Uma vez, há tempos, estava num show do Gilberto Gil, na concha acústica da UERJ, um anfiteatro com a platéia em semi-círculo. Lá, vi acontecer uma dessas comunhões entre palco e platéia que são o objetivo final de todo artista. Nâo lembro mais qual era a música. O fato é que houve um momento em que parecia não haver uma pessoa sequer que não estivesse cantando. A sensação que tive (não bebo, não fumo, não uso outras drogas) era a de um redemoinho, um furacão de vozes em cujo centro estava o Gil, sentado tocando violão, que levantava o público do chão e o lançava para o alto com uma força invisível, mas fortíssima.
Não é de hoje a prática da fixação de um texto em música para ser entoado e repetido coletivamente. E não é de hoje que se tem noção de sua força. A música ocidental como um todo estruturou-se sobre o cantochão gregoriano, que nada mais era que um meio de fazer com que os monges memorizassem as Escrituras Sagradas, e as recitassem todos juntos de maneira inteligível. Num grupo de pessoas que fala uma frase junto em jogral, as diferenças de inflexão de cada um anulam-se recoprocamente, e o resultado é algo de sonoridade indefinida – a não ser que combinem a inflexão antes, como as torcidas de futebol, por exemplo. Mas se há uma linha de entonação bem determinada – uma melodia – as vozes individuais se multiplicam e o resultado torna-se maior que a soma das partes.
Outro elemento fundamental é a repetição, sem a qual a música popular não vive (e não apenas ela). Aliás, outro elemento explorado à exaustão pela religiosidade, na figura do rosário, por exemplo (presente também na recitação de mantras). A repetição faz parte da forma fundamental de uma canção, no refrão – de preferência assobiável e para ser cantado junto, apresentado no início da música e repetido no final, para empolgar. É claro que nem toda canção terá este formato explícito, mas mesmo o maior vanguardista não escapa da repetição do tema – ou então, a canção não tem identidade. Arrigo Barnabé fez canções atonais, mas com refrão.
No portal Dharmanet, de divulgação do Budismo, achei esta definição:
Um mantra não é nem uma “palavra mágica” nem um “encantamento”. É um instrumento da representação e concentração mentais e por isso um recurso do poder mental (mas não de forças sobrenaturais). A raiz man significa “pensar”, enquanto o sufixo tra exprime um instrumento, um recurso de acionamento. O efeito do mantra não depende, por conseguinte, de sua entonação — este é outro mal-entendido amplamente divulgado —, mas sim da atitude mental, das associações conscientes e inconscientes que são criadas através da intuição e dos exercícios a ela ligados. (Lama Anagarika Govinda, Reflexões Budistas)
Será, então, que tanto faz o que se canta? O grupo Engenheiros do Hawaii já cantava: “garotos inventam um novo inglês”. Cantar uma música sem saber o significado pode ser igual a cantar sabendo? Creio que não. Acontece que as “associações conscientes e inconscientes” acontecem mais e melhor se há um significado, ainda que atribuido, ao que se canta. No caso dos mantras, que são cantados em línguas mortas, este significado é geralmente atribuido. No caso da canção, ele é dado (mas é reinterpretado. O poderosíssimo refrão Polícia para quem precisa! significa coisas muito diferentes na boca de um rapaz da favela e de um playboy do Leblon). Esta é uma diferença marcante, mas que não impede uma canção de servir como mantra. Ou melhor, de ter efeitos similares ou próximos.
Uma canção pode ser um hino, uma palavra de ordem, uma oração, um grito de guerra, uma pergunta. Repetida por uma pessoa, pode ter grande força. Repetida por muitas, muito mais. É claro que não vai aqui uma condenação ideológica a nenhuma canção, afinal, gritos de guerra (simbólicos, ao menos) são tão necessários quanto orações. Mas ouvindo as canções de Luiz Antônio Millecco, (mais sobre ele no artigo abaixo), feitas tanto com o sentido terapêutico quanto espiritual, e também pela mera (but not least) fruição musical, tenho para mim que uma canção, feita sob qualquer pretexto, tem muito mais poder do que costumamos imaginar, e que, tendo alguma consciência deste poder, podemos não apenas dialogar com elas, mas também usá-las como instrumentos mentais, que podem mesmo nos levantar do chão e nos lançar para o alto, para dentro de nós mesmos, ou para onde quisermos.
Eu canto – Luiz Antônio Millecco
Andar com Fé – Gilberto Gil