João Bosco e Martinho da Vila são amigos, mas se encontram pouco pela dificuldade das respectivas agendas. Mas um dia, no início da década de 1980, os dois tocavam na mesma noite da cidade de São Paulo, em casas diferentes e marcaram de se encontrar depois dos shows. Tomaram uns gorós – João é bom de copo, mas conta que Martinho é ainda melhor – e partiram os dois, sozinhos, conversando pela madrugada paulistana. Já quase ao amanhecer, chegaram a um largo – talvez o da Sé, mas aí minha memória falha, e depararam com uma baiana arrumando seu tabuleiro para começar a labuta.
A partir daí os relatos de ambos começam a divergir. Segundo João, a baiana batucava na panela batendo com uma colher, num ritmo sutil, e repetia um refrão: oh, iê, oh, iá, que que vem fazer aqui, Manuel? – Vim sambá. João ficou ali embasbacado ouvindo, siderado. Depois separaram-se e foram para casa. Mas três dias depois, o refrão da baiana continuava ecoando sem parar na cabeça de João, que então ligou para Martinho.
– Sabe a baiana lá do largo?
– Que baiana?
Pois é, segundo João, Martinho não lembrava de nada, talvez devido à carraspana, e ficou a dúvida entre eles: se era Martinho que não lembrava ou João que havia inventado tudo, se a baiana existira mesmo ou não. Consultado hoje, Marinho nega, e inclusive acresce que, enquanto João estava ali parado, ele se acercou da baiana e dividiu com ela não um de comer, mas uma garrafa de cana que ela malocava embaixo do tabuleiro. De qualquer forma, João disse a Martinho pelo telefone que o refrão só ia parar de tocar na sua mente quando virasse canção, e tinha que ser parceria entre os dois. Martinho foi à sua casa, e do refrão da baiana que existia e não existia nasceu Odilè, Odilá.
Odilê, Odilá é um canto ancestral. Diria mais, é a personificação da ancestralidade. No fim das contas, toda a letra composta por Martinho e João é quase apenas um pretexto para poder repetir o refrão que ouviram naquela madrugada. No entanto, a letra traz também algumas pistas, tanto objetivamente do que ocorreu naquela noite, quanto subjetivamente, traçando, em três a quatro minutos uma linha do tempo vertiginosa da trajetória do negro desde a origem africana, sua diáspora, sua dura reconstrução, até a praça em que os dois amigos o encontraram encarnado na baiana: estão lá a travessia do oceano, o gueto do Harlem, o sincretismo das religiões africanas com o catolicismo, a romaria e, finalmente, o samba.
Mas antes de tudo, Odilé, Odilá é seu refrão. Este é uma espécie de não-invocação ou melhor, uma saudação, e também uma declaração de intenção. Versos cantados por quem recepciona, (Ô de lá!, saúda ele, assim como Zeca Pagodinho o faz em seu Samba pras moças) e duas palavras em resposta, anunciando: Vim sambar. a voz de resposta, não identificada, (Manuel para a baiana, aqui perdendo seu nome ganha em amplitude) pode ser qualquer um, em qualquer lugar, em qualquer tempo. E a característica imemorial deste refrão dá a este interlocutor invisível a possibilidade de vir do passado remoto, Conforme a letra de Martinho e João se desenrola, o diálogo prosaico vai ganhando em profundidade: quem veio sambar? Quem veio da Bahia sambar? Quem veio da África sambar? A cada escuta, seu caráter de canto original, ressoando algo de idade não mensurável, vai ficando mais patente, sem que se precise saber a história de sua criação – ou talvez porque esta história o tenha impregnado pelos tempos., o tempo o tenha impregnado.
João Bosco gravou Odilê, Odilá, como a última faixa de seu álbum de 1986, Cabeça de Nego, apenas com seu violão e a percussão de Djalma Correia.
Já Martinho a gravou em 1985, no álbum Criações E Recriações.
São duas versões muito diferentes entre si. A de João econômica, reduzida ao essencial, ao mais elementar, mas com muito suingue; a de Martinho com mais instrumentos, incluindo a pele na pele de atabaques e palmas, kalimbas, mas também um clarinete e um piano. Paradoxalmente, a gravação de Martinho soa mais próxima de alguma tradição que a de João, em especial por ter a levada do samba mais evidente. Estas escolhas do tratamento a ser dado ao refrão inspirador são definidas pelo DNA artístico de cada um deles e suas histórias. Odilê, Odilá se encontra no entroncamento de duas tradições, a do samba e a da MPB, duas formas de pensar e atuar na música e na cultura que se encontraram muitas vezes, mas quase sempre com a manutenção de uma certa reserva de território. Martinho e João têm trajetórias diversas ligadas ao samba: Martinho é um sambista com sua própria sofisticação, e se permite incluir a instrumentação variada sobre uma base rítmica bem evidente; João, depois de décadas fazendo sambas, se interessa pela estilização de seus elementos. Um sambista com o pé na MPB, um mpbista com o pé no samba, e na confluência de ambos, Odilê, Odilá ganha um caráter ambíguo que é um de seus trunfos.
Mas isto nos leva a um assunto difícil, porém necessário, que é o da apropriação cultural. Pois o fato a ser enfrentado é que João e Martinho tomaram para si e assinaram um refrão popular. A baiana quituteira só está registrada na história contada por eles, assim como os múltiplos autores anônimos por quem estes versos passaram. Por que João e Martinho assumem para si a autoria do refrão para o qual fazem segundas?
A resposta talvez seja diversa para cada um deles, conforme a ligeira diferença de tradição de cada um. No caso do samba, é sempre necessário lembrar a fala de Sinhô, de que música é como passarinho, é de quem pegar primeiro. Assim como os primeiros sambas eram construídos a partir de refrões de domínio público, sem autor, simplesmente com a composição das segundas – e mesmo estas feitas, como ainda hoje muitas vezes, no improviso em volta de uma mesa. Carlos Sandroni, no seu já clássico livro Feitiço Decente: transformações do samba no Rio de Janeiro, trata de como se deu esta passagem dos autores que se confundiam com os criadores anônimos mas passaram a assinar e os autores já imbuídos da questão autoral (e do dinheiro que envolvia) como Noel Rosa, que inclusive incentivou colegas a tomarem esta atitude – comporem as segundas de um refrão e o registrarem para si.
No caso da MPB, o assunto fica ainda um pouco mais complicado. A MPB apoia-se no procedimento bossa-novístico com relação ao samba, reapresentando-o dentro de uma estrutura sofisticada (pelos padrões da composição européia, leia-se), seja harmonicamente ou em termos de arranjo, e estendendo o alcance deste procedimento às diversas manifestações musicais brasileiras. Porém, o paradigma para este procedimento será oriundo em grande parte também da composição clássica, pelo precedente aberto no Brasil por Villa-Lobos (ou escancarado e teorizado, já que a prática já ocorria antes) e Guerra-Peixe, mas seguindo padrões paralelos ao do contemporâneo Bartók, e antes por Chopin, Tchaikovsky, tendo sido firmados desde o período romântico no aproveitamento de temas de domínio público em obras de concerto.
Ainda assim, estas raízes históricas, por mais que expliquem, não justificam o procedimento de apropriação, assim como teorias científicas ultrapassadas não justificam o racismo de hoje. João e Martinho seguem tradições que simultânea e dubiamente valorizam os temas populares ao levarem-nos a públicos diversos e mais amplos, e desvalorizam-nos ao escamotearem sua autoria, mantendo-a duplamente incógnita, tanto por historicamente não terem nome quanto pelo recolhimento do tema não assinalado em seu registro, apenas por ter sido feito informalmente. Se houvesse um registro formal do tema em um livro de Mário de Andrade ou Câmara Cascudo, isto certamente teria sido explicitado na contracapa dos álbuns, como se apenas a intervenção da cultura acadêmica pudesse legitimar a popular. A visão sobre esta relação entre os registros culturais tem mudado rapidamente da década de 1980 para cá, e isto é sem dúvida uma boa notícia, para que futuras baianas quituteiras tenham seus nomes lembrados pelos saberes que passam adiante e alimentam a cultura estabelecida.
E por isso mesmo, voltemos atenção à canção e seus elementos. A harmonia tem o refrão em tom maior, modal (sétima abaixada, mixolídio do baião e do blues) e segundas na relativa menor, e esta, embora com uma harmonia igualmente simples, com uma construção formal mais estruturada – a frase tema da segunda é cantada duas vezes iniciada na quinta do acorde e duas vezes na sétima, passando agora ao tom maior da sétima abaixada com a melodia uma terça acima, uma solução simples e elegante no desenvolvimento do tema. O contraste entre o refrão sintético e seu desenvolvimento tanto harmônico quanto temático nas segundas gera uma certa tensão estética, fruto da diferença de tratamento entre elas. Neste sentido, Odilê, Odilá é ela própria um fruto da história que ela conta, tendo em si um fragmento da ancestralidade e um complemento moderno a seu redor – como se um artefato medieval ou pré-histórico fosse completado artisticamente segundo técnicas contemporâneas. A história negra é contada não só no conteúdo, mas também em sua forma.
Mas mais que a harmonia e ainda mais que a letra, a mensagem principal de Odilê, Odillá está incrustada em seu elemento mais íntimo: a síncopa. A nota forte no tempo fraco é a condutora da canção, e a compreensão de João Bosco sobre esta síncopa é determinante na criação da levada de violão tão característica que se incorpora a ela. O motivo rítmico usado por ele em sua gravação (e também na de Martinho), nada mais é que a divisão mais típica da música negra das Américas, o chamado tresillo, também descrito por Sandroni em Feitiço Decente (um texto específico dele sobre o tresillo pode ser lido aqui). A divisão do compasso em três partes desiguais (em um compasso de dois tempos: dois seguidos de 3/4 de tempo e um de meio, ou melhor, duas colcheias pontuadas e uma colcheia) é o ponto em comum entre ritmos cubanos como a habanera e a síncopa característica do samba moderno, sendo como que um antepassado de ambos.
Pois o que o violão de João Bosco faz é tão somente uma espécie de primeira inversão rítmica desta divisão, antecipando-a: meio tempo (antes da cabeça do compasso), 3/4 de tempo, 3/4 de tempo. Sua frase se inicia na última nota do tresillo e termina na segunda com um stacatto, para recomeçar de novo e de novo. Um truque simples que apresenta a divisão originária de forma transfigurada. Martinho, em sua gravação, usa mais timidamente a inversão feita por João, mas em vez disso escancara a divisão do tresillo nas palmas que acompanham o refrão, trocando a sutileza pela abertura do terreiro para a dança. Mas o violão de João é um ovo de Colombo que, como o bumbo invertido nas baterias de escola de samba, leva em seu minimalismo a essência do samba, a inversão da inversão, o contratempo. Síncopa, a vitória do mais fraco.
A viagem no tempo e no espaço de Odilê, Odilá vem da África até a praça de São Paulo, de eras do passado até a noite em que em que a quituteira que bate colher conta sua história por meio de um refrão. Mas esta viagem também se dá em outra instância, outra dimensão, na anti-invocação da ancestralidade ali, na praça: ô de lá! Na primeira estrofe da letra, Martinho canta: Vem junto com a gente viajar na energia-som. Já João convida: Vem junto com o bumbo. É a primeira e muito sutil pista, quase um ato falho, da personificação de Martinho e João com sua própria canção – e principalmente com a canção que não é deles, mas muito anterior a eles. E é na última estrofe que esta metamorfose se completa e revela:
Preta velha bate pé, bate colher levanta pó
Dá marafo pro Odilê e solta logo seu gogó
Odilá de madrugada nem sem viola tá só
Pois tá com axé da velha nega preta sua vó
Como um sincretismo muito particular, Martinho e João convertem Odilê e Odilá em seus codinomes, ou melhor dizendo, convertem a si próprios em Odilê e Odilá. Martinho Odilê fila um gole do marafo (cachaça) que a baiana leva para se esquentar na madrugada paulistana; Odilá João invoca seus próprios ancestrais diante dela, em identificação. João e Martinho se tornam a própria canção e assumem seu nome ao mergulharem na ancestralidade. E revela-se também a quem a preta velha, cuja própria existência nesta dimensão chegou a ser posta em dúvida, saudava com seu canto, quem é que se acercava: eram eles mesmos, João e Martinho, os saudados, e neles suas ancestralidades reconhecidas por ela, como um preto velho num terreiro reconhece e saúda também a ancestralidade de seu interlocutor. Os amigos João e Martinho, fizeram sua própria viagem naquela noite de conversa sem rumo pela metrópole, e ao chegarem àquela praça já não eram apenas eles, mas todos os que foram e são por eles e por meio deles, e que criaram e construíram o samba, esta forma de resistência e rendição que mudou e sobreviveu e os guiou em um novo mundo. Aqueles que sabem, há séculos, a resposta à pergunta da baiana: Que vem fazer aqui meu irmão? – Vim sambar.
Meus agradecimentos ao jornalista Leonardo Lichote, que extraiu de João e Martinho às histórias que foram o ponto de partida a este artigo.