Os dez mais

Dessas correntes de rede social: Poste seus 10 álbuns favoritos de todos os tempos; que de fato te impactaram e ainda estão na sua lista de audição, mesmo que ocasionalmente. Poste a capa, sem maiores explicações. Postei. Mas quem resiste a dar explicações? O resultado é esta lista bastante pessoal, de dez álbuns que mudaram minha escuta – não necessariamente os melhores nem os que mais escuto, mas aqueles dos quais saí diferente, para o que pode ter contribuído tanto sua qualidade e novidade quanto meu estado à época… De todo modo, continuam para mim extremamente interessantes, em alguns casos depois de décadas, o que quer dizer alguma coisa, e quem sabe servirão também a quem me lê. São eles então:

1- Os Saltimbancos – Chico Buarque. O disco para crianças mais inteligente já feito. Chico (na verdade os autores italianos, mas onde eles dizem mata Chico diz esfola) toma a fábula dos músicos de Bremen, da Floresta Negra alemã, e a põe no cenário da ditadura brasileira, sugerindo mesmo que os militares (o cão) voltem para a caserna (!). Criança, ouvi até furar, decorando as falas e até os pulos da aguulha. Ao longo dos anos, aprendi com ele a fazer segundas e terceiras leituras da obra de arte, desde direitos dos animais até a leitura marxista, de luta de classes. Suas vozes são as de Miucha, Nara Leão e de meio MPB-4, nitidamente se divertindo muito. E ainda ganhou uma espécie de continuação anos depois, na trilha sonora dos Saltimbancos Trapalhões, não por acaso o melhor filme do quarteto.

2- Us – Peter Gabriel. A síntese mais completa do tão desgastado termo world music. Para começar, um time de monstros (para ter uma ideia, Sinead O’Connor faz backing vocal em duas faixas, e o encarte traz uma lista de músicos de cair o queixo cujas gravações não foram aproveitadas na mixagem final) e um festival de texturas inéditas para mim. Peter Gabriel aproveita o aprendizado que teve fazendo a trilha sonora de A última tentação de Cristo, filmaço de Martin Scorcese, e traz para suas canções irrepreensíveis timbres orientais, ritmos africanos e tecnologia de gravação, tudo junto e misturado, sem embolar nem desandar. Mas mais importante é que tudo está a serviço da maravilhosa sonoridade final.

3- Brasil – João Gilberto. O resumo da música brasileira em meia hora. A presença deste álbum como que me desobrigou de colocar quase qualquer outra da chamada MPB, tamanha sua capacidade de sintetizar tanta coisa, está tudo aqui. Tom Zé, no seu livro Tropicalista lenta luta, afirma em um artigo que as canções cantadas por João dobram a esquina da história. E prossegue, comparando João com Einstein – ou mais apropriadamente, a Bossa-Nova à Relatividade:

Esquina onde o que parece um passo passa do ano-luz. Então, João não é nada. Só a esquina. Fiquem com todas as honras. A ele, a esquina. Ele é a gravidade que impõe à reta da luz um ângulo de 90 graus.

E em outro texto, arremata: João abre a porta da quarta dimensão. Este álbum é um portal para esta dimensão, em que o Brasil da utopia se realiza e é feliz. Além do repertório fabuloso, da orquestração deliciosa, o João está na sua melhor forma. Mas o melhor é que o disco é uma aula, literalmente, e Caetano e Gil (e Bethânia numa faixa) são os alunos, repetindo obedientes as lições que João lhes passa. Inesquecível.

4- [Símbolo] – Prince. Último álbum antes dele trocar o nome pelo símbolo que é o nome do disco, sobreposição dos símbolos masculino e feminino, com uma trompa. Este não é seu álbum mais revolucionário, mas também não é do da maturidade de Musicology, mais homogêneo. Ao contrário, aqui Prince está endiabrado e a New Power Generation Band está em ponto de bala. Ele atira para todo lado e não erra, e na contracapa as canções são chamadas de jams. Tem desde hits radiofônicos até suítes amalucadas, com dois rappers incorporados à banda. E como se não bastasse, é uma aula de orquestração. Até canções singelas de amor terminam com solos de guitarra sobre metais furiosos – e funciona. Sua auto elogio está à toda: Meu nome é Prince, primeiro e único (…) No início, Deus fez o mar / Mas no sétimo dia ele me fez / Ele estava tentando descansar quando ouviu um som / Parecia uma guitarra (…) Deus estava preocupado, até que me ouviu cantar. Entendeu?

5- Õ Blesq Blom – Titãs. Sou legiomaníaco e quase escalei o I ou o V aqui. Mas não dá pra negar que os Titãs foram o que de melhor o rock brasileiro produziu. Hoje são uma sombra do que foram, mas conseguiram levar para a música popular e jovem algumas das vertentes artísticas contemporâneas, sem perder a pegada nem o público. Assisti o show do Rock in Rio II no Maracanã, logo após o lançamento deste álbum, e a comunhão com a platéia era bonita de se ver. Este disco tem de tudo que os Titãs fizeram de melhor: tem poesia concreta, crítica social não óbvia, metalinguagem, nonsense, e é inesperado a cada faixa. Não é um disco de rock, é um disco que deixa o rock para trás.

6- Remain in Ligth – Talking Heads. O encontro entre o David Byrne e o Brian Eno, e deveria ser suficiente dizer isso. Na verdade o terceiro encontro, já que é o terceiro álbum da banda produzido por ele. Mas este é fora do comum, um encontro perfeito também entre forma e conteúdo. Nunca as canções de David, obra primas do estranhamento do mundo (esta não é a minha bela casa. Esta não é a minha bela esposa!), fizeram tanto sentido junto às tessituras sonoras de teclados e levadas inesperadas (haviam conhecido Fela Kuti pouco antes). É um disco para desreconhecer a realidade. Os timbres deste álbum são um mistério para mim até hoje. Ouço, reouço e não consigo decifrar. Que maravilha!

7- Clube da Esquina – Milton Nascimento e Lô Borges. Falta um disco que simbolize a Tropicália nesta lista, por não haver nenhum específico que mudou minha audição (poderia ser Estrangeiro, que talvez fosse o décimo primeiro dela). Mas na falta dele, este aqui passa a ter uma dupla função, por ser aquele que traz o rock para dentro da música brasileira de uma forma ainda mais orgânica que os baianos (e dando a deixa juntamente com eles para os nordestinos logo após). Fora isso, uma coleção de canções atemporais, incluindo a que mais me meteu medo a vida toda (vide abaixo), e ouvir os amigos se revezando nos instrumentos, Beto Guedes no baixo, na guitarra, no bandolim, os outros outro tanto, é também algo para abrir o ouvido. Esqueça o tanto que este disco já tocou e escute-o novamente sem pé atrás. Vai se surpreender.

8- Álbum Branco – Beatles. Sargento Pimenta era minha primeira opção, um tanto óbvia: qual ouvido ele não arrombou? O Branco o venceu por uma cabeça, ou melhor, faixa: Revolution 9 me mostrou até onde pode ir a música popular muito além do que eu nunca imaginara. Mas é claro que não apenas de anticanções vive-se. Fora isso, é um disco em que a maior banda do mundo se leva pouco a sério, o que é genial. “Todo mundo tem algo a esconder, menos eu e meu macaco!” É preciso coragem para dizer isso, a coragem de não ser profundo. E é preciso ter subido muito alto para se dar o direito de não se levar a sério assim, e justamente por isso fazer uma música que realmente diz coisas novas, sem se preocupar em ser revolucionário. Você diz que quer uma revolução / Bem cê sabe, adoraríamos mudar… sua cabeça.

9- The Red Shoes – Kate Bush. OK Computer, do Radiohead, passou perto aqui, assim como Bjork. Mas a coesão alada à inventividade e a variação entre suavidade e potência da Kate são imbatíveis. Este álbum veio depois de um longo hiato e dá pra sentir a gana dela de voltar à ativa. O repertório flui tão redondo que participações do Eric Clapton e do Prince são como visitas de amigos (nada de featuring). As experimentações de álbuns anteriores aqui estão domadas e inteiramente a serviço – o que não as deixa de lado, antes pode potencializá-las. A mulher é uma fada mas também sabe ser uma bruxa quando preciso, e como sabe contar uma história.

10- Chico Buarque (1984) – Chico Buarque. A escolha mais pessoal da lista, talvez um anticlimax para o leitor que esperasse algo muito arrojado como chave de ouro. E realmente não é um disco particularmente inovador, especialmente sendo Chico Buarque antes um mestre de ofício, dos que perfeccionam a forma, que um iconoclasta. Acontece que este é o primeiro LP que comprei, com 13 anos, e nele descobri um mundo, desde os arranjos que nunca ouvira com aquela atenção (algo de maturação dos neurônios na adolescência talvez…), como também pelas participações de outros músicos e cantores, me apresentando pistas que fui seguindo – Pablo Milanés, Francis Hime, Dominguinhos, e perceber as diferenças entre o violão de Toninho Horta e o de João Bosco… e como se não bastasse, em plena redemocratização, canções como Pelas Tabelas e a imortal Vai Passar – para não falar de Brejo da Cruz – foram um ensino médio de política para mim, onde os Saltimbancos tinham sido o fundamental. Foi o álbum a partir de que descobri o mundo. Podia ter sido outro, calhou de eu ouvir JB AM e passar na frente das Lojas Americanas, calhou de ter 13 anos, calhou de ser brasileiro… mas veja se não foi um bom começo.

Dois Elvis

A invocação do mito é dos recursos utilizados na arte desde Homero ao invocar as musas e situar os deuses gregos nos enredos de suas epopéias. O mito acontece quanto o humano ganha um significado transcentente, e passa a simbolizar algo maior que ele mesmo. Van Gogh foi um pintor absolutamente genial, mas a representação do louco que nunca conseguiu vender um quadro durante a vida é quase maior que sua obra, e acabou ajudando muito a valorizá-la. Che Guevara foi um idealista e revolucionário, mas sua morte ainda jovem e sua fotogenia o levaram a representar este ideal de uma maneira que seu companheiro Fidel, que ficou por aqui para enfrentar a realidade, nunca mais conseguiu encarnar.

A obra de arte é capaz de criar mitos, mas mais comum é que ela se alimente do mito pré-existente para agregar significados extras a si. O retrato em serigrafia multicolorido de Marilyn Monroe por Andy Warhol ao mesmo tempo trazia para si o mito Marilyn e o alimentava – afinal, o próprio Andy também era um mito, ou estava a caminho de se transformar em um.

Por outro lado, apenas usar o mito para agregar significado sem devolver significações novas por sua vez acaba se tornando uma forma de vampirismo. A obra de arte pode criar redimencionar simbologias – aliás, é feita para isso. Se simplesmente repetir a que já existe, para que serve?

Aqui, duas invocações de Elvis Presley. A primeira, literal, no último e subestimado álbum do Dire Straits, On every street. Em Calling Elvis, Mark Knofler encarna algo ironicamente o fã desarvorado, fazendo uma ligação de longa distância para o Rei (para o outro mundo?). A atmosfera obsessiva do arranjo, com o mesmo curto riff de guitarra repetido hipnoticamente por vários minutos, reforça a impressão.

Callling Elvis – Dire Straits

Porém, Knofler não invoca Elvis propriamente dito. O empilhamento de clichês de sucessos (“love me tender”, “heartbreak hotel”) antes afasta que aproxima, ao evocar o mito, não a pessoa. Elvis não atende a ligação (já deixou o edifício), ele não está lá. Calling Elvis explicita a relação do grande público e da mídia – aqui simbolizada no telefone – com o mito e sua impossibilidade de comunicação real com o ser humano.

King of the mountain abre o último álbum de Kate Bush, Aerial. A voz quente de Kate substitui a soturna de Knofler. O arranjo, de obsessivo, torna-se etéreo, mesmo embalando na segunda parte. Estas diferenças são sintomas do olhar radicalmente oposto que Kate lança sobre o mito.

Kate Bush não telefona, fala diretamente com Elvis, em tom familiar, quase cúmplice. Conta-lhe as novidades sobre ele:

Outra garçonete de Hollywood esta dizendo que vai ter um filho seu
Há um rumor de que você está congelado e que vai despertar novamente algum dia
E que há uma fotografia em que você está dançando sobre seu túmulo

 Não deixa, no entanto, de se espantar. O personagem influencia também o ser real, a criatura interfere no criador:

Por que um multimilionário enche sua casa de lixo caríssimo?

King of the Mountain – Kate Bush

Mas é no refrão que Kate dá o golpe de mestre e revela a fundo o ser humano por trás da máscara. É na referência a Cidadão Kane, de Orson Wells, que muitos reputam o melhor filme de todos os tempos.

Cidadão Kane narra a busca de um jornalista para descobrir o significado da última palavra dita por um multimilionário antes de morrer. O personagem Kane foi inspirado no magnata das comunicações William Randolph Hearst. Ao final (atenção, vou contar o final. Mas bolas, o filme é de 1941!) Rosebud é o trenó do menino Kane, pedido na neve muitos anos antes. Wells no filme “fura” o mito e permite a visão do homem – e mais, da criança – The man with the child in his eyes, como diz outra canção de Kate.

Traçando a relação entre estes dois, King of the Mountain consegue fazer o retrato do artista quando jovem, e pintar o contraste terrível entre ele e o que o mundo fez dele – com o seu consentimento ou não. Calling Elvis faz este retrato em tintas sombrias. O de Kate é luminoso:

Elvis, você está lá fora em algum lugar,
Com o aspecto de um homem feliz?

O homem, não o mito. Ou o Rei no alto da montanha, maior do que o mito, sobrevivendo a ele. Afinal, Elvis não morreu, não é?

P.S. Não pude deixar também de pensar em Michel Jackson ao escrever este post. Graceland ou Neverland, a história se repete, como farsa e como tragédia.