras são francas e diretas: A Feira de Araçuaí rebate diretamente as concorrentes já cantadas em busca de sua própria identidade:

Não é Caruaru e nem é Acari / É a feira de Araçuaí
Não é Mangaio, não é São Cristóvão / Não é a Feira Hippie nem a do Açaí

Dois diálogos em particular merecem um olhar mais detalhado. O primeiro (não na ordem das faixas, apenas em nossa atenção) é a Derrubada do Marco Marciano, resposta de Makely à canção O Marco Marciano, de Lenine com Bráulio Tavares, gravada pelo cantor em seu álbum O dia em que faremos contato, de 1997. O Marco Marciano narra a edificação deste monolito kubrickiano na superfície de Marte, com Torreão, levadiça, raio-laser / E um sistema internet de radar. A canção se vangloria da inexpugnabilidade de seu marco, numa auto-louvação típica do repente nordestino – e a forma da canção, em contraste com o tema, é exatamente a de um repente, acompanhado apenas da viola de 10 tocada por Lenine.

Pois esta é a deixa aproveitada por Makely: pois a auto-louvação, no repente, pede um desafio. E a resposta de Makely então segue o mesmo esquema de métrica e rimas escolhido por Bráulio para narrar como este marco seria destruído, e usando das mesmas hipérboles pluriculturais: se Bráulio compara seu marco com com os muros Ciclópicos de Tebas / E as fatais cordilheiras da Espanha e o diz esculpido Pelos rudes martelos de Vulcano, Makely responde na mesma moeda, comparando sua nave com a Carruagem de Arjuna no deserto / A quadriga de Apolo, sol dos gregos e ataca o marco Com um martelo forjado em Urano, feito de liga de aço unobtanium.

A disputa sertaneja/estelar, no entanto, além de fazer o sertão estender não apenas aos confins do mundo mas ainda a outros mundos, mas serve também para situar Makely e o álbum esteticamente, inscrevendo-o em uma linhagem de revisita da tradição projetando-a na na direção do futuro. Uma ideia que tem muitas vertentes: o afrofuturismo, por exemplo, ou o álbum de Thiago Thiago de Mello Amazônia Subterrânea, que em minha análise batizei, entre a blague e a seriedade, de amazônico-futurismo. Makely não chega a estabelecer aqui as bases teóricas do sertanejo-futurismo, e nem é esta sua intenção. Mas a ponte (ou o buraco de minhoca) estabelecida com a canção de Lenine serve para abrir esta possibilidade dentro do álbum, como um contraponto à destruição predatória do capital, demarcando um território onde este não alcança; e também para situar Triste entrópico em um lugar não apenas estético, mas até mesmo político, ou reivindicar este lugar. Assim como a Feira de Araçuaí, no Médio Jequitinhonha, ao se diferenciar de suas, digamos, co-irmãs, reivindica um lugar entre elas.

Mas ainda mais complexa e cheia de desdobramentos estéticos e de sentido são as duas menções de Makely à obra de Caetano Veloso. Em Toma tento, ele inclui como música incidental Araçá Azul, última faixa do álbum de mesmo nome de Caetano, e o mais experimental de sua carreira. Araçá Azul, o álbum de 1973, representou uma revisita de Caetano aos princípios mais radicais da Tropicália, mas também ao mesmo tempo ao repertório da cultura popular, discutindo a identidade brasileira com um novo sentido estético. Não por acaso, o álbum é aberto pelo canto de Dona Edith do Prato, conterrânea de Caetano em Santo Amaro da Purificação, na cantiga de domínio público Viola meu bem, cujos primeiros versos são Vou me embora pro sertão.

E a outra menção é mais que uma menção. A canção Triste Entropia é construída a partir da estrutura de Triste Bahia, gravada por Caetano em 1972 no álbum Transa. O diálogo entre ambas é tão próximo que a canção de Makely aproxima-se de uma paráfrase, mantendo não apenas a métrica dos versos mas as próprias rimas em ado e ante, com versos que se aproximam da sintaxe dos originais, apontando em outras direções: de Triste Bahia! Ó quão dessemelhante para Triste entropia resignificante e de Tanto negócio e tanto negociante para Do agronegócio e tanto fertilizante.

Porém, Triste Bahia não é uma composição apenas de Caetano, mas sim sua versão musicada das duas primeiras estrofes de um soneto de Gregório de Matos, o poeta português radicado em Salvador no século XVII. Gregório que, por sinal, é também musicado no Araçá Azul, em Gilberto Misterioso. Isto confere a Triste Entropia uma intertextualidade mais recuada no tempo, pegando carona na relação traçada por Caetano entre a Tropicália e o Barroco e levando-a ao sertão ainda mais decididamente que Caetano o fizera. Pois o lamento da decadência baiana (ou seja, de Salvador) feito pelo conservador Gregório e repaginado por Caetano num contexto ditatorial (mas não apenas) é levado por Makely até o neoliberalismo predatório que exporta as montanhas de Minas Gerais in natura e devasta o bioma do cerrado para plantar soja.

A escolha de Makely do Caetano Veloso de 1972/73 tem também sua significância, em especial por Transa ser o segundo álbum gravado por ele quando exilado pela ditadura na Inglaterra (o primeiro, de 1971, se encerra com uma lancinante gravação de Asa Branca. de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, tornada de canto do migrante sertanejo para canção de exílio). Outra vez os significados se sobrepõem, num movimento que pode ser visto de várias formas dependendo do ponto de vista, como na experiência da relatividade restrita: é o sertão que se expande ao Atlântico Norte? Ou é Makely que é um exilado do/no sertão, estranho e refratário a suas transformações deletérias?

A letra de Triste Entropia mereceria ela própria uma análise mais detalhada, sendo a que deu a partida para o projeto do álbum e estabeleceu seus parâmetros. Menções ao Guesa Errante, poema de Sousândrade, e o vaqueiro Grivo, personagem de Guimarães Rosa, incluem-se na rede de relações tecida por ela. O Guesa, adolescente que seria sacrificado aos deuses por seu povo andino, escapa e se vê subitamente em Wall Street, com seus perseguidores sacerdotes convertidos em capitalistas. Já o Grivo é enviado por seu patrão, o vaqueiro Cara de Bronze, em missão de viagem para… para quê? Para lhe trazer o porquê de tudo nessa vida. Grivo é comparado a Prometeu por Makely, ávido de saber os segredos dos deuses. Makely canta a perda de sentido do sertão traçando-lhe paralelos metalinguísticos e interculturais, e enquanto isso viaja na direção contrária da entropia, buscando na linguagem sua contínua reconstrução.

Como música incidental em Triste Entropia, Makely repete o canto de capoeira entoado por Caetano na gravação de Triste Bahia, porém não como Caetano o canta, e sim remetendo à gravação original de Mestre Pastinha. Pastinha é mencionado por Caetano na letra (Pastinha já foi à África / pra levar capoeira do Brasil, canta Caetano, e mesmo estes versos são de Pastinha, gravados no álbum Capoeira Angola – Mestre Pastinha e sua Academia, de 1969). Os versos cantados por Makely são:

Eu já vivo enjoado
De viver aqui na terra,
Oh mamãe eu vou pra lua,
Falei com minha mulher,
Ela então me respondeu,
Nós vamos se Deus quiser.

Esta é, portanto, a segunda menção interplanetária de Triste Entrópico. E não deixa de ser interessante notar seu contraste com o canto de Dona Edith do Prato no início de Araçá Azul – ela voltando para o sertão – e Makely também, conforme canta em Regresso ao Agreste – e Pastinha indo à Lua – e Makely a Marte. O sertão de Makely parece sempre apontar para fora, um sertão em movimento – em Cavalo Motor Makely se movia pelo sertão, agora ele retorna ao sertão, mas também é o sertão que se move.

Mas se Triste Entropia referencia Triste Bahia, Triste Entrópico, apenas com a ligeira mudança de sufixo, passa a referenciar o clássico livro do antropólogo Claude Levi-Strauss em que, entre idas à India e reflexões sobre o budismo e o islamismo, trata em quatro capítulos dos povos guaicurus, bororos, nambiquaras e tupi-kawahib – nenhum dos quatro é mencionado, mas poderiam estar, na letra de Ex-extintos, em que Makely lista povos originários que desapareceram, estão em vias de, ou, em casos raros, conseguiram se reestruturar e sobreviver contra todas as possibilidades, já que as forças que devastam o sertão também se voltam contra eles.

Porém, mais que o assunto tratado no livro, o título Tristes Trópicos tornou-se um epíteto grudado à pele do Brasil tanto quanto outro título célebre, o de Stephan Zweig – Brasil, país do futuro. A referência a esta tristeza, já vista no soneto de Olavo Bilac Música Brasileira (no verso flor amorosa de três raças tristes), assim como a previsão de Zweig, torna-se algo que é simultaneamente uma bênção e uma praga, uma característica da qual parece não ser possível se livrar. E com a passagem de trópico para entrópico esta tristeza se torna ainda mais patente, diante de um desastre anunciado, como um futuro que se esfacela. O sertão se dissolve e se recria, em Makely balança entre o pessimismo e o futurismo.

Mas se tanto falamos das intertextualidades deste trabalho, e ainda surgirão outras, é preciso voltar ao que as embala, pois não se trata de uma obra literária e muito menos um tratado acadêmico, mas um álbum de música popular, e é nela que ele se escora para tudo isso. Falar por exemplo, da voz de Makely, que com seu tom algo gutural é uma espécie de Arnaldo Antunes sertanejo. A voz de Makely, sem se a de um cantor consumado, acrescenta um tom de credibilidade ao que é cantado para além da autoralidade. Makely, em Triste Entrópico, mostra uma sutil evolução técnica ao revelar os desenhos de melodias mais sinuosas como a de Desanuvio – em que ele tem o desafio de cantar com Ná Ozzetti. É preciso destacar também os arranjos de metais em algumas faixas feitos por Maurício Ribeiro, músico mineiro da geração de Makely e falecido precocemente em abril, antes do lançamento do álbum.

O núcleo instrumental do álbum está no violão de Makely, frequentemente secundado por outro nas mãos de Tabajara Belo ou Gustavo Souza, o baixo de Paulim Sartori e as percussões múltiplas de Yuri Vellasco, na maioria das faixas. Sobre esta base vão sopros e outras participações e interferências. Chico Neves acrescenta efeitos sutis em Vento vivo e Acho é pouco, e André Cabelo na Derrubada do Marco Marciano, aqui acompanhando apenas a viola de 10 de Makely – neste caso muito a propósito, estabelecendo no contraste de sonoridades a dialética do sertão marciano.

O roteiro de canções de Triste Entrópico não deixa de sugerir uma viagem, mas o Vento vivo conduz o ouvinte por um itinerário menos geográfico (ou astronáutico) e mais – difícil fugir da palavra – conceitual, no sentido de várias vertentes de país se fazerem presentes. Assim, além dos povos indígenas listados em Ex-extintos, Makely reconta em Chachá a história de Francisco Félix de Souza, maior traficante de escravos brasileiro e praticamente um rei no Daomé na virada dos 1800, indo ao passado como contraponto ao futurismo de outras canções. E em Ajayô, canção-saudação à cultura afrobrasileira, entre orixás e autoridades religiosas como o babalaô, Makely inclui na letra uma saudação ao Metá-metá, trio formado por Juçara Marçal, Kiko Dinucci e Thiago França cujo trabalho é fortemente estribado nas raízes africanas da música brasileira, mas com uma sonoridade contemporânea e mesmo jazzistica ou roqueira em alguns momentos. Sua presença na letra é como que uma gota de futuro temperando a tradição.

A viagem de Makely termina, e tenho a impressão de que não poderia ser de outro modo, em Canudos. Os Sertões, última faixa do álbum, toma emprestado o título do clássico de Euclides da Cunha, aproveitando para lembrar que o sertão não é só um, são muitos. E mais uma vez não perde a oportunidade de trazer o passado para o presente, com referências a Stalingrado, bastião da resistência contra os nazistas na Segunda Guerra Mundial, e à Guerra do Vietnã, com jagunços vietcongs e a menção a Võ Nguyên Giáp, o general que derrotou os EUA. Se Stalingrado e Hanói sobreviveram de fato, Canudos persiste na memória. Do leito do Vaza-Barris, último verso do álbum e córrego em cujas margens Canudos foi fundada, ele segue em movimento como um rio faz, e nunca nos banhamos no mesmo. Contra o pacto caduco / Do agro gorando espaço (versos de Eu acho é pouco) Makely estende mais uma vez o sertão, ou os sertões, para além do alcance de seus predadores, traçando uma teia de relações que o expande para muito além de seus limites geográficos. O sertão é do tamanho da ideia.

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Triste Entrópico está disponível para escuta em todas as plataformas com exceção do Spotify, e em especial no Bandcamp, plataforma gratuita de streaming – uma das muitas militâncias de Makely no sentido da democratização da cultura e contra os abusos cometidos pelas plataformas pagas contra os artistas.

Sobre o Sertanejo Universitário, por Makely Ka

Das 100 músicas mais tocadas em rádios no ano de 2016, cerca de 80 foram do gênero intitulado sertanejo universitário, que vai se tornando hegemônico ao incorporar em si as estilizações de diversos outros – rock, funk, forró – e tornar-se uma espécie de híbrido genérico e padronizado da música brasileira popular. Sobre este fenômeno, o músico mineiro Makely Ka fez algumas considerações no seu perfil no Facebook. O tema merece ainda mais considerações e aprofundamentos, mas o blog traz a postagem dele como um ótimo ponto de partida, em especial pela sua avaliação política.


O sertanejo universitário dominou as rádios brasileiras na última década. Não tem para nenhum outro estilo: funk, axé, forró, pagode, technobrega, muito menos rock. MPB nem entra no radar.

Mas eu acho que não é necessariamente a música que as pessoas curtem. É a estética do som, o ambiente, a moda, tem toda uma construção em torno de uma certa oposição remota campo versus cidade, uma nostalgia do que não foi vivenciado, uma suposta pureza de sentimentos, enfim, acho que essa música representa o acesso a um lugar idealizado que de alguma forma representa a legitimação do agronegócio como panaceia. Uma certa monocultura de transgênicos estetizada. Explicando melhor: trata-se de uma monocultura, quanto a isso acho que não resta dúvida. O transgênico da expressão é um trocadilho com o transgênero, no sentido de que incorpora elementos de diversos gêneros, do pop ao country, da música gospel ao rock. Apesar disso, do caráter eminentemente urbano e atual, mantém um discurso de fundo, de ligação com o universo rural, ainda que seja sublimado.

O agronegócio também faz essa operação, utiliza o discurso de identificação com a terra mas planta transgênico produzido em laboratório enquanto engole o pequeno agricultor.

Sim, a sofrência venceu. Mais da metade dos hits falam de amores perdidos, de traições, de flagras. Mas as letras por si só não explicam o fenômeno. Tem música romântica nos mais diversos gêneros e seguimentos. Eu acho que não importa tanto a letra, mas a ambientação dessa música. Essas pessoas buscam identificação com um universo que elas não conhecem necessariamente, mas julgam que seja um lugar de sentimentos verdadeiros, incorruptível. É como se fosse uma reação tardia ao êxodo rural, um falso retorno às raízes. No fundo talvez seja o sentimento intuitivo, ainda que romantizado, de que a cidade, ou a sociedade contemporânea, deu errado. Então é uma tentativa de retorno ao natural pelo avesso. Tem gente que ouve essa música e acredita que são mais autênticos, que ouvem música brasileira de raiz.

O ponto pra mim é que o estético nesse caso é político. O discurso é difuso, mas o pano de fundo é um sentimento de pureza interiorana. É tudo muito simples, do ponto de vista harmônico, melódico e semântico. Talvez ajude a explicar o fenômeno o fato de que o Brasil saltou de uma sociedade majoritariamente rural para grandes aglomerados urbanos em menos de meio século. É portanto uma certa nostalgia tardia. Essa nostalgia de alguma coisa que se perdeu me parece uma questão central. Isso não tem tanto a ver com recorte de classe social, mas com um substrato sentimental de identidade nacional. Essa é uma hipótese. Acho que merece um estudo mais sério.

Mas continuo vendo as pessoas, os críticos principalmente, buscando respostas nas letras. Acho que essa é uma busca tautológica. Tenho convicção que não é nas letras que vamos encontrar as respostas para explicar o fenômeno. Elas dizem o que toda música romântica popular diz em qualquer época e lugar. Essa identificação é uma construção social lenta e gradativa. Novelas como “A História de Ana Raio e Zé Trovão”, da extinta TV Manchete, “O Rei do Gado” e “América”, da Globo, talvez deem pistas mais concretas para entender o caso. Tem a internet também. Mas a rede somente reflete a influência das rádios e TVs, não define nem alça esses nomes à fama. Isso porque a internet pode fazer diferença para determinado nicho musical, mas a geral ouve rádio e vê TV aberta. Sim, tem também o streaming, cada vez mais. Mas as plataformas que disponibilizam música por streaming ainda são insignificantes do ponto de vista desses grandes sucessos de venda, que se refletem em centenas de shows por ano. O streaming faz diferença no universo indie, pop, eletrônico e rock, que representam apenas um nicho de mercado.

As grandes rádios ainda são o bunker das gravadoras e das editoras multinacionais. O “investimento” mensal, conhecido como jabá, para uma música tocar numa rádio de alcance nacional, está em torno de 100 mil reais. Quem faz esse investimento é quem tem certeza do retorno. Além das rádios tem os programas de TV. Então, pra você tocar durante um mês em seis ou sete rádios de abrangência nacional e aparecer em três ou quatro programas da TV aberta, eu chuto por alto um “investimento” mínimo de 1 milhão. Essa é a lógica do mercado da música de sucesso. Claro que tem outros fatores. Não adianta uma música que não tenha apelo popular, ela não entra na “cadeia produtiva”. Tem a padronização estética que o Studio VIP do produtor Dudu Borges ajudou a formatar. Esse é um caso interessante, uma estética que definiu a sonoridade de Michel Teló, Luan Santana, Bruno e Marrone e quase todos os outros, direta ou indiretamente.

Ou seja, quem estuda os movimentos de massa, quem trabalha no campo da cultura popular ou quem simplesmente se interessa por música no Brasil, precisa mergulhar nesse universo e tentar entender. Não adianta simplesmente torcer o nariz e dizer que não gosta. A coisa está aí, não dá simplesmente pra ignorar.

Retomando portanto a relação do sertanejo universitário com o agronegócio mencionada no início, ela se dá menos pela identificação das letras com o universo rural do que por todo o entorno que cerca e fortalece esse vínculo. Há um investimento explícito e direto do agronegócio em feiras agropecuárias, festas de lavouras e rodeios que privilegiam e são o reduto exclusivo dessa estética musical. Mais do que isso, há patrocínio direto de empresas ligadas à grande produção de commodities agrícolas que bancam o início de carreira de muitas duplas e cantores sertanejos.

Não dá para dissociar isso do fato de que na última década, com uma pujança jamais vista, o agronegócio ganhou ministérios, teve todo tipo de isenção fiscal, expandiu fronteiras avançando sobre terras indígenas, quilombolas e áreas de proteção e conseguiu inclusive alterar o código florestal a seu favor. Portanto não acho que seja mera coincidência a hegemonia esmagadora do sertanejo universitário no universo fonográfico brasileiro atual.

Makely Ka e o tamanho do Sertão

PrestençãoO Sertão é do tamanho do mundo. A frase de Guimarães Rosa em sua obra prima, Grande Sertão: Veredas, é uma das mais potentes definições que posso imaginar, prenhe de tantos significados quanto o mundo pode ter. Este texto se destina a tratar de Cavalo Motor, o álbum de Makely Ka, e logo se fará claro porque o abro com este texto. Mas antes, permito-me contar duas pequenas histórias, uma de um gênio à altura de Rosa, a outra mais pessoal.

– No pequeno conto Os dois reis e os dois labirintos, Jorge Luiz Borges conta a história do rei da Babilônia, que ao receber a visita de um rei árabe, para mostrar sua superioridade  mostra-lhe o labirinto que mandou construir soltando-o lá dentro, o que o faz passar a tarde perdido entre paredes, portas e escadas. Humilhado, o rei árabe se despede, mas retorna mais adiante com suas tropas e conquista a Babilônia. Avisa então que retribuirá a gentileza, mostrando por sua vez o seu labirinto. Leva o rei vencido amarrado ao centro do deserto, e diz-lhe: Em Babilônia mostraste-me seu labirinto de bronze, com portas, muros e escadas. Pois agora mostro-lhe o meu, que não tem necessidade de nenhuma destas coisas. E abandona-o lá, onde morre de fome e sede.

– Uma vez visitei Canudos, a cidade emblemática ao norte da Bahia, pleno sertão. Deliberei conhecer as ruínas da velha cidade, e lá fui de carro com ar-condicionado, caminho de terra adentro. Acontece que tomei uma bifurcação errada, e então me meti numa estrada que não chegava a lugar algum, mas tambem não tinha fim. Depois de cerca de 40 minutos avançando rumo ao nada, eu ia sendo engolido por algo imensamente maior que eu, que se mostrava mais desafiador a cada curva que dava em mais caminho indiferente. Finalmente, humilhado, me convenci que não podia ser por ali, dei meia volta a custo na estrada estreita com cerrado alto dos dois lados e retornei.

Makely Ka afirma em uma entrevista que Cavalo Motor não é um álbum conceitual sobre Grande Sertão: Veredas. Não é mesmo. É um álbum conceitual sobre o Grande Sertão e suas infinitas Veredas. E o Sertão toma nele o tamanho que for necessário.

Makely, entre julho e setembro de 2012, partiu na expedição audaciosa e solitária de repetir, montado em sua bicicleta, a trajetória de Riobaldo Tatarana, o protagonista do livro de Guimarães Rosa, pelos vilarejos e aldeias do interior de Minas Gerais na divisa com Bahia e Goiás. O registro fotográfico e videográfico está em seu site. O ponto de partida de seu álbum está aí, mas o final se estende além, em diversos sentidos.

A primeira canção, Carrasco (o título refere-se a um dos biomas entre o cerrado e a caatinga, como informa a letra), se inicia e permanece até o fim com o som ambiente gravado por Makely em viagem, enquanto um didgeridoo, instrumento australiano, emula o berrante. É a primeira pista de até aonde a viagem pode ir. Makely não canta à capela, e sim sobre sons sertanejos gravados, que são literalmente o arranjo da faixa. Arto Lindsay, convidado por ele a fazer intervenções com sua guitarra distorcida avassaladora sobre esta canção e a seguinte, a canção-título do álbum, tem participação surpreendentemente tímida. Arto preferiu comentários discretos, como que não se atrevendo a rasgar este universo, preferindo contracenar e não competir com a gravação das cigarras na noite do sertão.

A decisão de Arto pela complementação ao invés do contraste entre entre supostos opostos dá o tom do álbum.  Além dele, um time completo de músicos – o conhecido Uakti, oscilloID (codinome eletrônico de Lucas Miranda), M-UT (idem para Patrícia Rocha) e O Grivo (projeto do duo Nelson Soares e Marcos Moreira Marcos envolvendo música, instalações e performances) – fazem suas interferências sonoras, contracenam com este fundo do sertão, seja acrescentando-lhe ou substituindo-o em outras canções, em camadas de paisagens sonoras, no dizer do próprio Makely. O ancestral e o contemporâneo convivem como a bicicleta de Makely, com um gerador de eletricidade acionado pelo seu pedalar, carrega as baterias do laptop e do celular/modem que o mantém em contato com o Mundo, de dentro do Sertão, ou que levam o Sertão a todo o Mundo.

Mas para esta convivência estética entre mundos díspares acontecer, é necessário um lugar também estético que as acolha. E este lugar é criado em duas abcissas, dois componentes que dão credibilidade a estes encontros permitindo que esta viagem Sertão adentro e afora aconteça simultaneamente: as composições de Makely, e a sua voz.

Tem que caber pra becapar / Tem que caber pra becapar / Tem que caber pra becapar no HD – o baque de maracatu, no verso tão aliterado que poderia dispensar a percussão, faz-se ouvir no meio do coco rasgado de Fio Desencapado, fazendo a fusão entre arcaico e experimental – neste caso com a divisão clara entre verso futurista e música tradicional (mas numa letra de resto bastante coloquial e até com referência urbana, confessadamente inspirada na parceria Guinga / Aldir Blanc e até com a típica coda usada por eles também em Canibaile e Baião de Lacan). Mas a fronteira fica menos clara em outros lugares, como em Ibero América, composta com referências à música árabe na península, mas que os gregos consideraram uma espécie de pagode grego…

As canções, pelo uso da modalidade, típica das tradições brasileiras, mas também da música árabe ou da música contemporânea, entre tantas outras tradições, que lhe permite traçar pontes entre elas. Pela multiplicidade de referências que podem mesmo fazer o ouvinte se perder.

Mas eu sou tão cafuso
é tanta melanina
tudo tão confuso
é muita cajibrina
entrando em parafuso
é tudo made in China
eu vou trocando o fuso
e vai mudando a rima

E lá vamos nós pelo labirinto do deserto, sem paredes para nos escorar. A poética de Makely se sustenta então pela sintaxe muito própria, com rimas a meio caminho entre o repente e o rap e uma profusão de referências díspares que, sobrepostas, dão novos sentidos umas às outras. Ele próprio avisa, d’aprés Tom Zé: eu não vim explicar / sou um complicador. Letras que à primeira audição ganham destaque diante das melodias aparentemente simples pela proximidade  da tradição popular, parecendo soluções fáceis ao ouvido desavisado, mas, a exemplo dos temas de Alceu Valença, ao contrário muito bem trabalhadas, inseridas no jogo de referências ao tomar as primeiras notas de Assum Preto, de Luiz Gonzaga, para logo torná-lo o Assum Cinza, ou a ciranda de Lia de Itamaracá para sua Roda da Fortuna; ou o coro em ôôôô das duas primeiras faixas, que retorna na antepenútima canção, Idade da Terra, como um eco de outras eras que reforça o conteúdo da letra na sequência do álbum.

E o outro ponto de encontro entre os diversos mundos, o próprio Makely, ou melhor, sua voz. Makely está longe de ser um grande cantor. Na verdade, não pode sem mesmo ser considerado um bom cantor, tecnicamente falando. Mas sua voz é o fio de barba que vale por um documento. Nela está implícita sua história pessoal, sua família sertaneja vinda para a cidade, o êxodo de mais de um século em direção às capitais e parcialmente revertido nos últimos anos. Se em Autófago, seu álbum anterior, a voz de Makely soava até certo ponto acessória, aqui ela é central, para o bem e para o mal. Seu grave muito expressivo e meio rascante, embora soe apropriadamente rústico para a crueza de seus versos, desta vez, diante de melodias mais delicadas e justamente pelos tons modais, pode dar ao ouvinte a sensação de alguma sutileza estar sendo desperdiçada. Ou, por outro lado esta mesma imprecisão por outras vezes sugere nuances talvez não pensadas na composição, assim como a imperfeição formal de cantadores, rezadeiras e mestres são também sugeridores de outras formalidades.

Este jogo de perde-ganha de uma voz não domesticada por vezes deixa questões em aberto – o que não é ruim. Mas fica a impressão de que um maior controle de seu material vocal, sem abrir mão de suas características, faria o material composicional render ainda mais do que já rende. Por duas vezes Makely recorre a vozes femininas, uma vez para terçar com ele o Itinerário Tatarana, e outra para repetir a faixa final, a curta Sertão – não por acaso, duas canções chaves no álbum. Mesmo assim, no fim das contas sua voz é a fiel desta balança, que traz em si o Sertão e o estende pelas canções, amarra as setas apontando para direções diversas e lhes dá unidade.

De certa forma, todo Cavalo Motor espelha o movimento de êxodo invertido que mencionei, tanto em termos de fenômeno populacional quanto em termos pessoais de Makely – a história de sua família e sua viagem, mas também estéticamente, depois de álbuns em que cantava primodialmente a metrópole (Autófago e A outra cidade, este em parceria com Pablo Casto e Kristoff Silva). Se Autófago era um álbum de e para a cidade, mas também sobre aquilo que persiste e permanece de sertão na cidade, Cavalo Motor faz o caminho inverso, mas como uma continuação do movimento anterior, levando para o sertão a cidade e suas programações eletrônicas e referências urbanas, mas esta labirinticamente trazendo dentro de si ainda o sertão).

Estruturalmente, três canções balizam o álbum: Carrasco, Itinerário Tatarana e Sertão. As três trazem o fundo gravado por Makely na noite interiorana; abertura e encerramento trazem, do título à letra, a descrição do ambiente – a primeira, de forma literal e quase objetiva;  a última como impressão subjetiva e quase transcedental. E quase no centro exato do álbum, como um pau de barraca sustentando o teto, o mapa do caminho, numa canção cuja letra é quase exclusivamente a lista das cidades percorridas por Riobaldo / Makely. O caminho objetivo, de bicicleta ou avião, se torna subjetivo e dá a senha para a transubstanciação do sertão. O mapa se alarga desmesuradamente para incluir não apenas a cidade grande que o visita, mas também a Nova Iorque do Baião para Gershwin, parceria com um músico de rua norteamericano; a já citada Íbero América; a Grécia que inspirou Idade da Terra, e as citações espalhadas pelas letras – bairros do Rio de Janeiro, México, Faixa de Gaza. Tudo é Sertão, assim como o ruído branco imemorial do sertão ao fundo pode ser o da eletrônica. Ou o do Big Bang. Ou os últimos versos do álbum, de Sertão:

Nada disso                                                      e além

Assim como duas histórias para abrir, duas para fechar, ambas do próprio Makely.

-Este ano, 2014, durante a Copa do Mundo no Brasil, ele tornou e embarcar com sua bicicleta em uma nova expedição, e chegou a lugares do Brasil onde a Copa era um eco distante. Mas o trajeto foi interrompido por uma boa razão. Em suas palavras, contadas no Facebook,

Eu planejei pedalar do sul do Piauí, próximo da nascente até a foz do Parnaíba. Mas cheguei aqui em Aroazes, terra do meu avô, depois de quase mil quilômetros percorridos, e resolvi que o resto do tempo que tenho de viagem vou passar com o velho Zé Honório, com quem convivo tão pouco. Meu avô nasceu em 1920 e tem uma memória prodigiosa. Aos 94 anos se lembra ainda de fatos ocorridos no início da década de 20. Ele foi vaqueiro, caçador, coletor de impostos, prefeito e continua sendo um ótimo contador de histórias. Vou ficar aqui na varanda, quieto, só ouvindo.

– Os últimos versos do álbum na verdade não são os que encerram a letra de Sertão, e sim os da rezadeira Dona Belizária, gravados in loco enquanto ela os pronunciava para benzer o pé inchado do cinegrafista que filmou um trecho da viagem. Vale a pena conhecê-los inteiros e seu trajeto de expurgo do mal de dentro para fora com pontos em comum com a medicina oriental, embora a incompletude deles no fade out seja igualmente significativa das profundezas inexploradas destes saberes:

Enzipa enzipela
Sai do tutano vai pro osso
Sai do osso vai pra carne
Sai da carne vai pro nervo
Sai do nervo vai pro sangue
Sai do sangue vai pro couro
Sai do couro vai pra pele
Sai da pele vai pra zona do mal
Com o poder de Deus
Enzipa, nem maldita, nem enzipela vale nada
O que vale é o poder de Deus
Que veio ao mundo pra nos ajudar
Te livra de todo o mal que tiver
Da cabeça aos pés

O avô e a benzedeira contam suas histórias, e sempre há uma que não conhecemos. Neles os caminhos se abrem e se fecham. Indo, vindo, de onde para onde? Sem direção de casa. Sertão é dentro da gente. O sertão não tem janelas, nem portas. O sertão é sem lugar. Tudo é labirinto, mas não estamos perdidos. Cidadãos do mundo, estamos sempre voltando para casa. O mundo é do tamanho do Sertão.

O roque brasileiro dando outro passo à frente

Na virada da década de 1970, o Brasil era um país predominantemente rural – mais de 50% da população ainda vivia no campo. Makely Ka nasceu depois, quando a maior parte destas pessoas já havia se encontrado nas cidades. O processo do êxodo rural trouxe para a selva de cimento, compartilhando bairros e favelas, gente de origens e culturas diferentes, postas em contato entre si e com o mundo externo pelos meios de comunicação de massa a que passavam a ter acesso. Este processo teve marchas e contramarchas, movimentos diversos: Tropicália; a turma que foi chamada Nordeste 1970 (Alceu, Elba e Zé Ramalho, Geraldo Azevedo, Ednardo, Belchior, Vital Farias), uma música que veio com os migrantes; BRock dos anos 1980; Mangue Beat. Cada uma destas ondas se apropriava de mais um elemento para fazer, fundamentalmente, canção popular, música urbana.

Makely Ka é um urbanoide, é um não roqueiro brasileiro que fez um álbum de roque (com esta grafia mesmo). É também descendente direto, resultante de cada um dos movimentos que citei acima. Makely faz música urbana em seu sentido estrito: música da urbe, do encontro de heterogêneos, de tradições muito diversas entre si que se modificam e se fundem em novas. Assim como cada um destes movimentos, ele promove em sua música a atualização dos elementos que vieram à cidade (não apenas) nas últimas décadas, seja “de dentro”, seja “de fora”, e a formata a partir destes encontros.

Makely traz em sua identidade o território da cidade, chama a responsabilidade para si. Eu vim lá da Bahia de mucama com feitor: (Maria Moita, letra de Vinícius de Moraes para Carlos Lyra, citada em Reator). A herança cultural diversificada se condensa na figura individual, a História se passa nas pessoas. Makely canta frequentemente na primeira pessoa: como a geração BRock cantava eu uso óculos, a gente somos inútil, Makely, canta eu não sou índio, não sou negro, eu não sou branco, definindo-se pela negação e recusando categorizações e estereótipos; eu me alimento da carniça do meu pensamento – a autofagia como um corolário da antropofagia, sua radicalização.

A identidade estilhaçada da cidade deixa emergir novas pluralidades. Por Makely não ser nada especificamente, sua música pode ser tudo, e efetivamente nela, sob a capa do rock e da programação eletrônica, tambores de congada, coco e outros batuques diversos são nitidamente audíveis. A autofagia é como uma segunda fase da antropofagia: a autodeglutição, a segunda digestão, segunda assimilação. O que chegou à cidade formou novas linguagens, e agora estas linguagens tornam a se fundir, gerando uma segunda música urbana, reouvida, reprocessada. A urbe se torna metrópole, e esta megalópole.

Embora a virulência de letras e arranjos, mais da metade das faixas se inicia apenas com um violão, como muitas das gravações dos Novos Baianos, dos primeiros a percorrerem este caminho, da Bahia para uma cobertura em Botafogo e daí para um sítio em Jacarepaguá. Makely é mineiro, e tem portanto sua própria carga cultural, seu próprio viés, que inclui Guimarães Rosa (Soroco), mas também o movimento punk, descascando sua cópia barata em Punk de Butique. Inclui nas gravações as vozes de Glauber Rocha, Hugo Chavez, Subcomandante Marcos, bem a propósito: Queremos dirigir umas palavras especiais para os que vivem e lutam e morrem nas cidades.

Makely conta, em entrevista ao jornalista Pedro Alexandre Sanches, que ao tocar a canção A outra cidade na TV Minas, a TV de cultura do estado, e dedicá-la ironicamente ao governador Aécio Neves, tornou-se persona non grata no jornalismo da emissora. A outra cidade soa como uma resposta a A cidade, de Chico Science. Se antes Makely corporifica a territorialização, agora faz o caminho inverso, territorializa o corporificação, e explicita, militante: a cidade de que fala não é a homogeneizadora, higienizadora, máquina de moer gente. É a outra, a que sobrevive a esta. Ele fala dos sobreviventes das cidades, e das cidades sobreviventes.

A música de Makely Ka é um passo à frente nesta história. Um retrato do estado da urbe, da música urbana que Renato Russo cantou, no meio do caminho entre a Tropicália e o Mangue Beat. No MySpace, Makely afirma dialogar com nomes como Itamar Assumpção, Paulo Leminski, Jorge Mautner, Torquato Neto, Tom Zé, Waly Salomão e Jards Macalé. Em comum, a origem tropicalista da maioria, aliada à tremenda dificuldade de classificação de suas obras, à independência total de suas criações, à capacidade de se manterem sempre em movimento. São boas referências na selva de concreto. Um passo à frente, e você não está no mesmo lugar, cantou Chico Science. Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar, cantou Siba. A cidade avança, e também sua música.

Autofago

Eu não

A outra cidade

O serviço:
Sítio de Makely Ka

No MySpace

Para Baixar Autófago

P.S. Além da atividade estritamente artística, Makely também tem uma atuação política em defesa dos interesses da classe artística, da atualização do direito autoral, entre outras coisas, que está intrinsecamente ligada à sua música, e igualmente interessante. Apenas me relatei aos aspectos apenas musicais aqui, por questão de foco. Mas a visita ao sítio dele vale por isso também.

Rômulo Fróes e um debate

O artigo do Rômulo Fróes que postei aqui gerou também um intenso debate no Livro de Caras, provocado pelo compositor e cantor Chico Saraiva, que botou o artigo (publicado originalmente no jornal Estado de São Paulo) no seu perfil. A partir daí, um time de músicos passou a se pronunciar, incluindo o próprio Rômulo, e mais Mauro Aguiar (autor do ótimo álbum Transeunte), Silvio Mansani, Paulo Conceição Rocha, Pablo Castro, Makely Ka, o excepcional Sérgio Santos… e o que vos fala. Daí que considerei que não se podia deixar aquela quantidade de opiniões abalizadas (embora descompromissadas como em todo bom bate-papo, e às vezes até provocativas no calor da hora) descer linha do tempo abaixo. Portanto, transcrevo aqui a discussão (recomendando novamente a leitura anterior do artigo, linkado acima), eliminando apenas os comentários alheios ao assunto em pauta, para facilitar a compreensão. O post ficou longo, mas vale a leitura de cada vírgula, para se entender um pouco melhor como os acontecimentos de mais de 40 anos atrás são, de certa forma, determinantes daquilo que é considerado a modernidade da música brasileira atual. Aproveitem.

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Silvio Mansani: Ótimo texto, concordo que a galera tem curtido mais esse lance dos timbres com ótimo resultado aqui e ali… mas pra mim o plano da composição é fundamental porque foi onde o Brasil melhor se diferenciou do mundo. Opinião pessoal. Espero que essa nossa época de músicos (como nunca antes na história desse país) estudados chegue a uma bela síntese de nosso som. Acredito que muitas fichas ainda precisam cair…

Mauro Aguiar: Li e discordo de quase tudo. Mas quem sou eu, né? Concordo com o Silvio. Por que o dito moderno tem que passar por esse alinhamento? Esse julgamento do Luis Cláudio é simplista, peloamordedeus! Anteontem foi guitarra, ontem foi teclados, hoje é “barulinho”. Muita gente se pendura nisso, e a música continua soando, nota após nota, e alguns silêncios que ninguém é de ferro, né?

Sílvio Manzani: Verdade, Mauro, o que mais incomoda é o julgamento simplista do Cláudio, que fez coisas maravilhosas com o Chico. Mas o texto vale enquanto porque toca nas questões fundamentais, deixando seu ponto de vista. Quanto ao Caetano, acho fantástico quando a sua “modernidade” vem alicerçada por uma boa composição, o que nem sempre tem acontecido em seus últimos trabalhos. Para mim um belo arranjo não salva uma canção ruim (ponto de vista, novamente).

Paulo Conceição Rocha: Senhores, questão de clareza: fui ler o artigo tendo antes corrido os olhos aqui nos comentários “o julgamento simplista do L. C. Ramos”, fiquei curioso, mas o que rola mesmo (sem dubiedade) é um julgamento simplista (e eu diria, maldoso) SOBRE o L. C. Ramos. Enfim… o texto traz algumas boas análises mas, para mim, perde valor ao juntar os cacos do que foi analisado (quebrado). Ponto principal um: desde os lieds a canção não tem mais tanto vínculo com a forma somente. Ponto principal dois (e não menos relevante): se fosse pra ser prosaico bastaria dizer que “compor é organizar sons e pronto”, se fosse pra ser pirracento “pobre daqueles que não passam da página 20 nos livros de teoria e acham que depois do ritmo e da melodia, a harmonia é a coisa mais complicada na música ocidental”, mas serei (ou tentarei ao invés de meramente desfazer algo) construtivo no meu ponto de vista sobre o cenário atual (e o de sempre!!)… silêncio-ruído-intermitência-ritmo-textura-harmonia-melodia-tema-respiro-silêncio, perto do que Platão já chamou de música das esferas. E esse é apenas um padrão em parábola invariavelmente atingido pelo tempo, pelo caráter, pelo timbre, pela dinâmica etc. Mas, honestamente, voltando ao autor… não dá pra levar a sério quem escreve num jornal de grande circulação essa pérola “Os músicos dessa geração discutem sobre pedais, amplificadores, microfonação, válvulas, softwares de gravação, instrumentos antigos, etc., tanto quanto PROPRIAMENTE DE MÚSICA.” Então eu não sei mais o que é música!!

Sílvio Manzani: Paulo, minha leitura dinâmica não atentou para o “propriamente de música” kkkkk

Mauro Aguiar: Quanto a esse comentário: Os músicos dessa geração discutem sobre pedais, amplificadores, microfonação, válvulas, softwares de gravação, instrumentos antigos, etc., dou a palavra a Schopenhauer:

A cada trinta anos, desponta no mundo uma nova geração, pessoas que não sabem nada e agora devoram os resultados do saber humano acumulado durante milênios, de modo sumário e apressado, depois querem ser mais espertas do que todo passado. É com esse objetivo que tal geração frequenta a universidade e se aferra aos livros (substituiria nesse caso por tecnologias) sempre o(a)s mais recentes, o(a)s de sua época e próprios da sua idade. Só o que é breve e novo.” Ou seja se abraçam ao efêmero, como náufragos desesperados, tentando se salvar no meio de um oceano de signos insignificantes!

Paulo Conceição Rocha: Mauro, entendo perfeitamente sua linha de raciocínio (eu mesmo sou um brigão contumaz à Academia e aos ‘novíssimos’ processos artísticos, estéticos e blablablás)… mas a discussão que levantei com essa citação do autor não foi por conta de mérito ou demérito para qualquer geração… e sim pelo espanto de alguém não considerar PROPRIAMENTE música aquilo experimentado à guisa de timbres e t��cnicas… não estou levando em consideração absolutamente nenhum juízo de valor quanto ao produto dessa gente. Ah, vale lembrar que a música ocidental tal como nós conhecemos é quase um bebê se comparada às práticas sonoras (essas sim milenares) de outros povos… alguns deles estuprados pelas novas tecnologias da Europa pós-Idade Média.
E outra (só pra identificarmos um pouco apesar do facebook-capuz)… sou um grande viciado em estrutura musical (totalmente tapado em eletrônica ou barulhinhos). Mesmo que conteste o engessamento da Academia, vivo me escorando em técnicas literárias e compositivas para escrever nem que seja um recado em papel de pão… contudo sou eu mesmo que as tento criar, só servem pr’aquele propósito… natimortas… tais qual poesia mergulhada em idioma instantâneo. Estou certo que discordamos nesse ponto, mas às vezes o produto é a coisa menos importante… processo porém. É que ferramentas também gostam de ser inventadas!!

Eu: Senhores, estou aqui lembrando de uma entrevista do Caetano há anos, falando do distanciamento entre os tropicalistas e o Chico, ainda na década de 60/70. Ele dizia que o Chico e outros continuavam na busca do belo, enquanto ele, Gil, Tom Zé, se interessavam também pelo que era, de alguma forma, feio. Acho que isto tem um pouco a ver com o texto do Rômulo. Grosso modo, é uma separação de dionisíaco e apolíneo.
Agora, outra coisa é pensar na questão do timbre como um condutor da canção, tanto quanto letra, melodia e harmonia. Se antes da bossa nova a harmonia era, de certo modo, secundária, a geração do Chico e Caetano a recebeu já posta na linha de frente. Mas o tropicalismo foi o primeiro momento em que o timbre se assumiu também protagonista, a ponto de eventualmente ofuscar outros componentes. Então, acho que isso passa pelo que o Wisnik chama de canção expandida. O Chico permanece como um mestre pré-timbre (não cronologicamente), o Caetano fazendo questão de se atualizar, mas ambos mantendo-se fieis ao que determinaram para suas obras ainda em 68/69, indo à últimas consequências. Enfim, elucubrações. Abraços a todos.

Chico Saraiva: Lendo ainda só o, já muito interessante, último escrito. É aquele negócio da “régua e do compasso” né… O Tatit no “século da canção” traça isso entre o tropicalismo e a bossa. mas como o chico diz que “tudo que fez foi pro Jobim”, concordo com Túlio, parece ser equivalente…

(Chico então abre um novo post para levar o debate adiante)

Camaradas, acordando em casa e com água-cristal de cachoeira de ouro preto ainda no corpo procuro então ajudar na busca contínua do cristal-idéia, que possa multipicar luz…
Ainda na “Régua/Compasso” que muitos apontam (tatit por exemplo em o “século da canção” – com a bossa em uma das pernas) como os dois principais parâmetros da música brasileira, em jogo que se dá entre o sentido “extenso” de “Buarque/Jobim” e “Tropicália”:
As noções de “moderno”ou”novo”ou”atual”ou “contemporâneo” variam de caso pra caso. Felizmente até pois é sinal de fertilidade, e a faísca do choque normalmente faz fogueira. Porém as vezes estão simplesmente falando de coisas diferentes e claro, gerando confusão de entendimento.
Hoje os jornais, com exceção do Tárik de Souza e não muitos outros, consideram o “novo” na acepção “pop”, que o tropicalismo sempre soube mastigar e que hoje se serve tanto dos “pedais” quanto dos sensacionais softwares que, a partir do clique/beat, chegam a resultados texturais (que a partitura nunca atingiria) com um simples “ctrl c ctrl v” e que com trabalho duro gera música. Esse trabalho mais rítmico-timbrístico, e mais dado á “De-Composição” (no melhor dos sentidos) é aqui a “Régua” tropicalista.
Mas há também o entendimento, “Buarque/Jobim” do que seria o “novo” . E, falando do que sei (que é música e não letra) esse impulso age no sentido da Composição melódica-harmônica. Busca que chega a pontos radicais nos últimos cds do Chico Buarque, que não cessa (e nem deve cessar) de intuir mais e mais soluções musicais para o que aprendeu ao pé do piano de Jobim. E vasculhar a explosão do sistema-harmônico-tonal que paira no ar historicamente ao alcance do ouvinte “médio”. Eis o “compasso”.
O curioso é que o “novo” para “jobim/buarque” por ser melódico-harmônico é tido como o “velho” pelo “tropicalista de hoje” qdo esse se torna quase exclusivamente tímbrístico-rítmico.
Ué!! Já que estamos aqui e temos essa riqueza toda de possibilidades vamos usá-las, e agir artísticamente!!
Salve a música melódico-harmônica-timbrística-rítmica !!!!
Agora vou tomar banho.

Rômulo Fróes: Caro Chico! Sem me estender muito, pois não caio nesse discurso Fla x Flu, Jobim/Buarque x Tropicália e sei que você também não!
Em momento nenhum no meu texto, pra quem ler com atençÃo, coloco Chico ou Caetano a frente do outro. Ao contrário, falo, penso, discuto os dois por achar que hoje são eles, os grandes da nossa música, ainda mais se pensar na triste figura de Milton Nascimento, no afastamento de Gil para a Política e em Paulinho que não grava mais e que numa entrevista disse não querer mais compor!
Pois bem, dito isto, o mote central do meu texto é que Chico e Caetano são os dois que ainda tentam levar adiante a canção brasileira, cada qual a seu modo. E a meu ver, Chico encontra mais dificuldades, justamente por não estar ligado no novo jeito de produzir música que é algo muitíssimo importante e que vai muito além dos pedais.
Do ponto de vista da composição, meu texto é claro pra quem quiser ver, que glorifico os três últimos discos de Chico, digo que ele talvez tenha encontrado novos caminhos na linha que você chama de melódico-harmônico, não só na musica dele, mas para a própria canção brasileira, não chamei hora nenhuma esse caminho de velho.
O que chamo de velho e acredito mesmo nisso é seu comportamento em relação a gravação dos seus discos, sem nenhum comprometimento, deixando para os outros o trabalho de registrar as canções em disco. Isso já foi dito por Chico e fica claro no documentário do disco Carioca.
Pois então, para mim, esse comportamento que ao longo de sua carreira não impediu de construir sua grande e incontestável obra, talvez nesse novo momento que vivemos, impeça a plena realização da novidade que são suas canções recentes! E volto a afirmar, acho os arranjos dos discos de Chico Buarque muito pobres, sem nenhuma imaginação. Digo isso sem ofensa, nem polêmica, artifícios dos idiotas.
Para mim discutir a obra de um grande artista, como são Chico e Caetano, está longe de desrespeitá-los, ao contrário, só exerço meu pensamento com quem tenho grande admiração!
Isso porque não iria me estender muito,rsrsrs
Grande abraço seu Chico!

Pablo Castro: Sou a favor das duas “novidades” : a composicional e a de arranjos , timbragem e produção nas gravações. Mas sinto muito que o pólo vigente hoje tende muito à segunda : daí que, embora admire a audácia, os últimos discos de Caetano não me convencem tanto. Mas concordo que o Chico entregou há uns 30 anos a produção de todos os seus discos ao Luis Cláudio Ramos, excelente arranjador, mas conformado ao modelo clássico de sonoridade . Na época do Francis Hime como arranjador dos discos do Chico, a coloração era mais variada, por vezes mais pesada, de qualquer maneira mais incisiva. O Caetano parece querer sair mais e mais desse lugar confortável, o Chico parece resignar-se a ele. Mas parece ter mais direção como compositor hoje, mais consistência, o Caetano vai pra onde ninguém foi …

Sérgio Santos: Meu caro Chico Saraiva, tudo bem com você? Esse assunto é de corroer as entranhas e, por ser o cerne da apreciação que se faz hoje da nossa música popular, merece páginas e mais páginas de reflexão. Li o artigo do Estadão, de Romulo Fróes de Carvalho, e, respeitosamente, discordo de quase tudo ali. Ele me parece produto de uma maneira atualmente predominante de pensar a música em geral, e mais particularmente a canção, maneira essa que parece abolir da avaliação da música a importância dos seus componentes principais – harmonia, melodia, ritmo, e no caso da canção, o texto. Aos olhos dos que comungam essa visão, a lida monstruosa que significa o domínio dessa linguagem perde importância gradativamente, perdendo significado diante do que hoje passou a se chamar “produção”. É tanta a reverência às “sonoridades” que a tecnologia traz, que o olhar dito moderno sobre a música atual classifica a não utilização desse arcabouço como retrocesso. A importância que se dá ao todo poderoso “produtor” capaz de gerar as novas “sonoridades” é tal que se questiona o produtor de Chico, como se ele fosse um artista incapaz de ter nas mãos as rédeas do que faz, ou mesmo de demitir seu produtor caso percebesse algo que fuja de sua concepção musical. Critique-se a Chico pelo que for criticável em sua obra, ele assina a concepção do que faz. Tudo bem Caetano ter perdido o medo da música com Morelenbaum. Certamente isso elevou seu trabalho. Afinal, até onde sei, Caetano é compositor de música. E tudo bem também que depois tenha buscado outro rumo. A eleição desse caminho como paradigma é que me parece um grande problema!! Parece que a busca da renovação que passe pela elaboração do conteúdo daquilo que você tão bem classifica de “composição melódico harmônica” (e essa busca de renovação existe em uma infinidade de trabalhos recentes), simplesmente não seja mais possível sem que passe pelo apertar dos botões da manipulação de timbres de um processador. Nada contra isso, mas por favor, sinto que o padrão de julgamento que qualifica “ser novo” e “ser velho” partindo desses princípios está ficando cada dia mais deturpada e infantil. Sem desmerecer um milímetro quem segue o caminho da eletrônica, há que se reconhecer que saber lidar com aparelhos não faz de ninguém melhor músico do que alguém que se dedica de outra forma à composição. Eu, por exemplo, tenho dedicado horas da minha vida a entender como soa a combinação de timbres entre um violoncelo e um fagote, em que região e com que expressão eles melhor se somam, ou que efeito é possível conseguir com suas diferenças de timbre. Será que eu sou “velho” e consequentemente ultrapassado por isso, comparando-me a alguém que lide com a produção tímbrica possibilitada pela eletrônica? Música para mim não é isso. Isso está mais próximo do preconceito que da música. Os dois caminhos são meras ferramentas de desenvolvimento de idéias. As idéias sim, elas serão inovadoras ou não, ou melhor ainda, originais ou não!!! Citando dois trabalhos recentes, Canteiro, de André Mehmari, e Flor de Fogo, de Chico Pinheiro (poderia citar dezenas), vejo neles belos exemplos de mergulhos na complexidade da linguagem musical. Prescindiram de qualquer base eletrônica. Estão desconectados de seu tempo por isso? Talvez seja menos perceptível e mais difícil aos ouvidos aquilo que envolve a complexidade harmônica e melódica. E bem mais trabalhoso de se gestar. As inovações da “sonoridade” eletrônica, ao contrário, são imediatamente perceptíveis. Mas quem sabe até quando isso será visto como “inovador”? Coisas do tempo. Eu cá comigo, torço para que a música brasileira não se renove apenas pelo “som”, mas principalmente por aquilo que esse “som” veicula, as idéias musicais criativas, as belas composições, as belas melodias, as belas harmonias, as inovações rítmicas, a elaboração e a complexidade, estejam elas em que “som” estiverem. Se forem criativas, fatalmente estarão sendo levadas por um “som” igualmente criativo, portanto por um belo “som”. Um abraço grande Chico!!!!!

Chico Saraiva: Salve camaradas.
Agradeço as palavras, inclusive a do autor do artigo, no qual vi polaridade e por isso apertei no “share”. E que está fazendo agente trocar idéias , portanto, funcionando.
Li. E se tem uma coisa que me dá felicidade é ver a música brotar de coisas aparentemente distantes. Acho mesmo que isso acontece com todo mundo que compõe, só variando os pólos de atração pra cada pêndulo-artista. Pelo menos só tomo como referência quem tem essa incapacidade de escolha nítida, apesar de admirar as, cachaças por exemplo, puras. E mesmo no que supomos puro isso acontece, pois pra ser puro primeiro foi misturado, e tá lá o boi comendo a bagaceira da cana, que não me deixa mentir.
E nós demos a sorte de nascer no Brasil, terra do misturado.
Com o que aprendemos com a grande geração de cancionistas dá pra fazer de um tudo. e tudo tá aí pra ser feito. das mais variadas maneiras, sem que procuremos um espelho exato do nosso modo de fazer no modo de fazer do outro. o que aliás seria chatíssimo. Vamo no plural que esse é a nosso cacoete.
E o papo não é evasivo, é de tentar pelo menos trincar os muros que vão se criando. É crença no “indefinido”, e respeito pela diferença e pela força maior que brota dela.
Cito um pensamento que me veio.

Esse regime de “indefinição” (entre o branco e o preto, entre o
homem e a mulher, entre a casa grande e a senzala) continuaria a ser
pensado como nossa principal característica, nossa grande
particularidade, e também como aquilo que nos dá “graça”.
Hermano Vianna em “O mistério do Samba”

Boas noites camaradas!
Agradecendo de novo á Rômulo, Sérgio e Pablo e os amigos que estão curtindo o papo que tem tudo pra ser é muito bom.

Pablo Castro: Uma coisa interessante a se notar dentro dessa dicotomia é a influência perene do tropicalismo que, ao abrir o leque das influências antropofagocitáveis, num contexto histórico explosivo, acabou criando uma tradição da eterna assimilação dos elementos da indústria cultural, e uma quase impossibilidade de criticar a imposição de vários desses elementos na música brasileira. Ilustrando isso, note-se o especial de fim-de-ano da Globo, em que Gil e Caetano aparecem com Ivete Sangalo como se fosse a coisa mais natural do mundo. O próprio efeito perverso da dominação da Globo de norte a sul do país sequer é comentado nem por Caetano nem por Gil- embora seja importante lembrar que como Miinistro da Cultura Gil chegou a enviar para o Congresso o projeto da Ancinav, que pretendia regulamentar minimamente a questão da mídia e sua correlação com a produção cultural do país ( o projeto foi , naturalmente, barrado) . A música brasileira hoje evita qualquer tipo de reflexão e crítica, pior ainda, se consolidou em torno dela uma espécie de pirâmide simbólica de nobreza, totalmente impermeável a qualquer coisa que não seja o mercadão, caracterizado pelo amplo predomínio do jabá e por relações sempre afáveis entre os artistas , vemos de Lulu Santos a J Quest, Charlie Brown Jr a Michel Teló, Lenine a Ana Carolina, de Otto ao Rappa, um quadro tão desfigurado e sem liga que dá pena saber que a música brasileira seja representada por uma amostra tão limitada de expressões musicais – limitada não pela falta de heterogeneidade, mas pela falta de qualidade mesmo, simplesmente. Essa clara diminuição da importância da canção na história cultural do país se dá muito mais pela manutenção dessas relações oligopolísticas entre as gravadoras, as tvs e as rádios , do que pelo esgotamento da linguagem intrínseca da canção, como chegou a sugerir Chico Buarque na citada entrevista de 2004.
Outra coisa que me incomoda em relação tanto a Chico quanto a Caetano é o absoluto descompromisso com as novas gerações de cancionistas, acho que a intuição deles seja a de que não há mais o que fazer de significativo em matéria de canção, depois de sua própria geração. Isso é o que perpassa a idéia da morte da canção , em que Chico parece querer dizer : : depois de mim quem vai sequer se igualar em termos de obra, quanto mais me superar ? Provavelmente ninguém depois dele vai conseguir se igualar em termos de influência cultural, alcance da obra, quantidade de obras-primas, impacto político etc Mesmo no aspecto puramente composicional, harmônico -melódico, pra não falar das letras, é muito difícil um compoisitor hoje construir uma obra tão vasta, tão original e auto acumulativa como o Chico. Ou tão absolutamente inovadora e poética como a do Caetano. Mas isso não significa que seja impossível fazer coisas novas na canção, na harmonia, na melodia, no ritmo, na letra. Realmente tendo a concordar mais com o Chico Saraiva e com o Sérgio Santos : é mais difícil fazer uma música original do que um arranjo ou uma produção originais. E mesmo os filtros que deveriam selecionar entre a produção musical independente o que seria realmente original , falham continuamente nesse propósito, preferindo no mais das vezes simplesmente encaixar trabalhos bem feitos em categorias próximas às do mercado. Nesse ambiente, é o vale-tudo : a quantidade de gente fazendo música hoje , e o alvoroço em difundir essa produção na internet diluiu tanto a música que pensamos estar numa terra de surdos.
Pra finalizar, só pontuando o que o Sérgio Santos falou : a criatividade e a originalidade melódico-harmônica devem ser buscadas, mas nem sempre o arrojo e a complexidade musicais por si mesmas geram grandes canções ; na imensa maioria das vezes, quando grandes instrumentistas ou compositores de música instrumental fazem canções, o resultado tende a ser aquém da expectativa, em geral faltam uma forma sintética e uma relação mais orgânica entre letra e melodia.

Makely Ka: Muitas questões aqui Chico e Rômulo! Na verdade o que mais me chamou atenção nem foi a discussão do tema em si, que é pra mim tão orgânico que não se apresenta mais como dicotomia, digerida que vem sendo aos poucos no meu próprio trabalho. Acho que as posições aqui já estão definidas com bastante clareza e não quero entrar aqui na questão dos arranjos protocolares do Luiz Cláudio Ramos nem nas habilidades técnicas do Pedro Sá. Acho também que inevitavelmente, para quem mergulha na canção, o paradigma Chico e Caetano está tão presente que parece ser possível ouvirmos cada um em ouvidos separados num headphone com canais independentes para deixar o cérebro misturar as referências como pano de fundo de nossa própria música. Como se fosse normal e confortável ouvir Carioca e Zii e Zie ao mesmo tempo!
Fora isso acho muito significativo e sintomático que reflexões tão profundas sobre o fazer musical estejam sendo feitas exclusivamente por músicos/compositores. Não admira portanto que a matéria que gerou a discussão tenha sido escrita por um outro compositor. Fico me perguntando se será um indício de que a crítica não consegue mais acompanhar o raciocínio.
O tema recorrente da morte da canção me parece nesse sentido mais uma dificuldade de interlocução com a crítica, que por sua vez sempre cumpriu o papel histórico de mediar a relação com o público, menos como tradutor que como instigador. Talvez porque as inovações hoje sejam mais sutis, o alcance menor, o retorno a longo prazo e o tema muito complexo.
Por acaso essa semana eu li na Bravo um artigo falando exatamente sobre a formação sentimental dos lusitanos a partir das canções de Chico e Caetano escrito por uma portuguesa. Fiquei surpreso que esse ainda seja um tema para os portugueses, e não somente um tema para os “músicos e compositores” portugueses. O texto é esse e demonstra a perícia e paixão que nossos jornalistas parecem ter perdido no decorrer dos anos (matéria aqui)

Sérgio Santos: Caro Makely, não sei, tenho grandes dúvidas se o que pra você é orgânico e deixou de ser dicotomia, de fato funciona assim tão digerido e assimilado para todos que se ocupam da música. Na verdade o que sinto é que há sim dois universos distintos, e que um deles é visto como continuidade do outro, no sentido de uma linha evolutiva. E é exatamente esse aspecto, essa idéia da qual discordo, que permeia a todo o texto do Romulo. Não estou aqui me referindo a Chico versus Caetano, mas às maneiras de se pensar e produzir música hoje. Acho que a tecnologia trouxe sim uma espécie de ruptura nisso, estabelecendo uma maneira distinta de realização, e com isso pouco a pouco foi se gestando um novo caminho estético. Na minha opinião, e isso é apenas a minha opinião, vejo isso muito mais como um rompimento gradativo, e cada vez mais estético, do que como uma linha evolutiva. Resumindo, não consigo achar que Pedro Sá ou Kassim sejam a evolução de Morelenbaum ou de LC Ramos, por mais que se possa gostar de uns ou de outros. Para mim, eles apenas lidam com linguagens diferentes e com maneiras diferentes de produzir música. Não cabe exigir de Morelenbaum ou de LC Ramos que produzam uma textura eletrônica, ou de Pedro Sá que escreva para orquestra. Eles poderiam até fazê-lo, mas nunca melhor do que aquilo que fazem em seus próprios universos. Não consigo entender que Chico tenha mais dificuldades em levar adiante a canção brasileira por não estar ligado ao novo jeito de produzir música, como acima afirma Rômulo Fróes. Nesse raciocínio está implícito que há uma única possibilidade evolutiva para nossa música, que é a filiação ao universo gerado pela tecnologia. Esse raciocínio, e ele existe como modo de pensar de uma grande parcela de quem produz e de quem “critica” música (concordo com você na sua opinião sobre a “crítica”), é o que define um caminho como evolução do outro, na minha opinião de forma equivocada. Eu vejo isso muito mais como universos distintos, com parâmetros diferentes, e que exigem critérios diferentes de produção, de avaliação e de fruição. Acho que todos os que se ocupam da música criativamente, independente da linguagem formal à qual se filiem, estarão contribuindo para a evolução da música brasileira, sendo a sua criatividade dentro dessa linguagem o único parâmetro válido para se avaliar essa contribuição. Mesmo que se queira passear pelos dois universos, para isso é preciso trocar os chips. E é ótimo que haja artistas que queiram fazê-lo, como Caetano, ou você. Da mesma forma que é ótimo haver os que só se dão bem com os botões; ou os que, como eu, não se sentem à vontade com eles. Não é a atitude individual que questiono. O que não me bate, e o que me soa como um grande equívoco, é enxergar um universo como evolução do outro.

Eu: Caramba, que maravilha de debate. Queria meter minha colher, partindo de um detalhe aparentemente insignificante, para depois generalizar. Não sei mais quem falou aqui que o Caetano teria “perdido o medo da música”, como definiu o Sérgio Santos, com o Morelenbaum. Acho que esquecemos aqui que ele trabalhou com o Duprat bem antes, o Duprat que era ligado às correntes da vanguarda musical erudita (assim como o Tom Zé, que é formado em composição). Numa comparação entre os dois arranjadores, o tratamento musical do Morelenbaum soa conservador.
E daí voltamos ao Tropicalismo como o divisor de águas desta história, a meu ver. Pois, grosso modo, até a bossa-nova (e aí me remeto ao que diz o Luiz Tatit) a composição brasileira era fundamentalmente melodia e letra, da qual se inferia harmonia – e isso valia mesmo para gênios como Pixinguinha, que foram tanto mais geniais talvez por estarem atados a estes parâmetros. Aí vem a bossa-nova, e incorpora um novo elemento, ou melhor, coloca-o em pé de igualdade com os outros: a partir daí, faz sentido pensar numa canção composta a partir da harmonia, com melodia e letra vindo depois – exatamente o ponto de Chico, d’après Jobim. E com o Tropicalismo surge pela primeira vez na canção brasileira (na brasileira, repito) a questão do timbre como elemento diferencial, no sentido de interferir na própria composição. E acontece a bifurcação entre Caetano e Chico – bifurcação que não é necessariamente completa, mais da parte do Caetano, que sempre voltou a se reportar à bossa-nova, enquanto o Chico permanece mais ou menos fiel à idéia de desenvolver até seus limites o modelo harmônico que herdou.
Desculpem se acabo soando meio didático (mas tinham sentido falta de críticos do debate…). O que enxergo é que hoje, como o Rômulo diz no artigo (ou numa entrevista que li, não sei), e o Makeli confirma, o que era rompimento no Tropicalismo hoje se apresenta como mais uma possibilidade, como um, ou vários novos instrumentos, ou como uma multiplicidade de métodos composicionais, vertentes diferentes que coabitam e podem trocar. Estou ouvindo o Recanto, canções de Caetano para a Gal Costa, arranjos eletrônicos em geral, e percebo que a maioria das melodias é extremamente simples, e me parece que de propósito, como se o Caetano quisesse se adequar a este universo. Na canção mais elaborada harmonicamente, Mansidão, que é na verdade uma bossa-nova e cuja letra faz menção a um violão que não se ouve (o contrário das obviedades que o Rômulo aponta no Luiz Claudio Ramos), o arranjo também é quase obrigado a ser menos cheio dos barulhinhos de que se falou. Então, são pontos de partida diversos, e há que se adaptar.
Finalizando, creio que há hoje diversos pontos de partida composicionais, frutos de uma história da música brasileira, e que podem e devem dialogar entre si, sem necessariamente condenarem um ao outro. Esta turma da qual o Rômulo, o Kassim e tantos outros músicos excepcionais fazem parte está investindo em algo próximo daquilo que o Wisnik identificou como a canção expandida, em que, a meu ver, o elemento timbre (e por extensão suas possibilidades de exploração num estúdio) tem papel fundamental, mas o próprio Rômulo já reconheceu uma vez que ainda falta uma certa maturação nos cancionistas desta turma para chegarem a um grau de excelência comparável ao da turma que trabalhou e trabalha partir das questões harmônicas e melódicas – nos quais incluo o Chico Saraiva e o Sérgio Santos – embora eles, obviamente, tenham uma enorme preocupação com o timbre também, ou não seriam músicos. Além destas duas possibilidades, pode-se pensar também no pessoal do rap, que parte dos elementos letra/ritmo, depois o timbre, harmonia por último. E vai por aí afora. Saudações.

Sérgio Santos: Caro Túlio, a a firmação de que Caetano teria dito que perdeu o medo da música com Morelenbaum veio do artigo de Romulo Fróes. Não consigo pensar como você, vendo Morelenbaum conservador em relação a Duprat. O que é ser conservador? O que acho é que eles são de praias diferentes e que ambos serviram como veículo das idéias musicais de Caetano, em momentos distintos. É Caetano que define o que quer dos seus trabalhos, e é ele quem determina a sua concepção e escolhe os seus produtores, o martelo é dele. Para concordar com você é preciso assumir que o Caetano que interagiu com Morelenbaum é conservador em relação ao Caetano do início do tropicalismo. Na verdade são fases distintas de um compositor inquieto do ponto de vista formal, e que lançou mão de diferentes arranjadores para viabilizar suas idéias. Também discordo que foi o tropicalismo que trouxe a questão do timbre como elemento diferencial. O tropicalismo pode ter incluído outros timbres como o da guitarra e do baixo elétrico, mas o timbre enquanto elemento musical já era explorado, e magnificamente, por Radamés, Cyro Pereira, Lyrio Panicalli e tantos outros maestros que tão bem sabiam usar o elemento timbre. A introdução de Aquarela do Brasil é tão conhecida quanto a própria composição, mesmo sem constar dela.

Eu: Sérgio, entendi o seu ponto, retiro a palavra conservador. Ela fica contraditória com o que escrevi depois, em relação aos vários caminhos. Reconfiguro dizendo que o Morelenbaum parte de um princípio diferente, que privilegia melodia e harmonia, enquanto o Duprat privilegiou timbre – agora, é óbvio que privilegiar um aspecto não significa descurar outro, é uma questão do que vai para a boca de cena em determinado momento – falando de arranjo.
Quanto à outra questão, Sérgio, tenho consciência que há inúmeras exceções à minha, digamos, generalização didática. Eu me referia exclusivamente ao uso do timbre como ponto de partida para a composição, prevalecendo sobre melodia e harmonia, ou mesmo eventualmente dirigindo-a. Sem dúvida a introdução da Aquarela é parte da música, e os maestros citados são mestres no timbre. Mas os arranjos deles somente poderiam influenciar a canção a posteriori, enquanto hoje há a possibilidade de se criar uma canção a partir, digamos, da sonoridade de um teclado, ou de um efeito de estúdio. Enfim, o que quis foi diferenciar a questão orquestral e de arranjo, onde o timbre sempre foi fundamental, da composição da canção, onde ele surge mais recentemente.
Mas agora me dou conta que na música regional brasileira, que é em grande parte o seu universo, o timbre se reveste de uma importância diferenciada, num caminho totalmente à parte do que é trilhado por esta rapaziada urbana, e é talvez a isso que você se refira. Foi exatamente este universo timbrístico tão rico que influenciou Guerra Peixe, Edu Lobo. Acho que este pode ser exatamente um ponto de encontro entre estas vertentes, como – e aí volto a usar o álbum da Gal como exemplo – na última faixa, em que o velho garfo no prato do Recôncavo fecha um álbum todo eletrônico, e sem choques, como um encontro. Espero ter me explicado melhor. Grande abraço.

Sérgio Santos: Caro Túlio, o uso do timbre enquanto elemento composicional não é nada novo, e todo o desenvolvimento orquestral da música ocidental se apoia nisso. Compor para uma determinada formação instrumental significa saber lidar com seus timbres, suas combinações, e é o vocabulário próprio a cada instrumento, suas possibilidades melódicas e as especificidades de seu timbre o que vai interferir e determinar o desenvolvimento da composição. Isso é assim a séculos. Foi assim com Villa lidando, por exemplo, com cellos e voz de soprano na Cantilena das Bachianas, ou Cartola com o seu violão e sua voz. Se eles usassem formações diferentes, teríamos possibilidades diferentes, e consequentemente músicas diferentes. O próprio Edu Lobo que você cita, afirma que há na sua música a que é de piano e a que é de violão. O timbre sempre foi fundamental! O seu uso em si como elemento determinante da composição não é uma conquista do tropicalismo. O que há, repito, é a incorporação de timbres diferentes aos usuais na época, o que, por si só cria novas possibilidades e caminhos. E isso se acentua hoje, graças às possibilidades da tecnologia, e, principalmente, por colocar esse universo à disposição de um número muito maior de pessoas que se dão melhor lidando com botões e equipamentos do que com instrumentos (sem demérito, por favor). Mas tudo isso são apenas novas possibilidades e não há porque considerar que usá-las ou não defina o que seja “novo” e “ultrapassado” em matéria de composição. Não há absolutamente nada de especial ou de novo no fato de se criar uma música a partir da sonoridade de um teclado ou de um efeito de estúdio. Pode se fazer isso desde sempre a partir de qualquer som. Semana passada compus uma valsa dedicada ao maravilhoso clarinetista italiano Gabriele Mirabassi, totalmente motivado pelo timbre do clarinete que ecoava na minha cabeça. Se ele tocasse trombone a composição seria outra. Não há nada de genial em timbres eletrônicos além do que há de genial em qualquer timbre.

Chico Saraiva: senhores, vamos pensando só pelo prazer de pensar.
Tem mesmo uma diferença enorme entre:
o que busca um músico que trabalha todo santo dia (no dedo, no bico, no relaxamentos do pescoço…) pra tirar uma “sonoridade plena” de seu instrumento acontece com o grande músico e camarada Mirabassi. No caso dele tangenciando a escola efetivamente “erudita”. De fato músicos assim inspiram o compositor “melódico-harmônico” (de canção também, por que não?) pois o desenho melódico, o canto, alça o tão desejado vôo da composição.
o outro lado da busca, o qual sem dúvida conheço bem menos e outros daqui podem aprofundar melhor,mas acompanho assim por alto no cotidiano de alguns amigos mais ligados á tecnologia e que tenho trabalhado em meu novo duo de violão com Daniel Murray, parece evidentemente chegar a outro conceito de timbre, incorporando o ruído, coisa que acontece muito na música erudita desde o crash do sistema tonal. Isso o tropicalista sacou cedo como Túlio mencionou aqui.
Vivemos ao longo do século passado uma polarização, que reverbera muito muito fortemente (como vemos), entre o NACIONAL erudito/POPULAR (no sentido mais foclórico) e a VANGUARDA/MERCADO. A questão é fruto do catastrófico programa-modernista, e tem já quase a mesma idade da canção “comercial”.
Não é mole, mas já tá na hora de virar a página…abraços!!!

Eu: Sérgio Santos, queria destacar justamente a sua frase que me parece fazer a aproximação entre o esquema que eu tentei traçar – e que, como bom esquema, é bem esquemático – e a sua opinião:

O que há, repito, é a incorporação de timbres diferentes aos usuais na época, o que, por si só cria novas possibilidades e caminhos. E isso se acentua hoje, graças às possibilidades da tecnologia.

Eu entendo o Tropicalismo menos como um rompimento que como uma abertura – como o Caetano falava, da linha evolutiva. O Tropicalismo foi um momento em que se tratou desta questão do timbre com muita ênfase, não necessariamente por ser inédita, mas de uma maneira muito mais deliberada do que as questões idiomáticas que você citou, Sérgio – do Edu e do Cartola, por exemplo. Não acho que seja à toa que o Rômulo e outros se considerem ligados ao Tropicalismo no uso destes elementos tímbricos novos que a tecnologia trouxe.
Mas enfim, agora me retiro um bocado e deixo as discordâncias discordarem, esperando outras opiniões, senão fica chato. Abração.

Sergio Santos: Caro Túlio Ceci Villaça. Só tentando clarear um pouco mais a minha opinião, concordo que a Tropicália tem mais o significado de criação de possibilidades diferentes que de ruptura. No entanto não a vejo como linha evolutiva, até porque a continuidade do pós-bossa nova (digamos, a tal MPB) se fez à revelia dela. A grande obra de Tom, Baden, Chico, Milton, Dori, Edu, seguiu adiante. Até mesmo Caetano e Gil se somaram a essa trajetória. A grande diferença do que vem ocorrendo agora, é que esse novo caminho tecnológico, pelas possibilidades que traz, pelas características da produção nesse universo, pouco a pouco vem construindo uma vertente estética, essa sim, com um sentido muito mais carregado de ruptura. Não se trata mais de algo como o Egberto Gismonti lidando com os sintetizadores, há décadas atrás. Ali era a linguagem musical do Egberto vestindo um determinado arcabouço sonoro. Hoje, o próprio arcabouço tecnológico já interfere decisivamente na linguagem. Não é gratuita a afirmação que há no artigo do Estadão: hoje os músicos dessa vertente se concentram mais em discussões sobre softwares, processadores, samplers, etc, do que em instrumentos, porque isso é mais determinante para o resultado sonoro que querem. Posso estar enganado e morder a língua, mas esse caminho vem tomando uma dimensão cada dia mais hegemônica na nossa música, e com resultados totalmente diferentes dos que não optaram por ele. Ao contrário de você, acho um pouco difícil o cruzamento desse universo com o outro. Até aí, nada de mal, pelo contrário, são novas formas de expressão, o que obviamente não garante por si só a expressão com qualidade artística. Mas certamente há arte e artistas nessa concepção, e isso é espetacular. No entanto, o colossal problema é quando vai alguém e inclui nessa discussão o conceito de evolução artística. Há, sim, evolução tecnológica. Mas nada me mostra que a música tenha que passar por esse caminho para evoluir. Nada me diz que ele tem, por si, algo que o faça dono da modernidade estética. Nada me mostra que seja imprescindível que a canção passe por esse caminho para significar novidade. Foi essa idéia de evolução que me incomodou profundamente no artigo do Estadão. Um abraço grande.