Dois sambas sobre o fim do mundo

Dia 4 de julho deste ano (2023), o planeta Terra bateu o recorde de temperatura média – foi o dia mais quente da história considerada a medição global. O recorde batido era recente, na verdade do dia anterior, 3 de julho. O ano de 2023, antes mesmo de terminar, já é o mais quente em 125 mil anos, segundo pesquisadores do clima. A média do mês de outubro foi 0,85º acima da média do mesmo mês entre 1991 e 2020 e 0,4º acima de 2019.

As causas para isso remontam à Revolução Industrial, quando motores a explosão passaram e liberar uma quantidade crescente de calor, aliada o desmatamento e à poluição. Às emissões de carbono e criação do efeito estufa somou-se em 2023 os fenômenos do El Niño e da La Niña, de aquecimento ainda maior do Oceano Pacífico. Mas o fato é que o aquecimento global se tornou inegável até mesmo para muitos de seus detratores e negacionistas ao longo do ano.

Não é de hoje que ambientalistas e pesquisadores apontam para o que está acontecendo e alertam que podemos estar tomando um caminho sem volta. Porém, ainda antes deles, profecias e tradições religiosas listavam eventos de fim do mundo, em geral cataclismas violentos (muitos dos quais, se olharmos com atenção, podem estar acontecendo atualmente, apenas em câmera lenta), incluindo a tradição cristã. O último livro da Bíblia, o Apocalipse de João, é a descrição do Fim dos Tempos, em que a Terra é destruída para renascer, os ímpios são castigados e os justos recompensados.

Mas e o nosso tema canção? Ora, não faltam os que cantaram tanto a questão ecológica quanto a escatológica, às vezes simultaneamente, e não falo aqui das vertentes confessionais. Dois sambas da melhor cepa da música brasileira são dedicados a estes eventos, e até certo ponto um deles pode ser considerado um desenvolvimento do outro, tanto tematica quanto musicalmente. Vamos a eles.

Nelson Cavaquinho gravou seu clássico Juízo Final no álbum com seu próprio nome, em 1973. Dois anos depois, Clara Nunes o regravou em seu álbum Claridade.

A abertura de Juízo Final é uma das mais retumbantes da música brasileira e provavelmente universal. A carga de dramaticidade contida em suas duas primeiras palavras, duas primeiras notas e dois primeiros acordes é difícil de ser superada. O verso O Sol é cantado com um salto oitava acima, com a nota aguda estendida amplificando seu brilho e poder o máximo possível. E então, do acorde menor inicial da tonalidade, se passa bruscamente ao acorde do segundo tom bemol maior com sétima, totalmente fora da tonalidade – na verdade uma dominante substituta que, por sua vez, conduzirá à dominante natural do tom. Por exemplo, Am, Bb7, E7.

O surgimento deste segundo acorde é muito inesperado (e normalmente ainda é apresentado com uma convenção sincopada que o antecipa ligeiramente ao tempo forte). A dissonância apresentada de chofre, sem nenhuma preparação, dá ao ouvinte a sensação de algo terrível iminente, em consonância perfeita com a letra. Entretanto, não se trata apenas de um acorde fora da tonalidade ou uma dissonância comum. O efeito tremendo deste segundo acorde se deve ao fato de ele manter, em relação à dominante, o intervalo mais dissonante da música ocidental, a quarta aumentada.

O intervalo de quarta aumentada (ou trítono) foi chamado em tempos medievais de diabolus in musica e terminantemente proibido antes do estabelecimento definitivo da tonalidade como a conhecemos hoje. Não por causas religiosas, mas sonoras mesmo: Os comprimentos de onda de sons separados por este intervalo quase nunca coincidem, o que causa enorme estranheza ao ouvido. No caso de Juízo Final, um acorde “natural” para a condução harmônica teria como baixo a nota Si, nunca a de Si Bemol. O acorde de Bb, meio tom abaixo, é exatamente o mais dissonante possível em relação ao caminho esperado, já que todas as suas notas estão igualmente deslocadas. É como se um terremoto tivesse descarrilhado a harmonia logo de saída. É assim que Juízo Final se inicia, com um ovo de Colombo de efeito espetacular.

Nelson assume o discurso de um profeta do Antigo Testamento – ou do apóstolo João, autor do Apocalipse. O que não deixa de estar em consonância com sua obra. Nelson é um dos autores mais trágicos do cancioneiro nacional, ao lado de Lupicínio Rodrigues e Adoniran Barbosa, todos tratando em seus sambas da tragédia do cotidiano. Em Juízo Final, ele apenas amplia sua noção de um destino inexorável, de casos particulares para toda a existência. A letra de Juízo Final é sucinta, mantendo em sua segunda parte a grandiloquência nas notas agudas. Nela, poder-se-ia dizer, está resumida a Lei e os Profetas, e Nelson ainda se permite uma discreta menção a uma expressão usada por Jesus, aquele que tiver olhos de ver, veja nos versos finais quero ter olhos pra ver / a maldade desaparecer.

Passemos agora ao segundo samba sobre o Fim do Mundo: As Forças da Natureza, de João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro. Foi composto e gravado pouco depois de Juízo Final, mas guarda diferenças com ele. Porém, mais impressionantes que as diferenças são as semelhanças. Este foi gravado primeiro por Clara Nunes em 1977 e acabou dando nome ao álbum.

E João, por sua vez, o gravou no álbum Vida Boêmia, em 1978.

As Forças da Natureza é, na prática, um desenvolvimento do tema de Juízo Final. Porém, acrescentando uma perspectiva, digamos, proto-ecológica ao entrar em mais detalhes sobre os acontecimentos, num espírito que é tanto relacionado com o Apocalipse cristão quanto a descrição de uma revolta da natureza contra quem a maltratou tanto. Em relação ao livro bíblico, possível até mesmo traçar algumas correspondências de texto:

Uma chuva de prata do céu vai descer / E as estrelas do céu caíram sobre a terra como figos verdes caem da figueira quando sacudidos por um vento forte. (Ap. 6, 13)

Quando o Sol se derramar em toda a sua essência / O quarto anjo derramou a sua taça no sol, e foi dado poder ao sol para queimar os homens com fogo. (Ap. 17,8)

Assim como tematicamente, As Forças da Natureza também desenvolverá mais os temas harmônicos e melódicos do que o samba de Nelson. Para começar, tem uma forma mais extensa e muito diversa das tradicionais primeira e segunda partes. Ao contrário, pode ser dividido aproximadamente em três partes e uma coda, com poucas repetições melódicas, mesmo quando a harmonia é a mesma. E mesmo esta harmonia vai seguir caminhos e utilizar recursos mais próximos da harmonia funcional, sem quebras radicais como o segundo acorde de Juízo Final, mas se permitindo certas sutilezas como fazer o tom variar entre menor e seu relativo maior (Por exemplo, Lá menor e Dó maior), conseguindo com isso mudanças de clima que vão do mais introspectivo ao mais exaltado.

O músico e pesquisador Luís Filipe de Lima, em seu livro Para Ouvir o Samba, estabelece critérios cuidadosos para descrever cada um de seus subgêneros, do samba amaxixado ao samba-enredo, da Bossa-Nova (sim, está incluída) ao pagode romântico da década de 1990. Ele classifica ambos os sambas em pauta na categoria pós-MPB (capítulo 14.1), que engloba tanto a produção feita por sambistas que se apropriou de algumas conquistas formais da MPB quanto a de sambistas da velha guarda como Cartola e o próprio Nelson, que foram redescobertas e revalorizadas à luz dessas conquistas. Neste sentido, é fundamental perceber que uma eventual maior complexidade de uma das composições não significa absolutamente que haja algum tipo de superioridade estética. Na verdade, o uso das fórmulas tradicionais do samba e da MPB poderia, ao contrário servir para tornar a canção banal e medíocre… Por outro lado, ao colocar ambas lado a lado, por mais que estejam próximas em termos históricos (e efetivamente as separam poucos anos), fica evidente a diferença entre elas: Nelson faz um samba nos moldes da tradição (o que inclui quebrá-la genialmente quando lhe convém), do tipo que alimentou a MPB; João e Paulo César Pinheiro fazem um samba que por sua vez se alimenta da estilização formal da MPB. Há uma continuidade entre eles que não é apenas estética, mas também histórica.

E isto ficará evidente ao analisarmos As Forças da Natureza e notarmos agora as semelhanças entre ele e Juízo Final – semelhanças que são também diferenças na forma de percorrerem os mesmos caminhos. As Forças da Natureza também se inicia com uma referência ao Sol – e com um salto de oitava! As duas primeiras notas de ambas as canções são exatamente as mesmas. Porém, enquanto no samba de Nelson a segunda nota se estende causticante na palavra Sol, no de João o Sol só surge na terceira nota, que desce suavemente um tom: Quan-do_o Sol… Assim, o Sol tem sua potência matizada – ao menos inicialmente. Até pode-se dizer que o movimento melódico vai reforçar o efeito da palavra derramar, logo adiante, fazendo com o que a luz solar se propague de forma menos direta.

Mas há um detalhe mais difícil de detectar que une as duas composições, justamente o uso do trítono, o intervalo de quarta aumentada, o diabolus in musica, na cadência harmônica. Assim como Juízo Final, As Forças da Natureza também tem dois acordes encadeados com esta distância entre eles. Mas outra vez, assim como no caso da melodia inicial, este encadeamento acontece de uma forma mais suave, tendo seu impacto reduzido. Aqui, trata-se da passagem que acompanha o verso Desafiando o poder da ciência (e de novo no verso Levar consigo o pó dos nossos dias). O que ocorre é que, quando oscila entre os tons de lá menor e dó maior, há acordes comuns que servem para fazer a passagem entre eles. Mas há também acordes de empréstimo que são úteis. Assim, a sequência harmônica C / F7 / B7 / E7 / Am faz a passagem de uma tonalidade para outra, mas a distância entre o Fá e o Si é justamente a que causa estranhamento no ouvido (se o leitor não tem conhecimento de harmonia, basta ouvir a passagem para perceber do que falo).

Isso se dá porque na verdade o acorde de B7 não é de nenhuma das duas tonalidades, e sim um empréstimo – a dominante da dominante do tom menor. Mas sua presença aí torna a melodia muito mais interessante – a curva na palavra ciência e depois em os dias chama imediatamente a atenção do ouvido, porém sem causar o choque do início de Juízo Final. Trata-se do mesmo intervalo, com função similar, porém usado de forma lateral na sequência da harmonia, de modo a reduzir seu impacto e torná-lo de um verdadeiro cataclisma, em uma coloração a mais, um diabolus domado afinal, ao menos in musica.

As Forças da Natureza reconta Juízo Final a seu modo, seguindo seus passos mas acrescentando em seu enredo uma visão do samba que já passara pela MPB – a mesma que escutava avidamente e reverenciava Nelson, assim como João Nogueira também fazia, é claro. Quando compostas e gravadas na década de 1970, a humanidade se considerava longe de qualquer consequência de suas ações destrutivas no planeta: aquecimento global, pandemias, elevação do nível do mar, tudo isso era matéria de ficção científica ou fanáticos religiosos. Hoje são realidade, e não dá para não pensar que Nelson Cavaquinho, João Nogueira e Paulo César Pinheiro avisaram. Para nosso consolo, seus sambas proféticos, ao final, descrevem um mundo onde o mal terá sido banido. Se Nelson não menciona a sobrevivência humana (ou o faz, sutilmente – ao menos a dele próprio), João e Paulo o fazem, relatando o desaparecimento das armas e dos homens de mal – possivelmente os que se denominam de bem. Só nos resta dizer amém.

De peixes e peixinhos

O que não falta no mercado hoje são filhos de cantores, compositores, instrumentistas, que seguiram a profissão dos pais. Nada mais natural, por um lado. É algo que me lembra as associações de ofícios da Idade Média, em que os artesãos passavam suas profissões adiante por gerações – e o trabalho com arte é sem dúvida um ofício artesanal ainda hoje, mesmo quando pensado para ser consumido por uma massa anônima e desconhecida, o que é uma de suas contradições inerentes.

Por outro lado, é algo que não deixa de me incomodar (em parte, claro, por eu não ser filho de ninguém famoso…), pela quantidade de filhos de músicos que não conseguiram nunca sair de baixo da sombra das obras dos pais – o que também não deve, ou não deveria, ser nada fácil para eles. Porém, noves fora os que abertamente tem carreiras fabricadas, e dos quais me eximo de falar, há casos dos que até tentaram se libertar desta sombra em suas carreiras, mas não conseguiram mostrar qualidades próprias que fossem superiores às semelhanças com seus predecessores, fossem físicas, vocais, ou de estilo.

Lembro bem quando Maria Rita, filha de Elis Regina e do grande pianista e arranjador Cesar Camargo Mariano, surgiu na mídia, apadrinhada por Milton Nascimento. Houve uma comoção no país, não exatamente pelo seu trabalho, ainda incipiente, mas pela semelhança da voz dela com a da mãe. O primeiro álbum, e também o segundo, seguiram trilhas de repertório próximas dos de Elis, e até a escolha de compositores novos, em vez de afastá-la, aproximava, já que a mãe fazia o mesmo – inclusive com o próprio Milton. A coisa chegou a ponto de o cantor Lobão ter dito em entrevista que assistia o maior fenômeno de necrofilia da história do Brasil. Talvez tenha sido por isso que Maria Rita, a partir do terceiro álbum, tenha enveredado por um caminho diferente, cantando sambas: para firmar uma carreira longe da pecha de filha da maior cantora que o país já teve.

Já Diogo Nogueira não parece ter constrangimento com a sua filiação. É filho do grande  sambista João Nogueira, de excepcionais composições. Seu primeiro álbum, de 2001, chamava-se Um sonho através do espelho, em referência ao álbum Espelho às canções Espelho e Além do espelho, de seu pai. Porém, curiosamente, este álbum é ignorado na discografia oficial de seu site.

Sendo assim, considere-se que Diogo foi lançado por um CD/DVD ao vivo – bastante cacife para alguém que não tinha um repertório gravado. Gravou vários sambas do repertório do pai, e composições novas, algumas com sua participação na autoria. E seu “primeiro”  CD de estúdio, então, tem nada menos que uma parceria de Ivan Lins e Chico Buarque, Sou eu, que foi direto para a trilha da novela e para as rádios.

Sou eu – Diogo Nogueira, com uma participação pouco perceptível de Chico Buarque.

Sou eu conta a história do sujeito que leva a moça para o samba, atura que ela jogue charme para todos os lados, com o consolo de que no fim da noite será ele seu acompanhante. É uma situação dúbia, em que não fica claro se o protagonista é um cara de sorte ou um fraco que não é respeitado pela namorada. Sendo cantado na primeira pessoa, é óbvio que o refrão será um meio de tentar transformar a situação embaraçosa em contação de vantagem. Mas há um detalhe na harmonia de Ivan Lins que contribui para solapar este grand finale: os acordes do refrão não se resolvem, escorregam de dominante em dominante e impedem que o “sou eu” repetido na letra se transforme em afirmação peremptória. Fica sempre a impressão de que esta assertiva tão firme na verdade é usada para disfarçar a insegurança de quem não sabe se é namorado ou chofer da moça em questão.

Por isso mesmo, não me agrada particularmente o fim da gravação do Diogo, em que ele coloca cacos na letra e se empolga na tiração de onda. Dizendo coisas como “modéstia à parte” e se intitulando “o rei do pedaço”, ele acaba com esta ambiguidade que é o grande trunfo do samba, recusando o papel do sofrido algo humorístico, que é comum na obra de Chico (em Ela é dançarina e Até o fim, por exemplo), em favor de um papel de malandro que é bem mais pobre. Fica a impressão de que Diogo não entendeu perfeitamente o espírito da coisa.

Mas o que mais me chama a atenção neste samba não é isto. O samba Sou eu é todo baseado em um motivo melódico de seis ou sete notas descendentes, dependendo da frase da letra, que pode ser ouvido em “Pra quem que ela arrasta asa?”, por exemplo, além do refrão. Acontece que esta é a mesma frase melódica, com uma divisão rítmica um pouco diferente, que serve de base para uma conhecida composição de João Nogueira.

Eu heim, Rosa! – João Nogueira, do álbum Parceria, com Paulo Cesar Pinheiro

Esta gravação com o próprio João pode não ser a melhor para perceber a semelhança, pois, já sem a agilidade vocal de outros tempos, ele malandramente aplaina a melodia descendente de “Se manca, segura essa banca de escrupulosa”, só apresentando a frase original ao cantar a primeira estrofe. Mas a gravação de Elis Regina deixa clara a semelhança. Em Eu, hein, Rosa!, o motivo melódico aparece na frase que já citei, mas também, reduzido para cinco notas, em frases como “quando precisar de mim”, ou estendido em “apelar pra ignorância é uma coisa indecorosa”

Eu heim, Rosa! – com Elis Regina, ao vivo

Muito bem, e daí? Será que é proibido fazer sambas baseados em melodias descendentes, apenas porque João Nogueira fez um? Imaginar que Ivan Lins tenha feito uma melodia propositalmente parecida com a de João para Diogo me parece absurdo. A hipótese de que Ivan tenha se influenciado involuntariamente pelo fraseado do pai ao compor para o filho já não me soa tão despropositada.

Mas o essencial nesta semelhança, sem dúvida, não é culpabilizar compositores ou cantores, e sim perceber o quanto esta semelhança pode ser utilizada numa estratégia de marketing, e o quanto esta utilização pode chegar a extremos de detalhe – como uma linha melódica. Quando Maria Rita se lançou cantora, a identificação com o mito que é sua mãe foi explorada cuidadosamente, fosse ou não confortável para ela – e nem sempre parecia confortável, sendo descartada quando a artista amadureceu – ou quando deixou de ser lucrativa. No caso de Diogo Nogueira, esta identificação está sendo feita de forma mais suave, guardadas as proporções entre Elis e João Nogueira, e Diogo parece bem mais à vontade. Talvez ambos consigam firmar carreiras de real significância na música brasileira, no sentido de apontar caminhos, e escapem da comparação com seus pais. Boa sorte para eles. Graças ou apesar de seus empresários.