Quem conta esta história é Adelzon Alves, decano dos radialistas brasileiros, com quase sessenta anos de carreira e responsável pela divulgação inicial de incontáveis músicos, em especial do mundo do samba: Cartola, Paulinho da Viola, Martinho da Vila, João Nogueira, Clementina de Jesus, e mais tarde Zeca Pagodinho, Jovelina Pérola Negra, Fundo de Quintal, e muitos outros. A história foi contada ao também radialista Maurício Valladares, e a repasso aqui com os créditos, para que fique registrada não apenas sonoramente.
Durante a década de 1970, por mais de oito anos, Adelzon comandou um programa com ninguém menos que Jackson do Pandeiro, e neste programa testemunhou o dia em que ele e Luiz Gonzaga passaram de rivais a amigos. Mas antes é preciso falar da origem de suas diferenças, e esta foi narrada ao mesmo Adelzon pelo próprio Gonzaga. Havia uma diferença fundamental na fama Luiz para a de Jackson: o primeiro estourou no Rio de janeiro e só depois, pelas ondas da Rádio Nacional, sua música chegou à sua terra natal. Já Jackson estourou por lá antes, e foi um dos únicos artistas, se não o primeiro, a conquistar o Brasil sem passar pelo Rio, tendo sido crooner da Orquestra Tabajara, de Severino Araújo, quando esta ainda era sediada na Rádio Tabajara (que portanto lhe deu o nome), em João Pessoa, mais tarde na Rádio Jornal do Comércio, do Recife, e só depois vai para a Rádio Tupi, no Rio de Janeiro. Alguns músicos se juntaram a ela na capital, mas a base da Orquestra é toda oriunda da Paraíba, incluindo irmãos de Severino. Jackson grava seu primeiro disco por uma gravadora local (do Recife) chamada Mocambo, disco que incluía o Forro em Limoeiro, e só viria para o Rio anos depois.
Conto isso para estabelecer o cenário da volta de Luiz Gonzaga ao Nordeste pela primeira vez. A empáfia, o rei na barriga de Luiz quando deste primeiro retorno são conhecidos e reconhecidos pelo próprio Gonzaga, que transformou a chamada que tomou do Véio Jacó para ser mais humilde em um de seus maiores clássicos, Respeita Januário. Pois Gonzaga chegou para se apresentar justamente na Rádio Jornal do Comércio, em seu auditório. Gonzaga estava no seu auge, e contou que estava no hotel ouvindo o programa, e a platéia animadíssima, foi para a rádio e do camarim, num aparelho sintonizado, continuava ouvindo o entusiasmo do público, e quando finalmente ele foi anunciado e entrou triunfante no auditório… a platéia murchou. Não por sua entrada, mas porque um certo neguinho serelepe, como ele se referiu depois, saia. A estrela da Rádio Jornal do Comércio era Jackson do Pandeiro.
E o pior para Luiz é que o acontecimento não ficou restrito a Pernambuco, mas repercutiu no Rio de Janeiro, em notas e comentários maliciosos nos jornais e programas da época. Ao contar a história muito mais tarde, Gonzaga comentava: a gente jovem tem umas bobagens… Mas o fato é que não apenas ele se indispôs com Jackson por ciúme da platéia recifence, mas também Jackson, ao ouvir os comentários de Gonzaga sobre ele, igualmente não gostou. E de não se conhecerem passaram a não quererem se conhecer, e mantiveram suas carreiras paralelas por anos a fio. Adelzon notava a ausência de Luiz no programa de Jackson, por onde passava a fina flor da música não apenas regional brasileira, mas, sem saber do estremecimento entre eles, creditava a problemas de agenda.
Até que um dia, em 1978, de supetão, Gonzaga apareceu. O programa de Adelzon e Jackson era, como quase todos, apresentado num auditório da Rádio Globo, mas este minúsculo em comparação com os das Rádios Jornal do Comércio, Tupi ou Nacional. Alguém bateu no ombro de Adelzon logo antes do início do programa e disse: Gonzaga tá aí. Adelzon, claro, exultou, e mandou adiantar a publicidade para que o bloco com Luiz ficasse maior e sua participação fosse bem aproveitada. Mas ao avisar o Jackson, a reação o surpreendeu. Ué, Gonzaga tá aí? Tá. E quem é que vai apresentar ele? Ué, você, o programa é seu. Adelzon era na prática uma espécie de escada, um radialista que cuidava da parte técnica, mas que estava ali para abrir espaço para Jackson. Este percebeu logo que não podia relutar e concordou.
Adelzon conta tanto da enorme humildade e inquietude da Jackson quanto da presença majestática, imponente de Gonzaga, que já entrou no estúdio, antes do programa começar, de sanfona em riste. Jackson o anunciou, ele entrou, foi ao microfone e disse, com seu vozeirão: (e aqui replico a fala de Adelzon contando a Maurício Valladares, inclusive se emocionando e indo às lágrimas):
Jackson, seguinte: a gente foi fazer um show aí, tamos de carro,na região rural de Governador Valadares, houve um acidente na Rio-Bahia, parou a estrada nos dois sentidos, e deu vontade de ir no banheiro, como é que é o negócio, a gente andou pra lá e pra cá, a estrada parecia um trem noturno, e tudo quanto era carro, caminhão e ônibus que a gente passava pra lá e pra cá procurando o que comer e tal, tava todo mundo ligado aqui.
E tem outra: eu estava outra vez em Caruaru, ou foi Caruaru ou Garanhuns, uma das duas cidades. Acabei um show, uma família amiga, da nossa consideração, me convidou para fazer um lanche na casa da família. Era um condomínio grande, e a casa da família era no final do condomínio. As casas iguais, alpendres iguais, e a gente foi entrando pelo condomínio adentro, já a essa altura três e tal da manhã, e cada casa, a família estava no alpendre, com um lanche, com o rádio em cima da mesa, ouvindo você.
Daí eu entendi que eu não podia deixar de estar aqui.
E, ato contínuo abriu a sanfona e cantou: Vaaaaai, boiadeiro, que o dia já vem… E os dois se abraçaram, trocaram elogios, cantaram juntos, e finalmente se tornaram amigos naquela madrugada.
Jackson, Adelzon, Gonzaga e seus sorrisos de felicidade.