Pra pensar em Itamar

Sérgio Molina é compositor erudito. E popular. E de vanguarda. Eu estava com dificuldade para definir o seu trabalho até descobrir que ele excursionou pela Europa na década de 1990 como co-arranjador, violonista e guitarrista com Tom Zé, além de parceiro dele em várias canções. Aí ficou mais claro: assim como Tom Zé, formado em composição clássica e com uma obra que utiliza livremente elementos de todo lugar, Sérgio transita livremente do popular ao chamado erudito: é músico, e pronto.

É axatamente assim que consigo classificar Sem pensar nem pensar: música, e pronto. Ou mais exatamente, música popular que não se furta a beber na fonte que achar melhor. E, neste caso, música composta a partir de letras de Itamar Assumpção, feitas entre 2002 e 2003, especialmente para que Sérgio as musicasse, e Miriam Maria, uma das Orquideas do Brasil, grupo que acompanhou o Itamar na década de 90, cantasse.

Então, o desafio de Sérgio é potencializar ao máximo a expressividade das letras de Itamar, que, por si só, sempre foram já muito expressivas. Aqui, a maioria delas é sintética, quase que aforismos, frases de efeito, como Itamar gostava e sabia fazer mesmo em letras mais longas. Corria-se o risco de virarem vinhetas, como o próprio Itamar chega a anunciar em Caiu a ficha:

Era tão extensa essa letra
que de repente caiu a ficha:
pelo tema isso não passa de vinheta

Outro risco grande num trabalho desses é o extremo oposto: o de parecer que se atira para todo lado, e o resultado final ser tão variado que não apresente uma unidade musical. As canções de Itamar tinham uma assinatura bem definida de sintaxe, ritmo, um certo humor e um certo balanço que eram unificados na sua voz inconfundível. Sérgio teria certamente que escolher outros caminhos, ou seria apenas um pastiche do Itamar. Mas se escolhesse caminhos demais, poderia também não chegar a lugar nenhum.

Sem pensar nem pensar, então, se equilibra numa linha fina. Sérgio realmente explora as letras até tirar delas todo o sumo possível de expressividade. A ponto de, na escuta, elas parecerem muito maiores do que na realidade são. E também lança mão de diversas técnicas de composição e arranjo, mostrando ser um músico de muitos recursos, mas sem jamais jogar para a plaéia. O Sérgio atira mesmo para todo lado – mas acerta. Se experimentalismo é procurar sempre a saída mais interessante artisticamente dentro de um repertório técnico muito vasto, então este trabalho é muito experimental. Só que, ao contrário de trabalhos experimentais que dão a impressão de dispersão e falta de identidade, este soa coeso. E isto porque nada é gratuito, e sim a serviço das – ou melhor seria dizer uma parceria em pé de igualdade – com as letras.

Ainda assim, a primeira escuta pode confundir, porque o amálgama de ritmos, estilos, métodos de composição é grande. Como se lê no próprio release do trabalho:

As surpresas poéticas que regem a métrica irregularmente ritmada da poesia de Itamar sugerem diferentes processos de atrelação poesia-letra. Alguns são os processos espontâneos comuns à nossa canção, mas há também muita utilização de técnicas conjugadas: ecos de vanguarda paulista (Tatit, Arrigo, etc.), soluções depuradas pela MPB artística e pela música pop tradicional (Caymmi, Beatles, etc.), e arquiteturas sonoras da música escrita, mas sempre tendo como pano de fundo a “vestimenta” da canção popular brasileira. Exemplo: fusões de Ijexá e Maracatu com a divisão rítmica “sambista” de Itamar sobre modos propostos pelo francês Olivier Messiaen nos anos 40. Tudo com muita improvisação e swing característicos da música popular.

Ou seja, Sem pensar nem pensar não é um trabalho para se ouvir distraidamente. Isto porque a quantidade de informações é grande, combinadas e sobrepostas entre si, o que significa que uma primeira escuta pode parecer confusa, pela diversidade de elementos. Mas há um caminho para guiar o ouvinte nesta variedade: Sérgio em nenhum momento descuidou da melodia. Foi mantida uma característica de Itamar, que é de mesclar volta e meia a recitação dos versos com sua entoação cantada – é verdade que Itamar fazia isso mais organicamente, às vezes sendo difícil mesmo saber se cantava ou falava. Mas, se o Sérgio abre o foco para musicar Itamar, também aposta que uma melodia desenhada, mesmo sobre arranjos em contraponto, ou com divisões rítmicas irregulares ou com efeitos inesperados, também pode servir para realçar esta letra, desde que numa compreensão real, de modo a caminharem pari passu

E o resultado, surpreendentemente, é quase sempre assobiável! Se o chão sobre o qual se edifica o álbum é a poética de Itamar, é sobre este fio da melodia que ele se equilibra, na voz muito precisa da Míriam Maria. O timbre de Míriam me lembrou bastante o de Ná Ozzetti, outra cantora paulista e colaboradora de Itamar que sabe muito bem mesclar canto e fala em sua interpretação. Por outro lado, é boa para o trabalho a diferença extrema entre o agudo de Míriam e o grave aveludado de Itamar, porque tanto impede comparações reducionistas quanto abre novas possibilidades interpretativas, sublinhando o fato de que as melodias de Sérgio são realmente uma visão sobre Itamar que não é a visão de Itamar. A Míriam demonstra um entendimento da relação melodia/letra que, com a variedade de soluções encontradas pelo Sérgio, não é fácil para um intérprete.

Ao longo das 16 faixas do álbum, alguns temas retornam, tática antiga para aumentar a unidade do todo, reapresentando temas já ouvidos sob roupagens diferentes. Esta providência tem uma dupla vantagem: permite explorar novas possibilidades sobre as mesmas letras, ao mesmo tempo que aumenta a coesão interna. Isto dá ao álbum ares de conceitual, o que talvez seja um exagero, já que as letras de Itamar falam de vários assuntos. Mas certamente não se trata apenas de um punhado de canções. No fim, fica mesmo a sensação de que é um trabalho experimental: em que se experimenta o quão longe se pode ir a partir de uma poética alheia, expondo-a a novas luzes – o quanto um bom iluminador pode ser um artista da mesma estatura do autor da obra iluminada. Sérgio e Míriam conseguem a proeza de, criando a partir da obra de Itamar, permitir que Itamar seja ouvido alto e claro por sob as várias e interessantíssimas camadas musicais que lhe aplicaram. Dá saudade dele, mas também mata um pouco desta saudade. Arrisco-me a achar que Itamar, de onde está, deve ter gostado.

Nem James Brown

Entendeu, Nereu?

Infinitos sons

Serviço: Sem pensar nem pensar, sítio oficial e My Space

Eu sou da Lira, não posso negar

Lira Paulistana foi o título do último livro de poesia de Mário de Andrade. Foi também o nome de um teatro e centro cultural – e também selo fonográfico – que concentrou as ações de um grupo de artistas que acabou denominado, meio contra a vontade, de Vanguarda Paulista. Tinham linhas de ação bem diferentes entre si – Arrigo Barnabé com forte influência da música erudita contemporânea, grupos Língua de Trapo e Premeditando o Breque usando o humor, Rumo e Itamar Assumpção apostando numa linha mais discursiva, de maneiras diferentes.

Mas uma coisa percebo em comum de alguma maneira em todos estes: a maneira de usarem os clichês (aliás, o Premê em seu primeiro álbum, Quase Lindo, gravou Mascando Clichê) com absoluta propriedade e virando-os pelo avesso. Todos, ou quase todos, sempre tiveram muita consciência do jogo que é a composição musical, sabendo identificar as peças de montagem e brincar de usar as mesmas e as vezes desgastadas peças de maneira diferente, mas sempre lembrando sem nenhuma vergonha o fato de serem peças velhas, o que dá à musica desse pessoal ao mesmo tempo um estranhamento de coisas familiares – como chegar em casa e encontrar o sofá de cabeça para baixo – e uma verve crítica bem humorada, tom que predomina em todos os artistas que citei, seja exacerbando e caricaturando estes clichês…

Carnaval do Geraldo – Rumo

…seja misturando-os, com uma letra-clichê de um gênero e o acompanhamento-clichê de outro.

Pinga com Limão – Premeditando o Breque

Mas este olhar estranhador tem seu preço: o preço da independência, ou, como a imprensa muitas vezes prefere chamar, da marginalidade. Ao criticar, às vezes abertamente, a mídia cultural e suas escolhas massificantes, e preferência da simplificação da obra de arte em troca de uma pretensa universalização de público, eles automaticamente se colocaram – ou foram colocados – à margem desta mídia.

E é exatamente na época do aparecimento desta turma, na virada da década de 80, que esta mídia vai tomar forma e autonomia no sentido de “criar” os artistas que queria veicular, colocando os critérios mercadológicos bem à frente dos artísticos. Um processo que só se reforçou, desde a época em que se tornou obrigatório para qualquer cantor ou grupo de sucesso gravar canções da dupla Michael Sullivan/ Paulo Massadas, e que deixou de lado os trabalhos que não se enquadravam nas diretrizes das grandes gravadoras e rádios. O resultado desta política vemos aí todo dia, tanto esteticamente quanto na decadência deste modelo de empresa.

Itamar Assupção fez uma das críticas mais diretas a este estado de coisas, na música que abre seu último álbum. Nela, há um diagnóstico preciso da questão da indústria cultural e suas imbricações políticas e econômicas:

Cultura Lira Paulistana – Itamar Assumpção

Algumas frases desta letra lapidar fazem uma análise histórica

A ditadura pulou fora da política
E como a dita cuja é craca é crica
Foi grudar bem na cultura
Nova forma de censura

E, realmente, é no regime militar que acontece a estruturação descrita mais acima, o que renderia estudos socioeconômicos dos processos que levaram a isso, incluindo a concentração de poder nas gravadoras. Chico Buarque experimentou este processo quando rompeu contrato com a Phonogram, gravadora que fazia gentilmente as vontades do regime quanto à censura, e assinou contrato com a Ariola, onde gravou seu álbum Almanaque. Pois às vésperas do lançamento do álbum, a gravadora nacional foi comprada… pela Phonogram! O que levou Chico a compor A voz do dono e o dono da voz, gravada nesse disco. No pano de fundo desta história está a concentração de poder nas mãos as gravadoras por interesse econômico e político – nunca cultural.

Mais adiante Itamar faz uma inusitada previsão, ao afirmar que “Onde era Pixinguinha, Elizeth, Macalé e o Zé Kéti ficou Tiririca pura”. Quando lembramos que Tiririca (que á época acabara de surgir na mídia com a pseudocanção Florentina) hoje é candidato a deputado por São Paulo e que deve ser eleito com recorde de votos, percebe-se que a ditadura agora tenta seu caminho de volta: inicialmente política, tornou-se estética e agora volta à política. Depois que a cultura tornou-se mero espetáculo, vivemos hoje também a espetacularização da política. Como tiririca também é o nome de uma erva daninha, fica clara a opinião de Itamar sobre o assunto.

É possível achar a visão de Itamar saudosista demais, ainda mais ao ouvir um “socorro, Elis Regina!”. Mas a força do trabalho de Itamar, morto em 2003 com apenas 53 anos, nega veementemente esta impressão. Seu último trabalho, gravado com Naná Vasconcelos e lançado postumamente em 2004, reforça esta visão otimista no título: Isto vai dar repercussão. A Lira Paulistana, mais do que apenas protestar, imprime a multilateralidade em suas próprias criações. Pois Cultura sabe que existem milhões de outras culturas.

Mais detalhes da história do Chico aqui.

Artigo Vanguarda Paulista: apontamentos para uma crítica musical, de José Adriano Fenerick – aqui.

Canções de Lista e suas listas

O podcast zuim estreou em janeiro deste ano com programas conceituais. Um dos primeiros esmiuçou a música Pra Ninguém (letra aqui, programa com a música aqui), de Caetano Veloso, que consiste em uma lista de títulos de outras canções. O sítio então fez o programa tocando as músicas citadas na letra. Deu tão certo que, mais recentemente, voltaram a usar esta tática com Todas Elas Juntas Num Só Ser, de Lenine e Carlos Rennó. Desta vez a letra quilométrica não coube em um programa só, precisaram de cinco! Daí que fiquei cismando com esse negócio de canção de lista, quando é que funciona e quando fica chato.

E quando é que funciona, quando é que fica chato? Confesso que já tive uma certa implicância com canções de lista, por ter a impressão de que cabia qualquer coisa, que não chegavam a lugar nenhum. Isso até me dar conta de que gostava de algumas sem me dar conta de que se encaixavam nessa categoria. Primeiro então pensei que funciona quando o sujeito sabe onde quer chegar, quando ele tem uma finalidade em mente que direciona a lista. É o caso de Passaredo, de Francis Hime e Chico Buarque, por exemplo. Mas aí lembrei de Diariamente, de Nando Reis, que parece não ter fim e não chegar a lugar nenhum, e mesmo assim se torce para continuar, pela curiosidade do jogo de associações.

Então achei que vale a surpresa da enumeração, indo até o limite do absurdo, como Dos Margaritas, dos Paralamas, ou Por Você, do Barão Vermelho. A surpresa não vem apenas do próximo ítem a ser reconhecido ou não, no caso de uma citação, mas também o estratagema e o contexto para ele ser encaixado na música, à maneira dos sambas-enredos, como em Cinema Novo, de Caetano e Gil, que ambiciona contar toda a história do cinema nacional em quatro minutos! A canção pode saber ou não onde quer chegar, mas tem que curtir o trajeto. Um componente bem humorado sempre ajuda, como em Por que que eu não pensei nisso antes?, de Itamar Assumpção  e Façamos (Vamos Amar), de Cole Porter em versão de Carlos Rennó (parece que este gosta de fazer canções de lista mesmo)   E uma lista pode ser também de sonoridades, mais até que de significados, como em Dançapé, de Mário Gil é Rodolfo Stroeter.

Finalmente, há algo que pode tranformar a mera lista em algo maior: é quando o compositor sabe usar a propriedade de acumulação de tensão inerente à repetição de uma fórmula, juntando-a a um acompanhamento crescente, a uma intensificação instrumental ou de interpretação, e assim empolgar, emocionar. Milton Nascimento faz isto  magistralmente em A de Ó (Estamos Chegando), em parceria com Pedro Tierra e Dom Pedro Casaldáliga. Francis e Chico (de novo) também o fazem em E Se…

E nesta brincadeira, acabei fazendo, a meu modo, um podcast também, uma lista de canções de lista. Então, à maneira do zuim, que aceita listas enviadas pelos ouvintes para fazer os próximos programas, aceito também sugestões de canções de lista interessantes. Com link para ouvir então, melhor ainda.

PS. No link de Dançapé, o sítio dá várias versões da música para escolher. Recomendo a penúltima da lista, de Mônica Salmaso.