A primeira faixa do primeiro álbum dos Beatles anunciava: It won’t be long. E, realmente, longeva que seja a obra deles, a canção tinha apenas 2 minutos e treze segundos. Desde o nascimento do formato canção popular (deixando propositalmente de lado referências históricas anteriores à possibilidade de gravação), estabaleceu-se a duração aproximada de 2 minutos e meio como a ideal, em parte inicialmente pelas precariedades tecnológicas da gravação, mas logo também pelo estabelecimento de um formato padrão que permitia que sua narrativa se desenvolvesse em termos ideais. Mais tarde, ao longo do tempo, a exploração do formato e a liberdade absoluta das amarras tecnológicas, esta duração não chegou a se estender muito: hoje, está em torno dos 3 minutos e meio a quatro minutos
E que forma padrão é esta? A de dois, no máximo três temas musicais a serem alternados e (pouco) desenvolvidos. Os formato ABACA e suas quase infinitas variações tornaram-se um paradigma difuso, em que se pode ir muito longe. Mas, quanto mais longe a canção vai, mais se arrisca a não ser reconhecida como tal. Uma vez, participando de um festival da canção, vi uma composição excelente de um amigo ser desclassificada pelo juri ainda antes das eliminatórias. A alegação era que a m��sica, bastante experimental, com uns cinco temas diferentes e duração maior do que o normal, não seria uma canção, mas uma rapsódia!
Como extrapolar isso? É possível fazer canção longa, sem que deixe de ser canção? Como e até onde se pode estender o formato? Quais as amarras formais a serem utilizadas para que a canção não se dilua e perca o sentido, ou simplesmente fique enfadonha? De cara, vislumbro duas possibilidades extremas, entre as quais múltiplas possibilidades surgem: ou uma estrutura simples e única que se repete indefinidamente, ou uma em que sucedem-se temas variados, e a amarra da estrutura se dará pelo desenvolvimento da própria narrativa. O primeiro caso é exemplificado nos repentes, muitas vezes improvisados. A estrutura é rígida, e nela o cantador conta uma história (e com isso mantém a coesão interna com o encadeamento dos fatos), ou sucede tiradas sobre tiradas (como nos desafios) de modo a manter o interesse do público. Já no outro extremo, um exemplo:
Supper’s ready – Genesis
OK, este é um exemplo radical, que se enquadraria perfeitamente na classificação de rapsódia, que citei acima – o que aliás é típico do rock progressivo, que foi procurar inspiração na música clássica. É também bastante didático, já que dividido em partes quase estanques – na letra encartada no álbum, explicita-se a divisão em 7 partes numeradas, com algarismos romanos e subtítulos. Cada uma das partes funciona como uma pequena canção não inteiramente desenvolvida, um tema bem característico – e no entanto há um encadeamento entre elas, real mas não óbvio, na letra bastante difusa de Peter Gabriel.
Porém, a técnica usada para conseguir a unidade foi outra, e bem simples, mas usada de maneira sofisticada: a volta aos primeiros temas apresentados, como um retorno do recalcado. Mas em vez da obviedade de terminar como a canção começou, os rapazes (à época…) do Genesis preferem, no fim da sexta parte, citar o fim da primeira – citação exata, incluindo letra – para logo a seguir emendar na última parte, com a mesma melodia da segunda e outra letra. E com um outro detalhe: enquanto a segunda parte terminara abruptamente com uma cadência incompleta (e uma frase da letra também), agora frase e cadência se completam triunfantes, majestosamente, com o instrumental à toda no grand finale. Este encerramento em que temas anteriores se repetem transfigurados unifica a composição, mas não impede que ela se coloque quase além dos limites do formato de canção, assim como um desafio entre repentistas que se prolongue por horas também o faz, mas pela fronteira oposta.
Então, agora analisemos dois outros exemplos não tão radicais, indubitavelmente canções, que não foram tão longe em termos de tamanho (ambas regulam os sete minutos, dobro da duração média da canção radiofônica), mas em que as soluções encontradas foram bem mais sutis.
La maison Dieu – Legião Urbana
Harmonicamente, La maison Dieu segue o padrão roqueiro de Renato Russo: poucos e simples acordes, um riff em mi menor que sustenta a introdução e a parte A quase toda. Em contraposição, a melodia segue em boa parte sem repetições, fixando-se apenas em momentos chave e variando de acordo com as ênfases da letra na maioria dos outros. A coesão da canção é dada pela sucessão das sequências harmônicas: depois de uma espécie de introdução da letra, em que a parte A é repetida várias vezes até uma variação preparatória, surge a parte B, espécie de refrão com melodia marcada a partir da expressão eu sou a tua morte. Depois de uma repetição do eu sou sobre a harmonia da parte A, surge a parte C, de melodia mais fixa e cadência tradicional II/V, em a pátria que lhe esqueceu. Seu final marcado volta à harmonia da parte A, novamente apenas uma vez para a frase eu sou e novamente a parte C, agora um pouco mais curta. Ela se encerra agora emendando novamente na parte B, mas que termina com a convenção característica da parte C e volta à parte C novamente. Finalmente, ocorre o retorno à parte A, com a frase eu sou a tua morte, e o fim com a repetição de eu sou, remetendo à primeira parte depois da introdução.
Complicado? A forma estrita seria então, grosso modo, A A A A A A’ B A C A C B’ C A A, sendo os asteriscos correspondentes a modiicações na terminação. Ou seja, na verdade não passa de uma variação extendida do velho ABACA, complexificada de modo a criar uma narrativa harmônica que permita ir mais longe, com as surpresas de quando a parte C desemboca na B e esta retorna modificada para a C, criando assim um crescendo implicito de tensão (o ápice da narrativa) até voltar ao rif inicial (ainda há uma última estrutura harmônica repetida após o término da letra, impedindo um relaxamanto completo e se estendendo até o fade). É esta estrutura harmônica bem armada, explorando as possibilidades de combinação entre poucos elementos, que sustenta a canção, mais que a melodia cheia de variações, muitas vezes ao sabor da letra, ou a própria letra propositalmente algo vaga, e permite à canção ir tão longe.
Matita Perê – Tom Jobim
Aqui a estratégia é outra, e ainda mais refinada. Matita Perê é uma canção com apenas um tema, construído sobre dois únicos acordes de mesmo baixo – menor, maior com quarta e nona – e apenas parte A (com uma certa boa vontade se admite uma parte B curta que surge apenas duas vezes). O segredo aqui é outro. Tom Jobim simplesmente modula a cada repetição: G#m, Gm, F#m, Fm, parte B terminando em Dm, Bbm, G#m, (intermezzo instrumental), Em, Gm, F#m, parte B terminando em Cm (um tom abaixo da primeira vez, portanto), Am, e terminando no tom inicial, G#m.
A letra de Paulo Cesar Pinheiro, inspirada em Guimarães Rosa, narra nebulosamente uma busca por alguém de quem nem o nome se sabe ao certo, cujos rastros se apagam à sua passagem. A perseguição pelo sertão imenso e sem referências, onde tudo e todos são iguais, todos joão, com várias e vagas indicações de lugar (De Nor-Nordeste pra Norte-Norte, Por sete caminhos de setenta sortes) a canção vagueia pelas tonalidades junto com seu protagonista, dando ao ouvinte uma dupla desorientação, uma viagem pelo deserto em círculos, às vezes a galope, às vezes caminhando a duras penas, e que termina com o círculo fechado: se acabou joão. E duas vezes com a harmonia suspensa, na parte B, onde, paradoxalmente, tem-se a impressão da possibilidade de chegar a algum lugar, apenas para logo após cair novamente no vazio da jornada.
Sem dúvida, há outras soluções possíveis. Estas duas primam pela elegância e são sólidas a ponto de quase dispensarem a ajuda da letra para conseguirem unidade, e ainda assim, caminham pari passu com elas. São duas entre muitas outras formas de estender o arco da narrativa da canção de modo a ir mais alto e mais longe. A canção tem suas formas e seus limites, sem dúvida; mas estes limites estão aí para serem desafiados. Os Beatles já sabiam, desde It won’t be long até The long and widing road…