Discoteca Brasílica – Banana, Chiclete com

Primeira possibilidade de início do texto: Gordurinha fez as músicas, Jackson levou a fama. Waldeck Artur de Macedo ganhou este apelido estranho como ironia por sua magreza, e ao fazer sucesso com músicas bem humoradas, ficou com fama de compositor/humorista, o que só prejudicou. Não que o Jackson não fosse compositor também. Mas foi sua performance que o eternizou, fundada numa escolha de repertório tão perfeita que parecia às vezes ser toda de um autor, enquanto Gordurinha permanece ainda hoje à sua sombra.

Segunda possibilidade de início do texto: A década ente 1959 e 1969 foi a mais crucial da história da música popular brasileira. Nela, entre debates, embates, movimentos e festivais, definiram-se as fronteiras daquilo que se convencionou chamar pela sigla emblemática de MPB – fronteiras que a partir daí não cessaram nunca de se alargarem, mas sempre concentricamente em torno de suas fundações originais. Fundações firmadas sobre a questão fundamental do que era o popular, e o que era do Brasil.

Seguindo com a primeira possibilidade: Gordurinha não foi levado a sério em vida como deveria, em boa parte por preconceito com sua condição de nordestino.  Não era apenas autor de músicas engraçadas – Luiz Gonzaga confessava sua inveja por não ser autor da Súplica Cearence -, mas mesmo quando usava de graça, era ferino e sabia ser bem direto – até para reagir a este preconceito. Não é à toa que um de seus baiões tem como título Baiano burro nasce morto, e em outro ele tenha saído com estas afirmações tremendas de orgulho e altivez:

Vim da Bahia pro Rio de Janeiro
Pra ganhar dinheiro
Desaforo não

Pau de arara é a vovozinha
Eu só viajo é de avião

Continuação da segunda possibilidade: inúmeros dilemas foram enfrentados na década 59/69, e nenhum resume completamente as dificuldades de construção de algo que refletisse as mudanças do Brasil neste período. nacionalismo versus universalismo, conteudismo versus vanguardismo, forma versus conteúdo, engajamento versus alienação, são algumas das possibilidades enumeradas por Marcos Napolitano (no livro Seguindo a Canção, de que já falei aqui), ressaltando que os lados aparentemente opostos destas dicotomias na verdade se misturavam e confundiam. Afinal, ele se fixa em Caetano Veloso e Edu Lobo como exemplos delimitadores: o compositor como antena da cultura ou artesão da nacionalidade?

E agora juntando as duas possibilidades: em Chiclete com Banana o que Gordurinha faz é deixar para trás este debate antes mesmo de ele começar. A gravação de Jackson é exatamente de 1959, enquanto a Bossa Nova gestava a estilização do samba tradicional nos apartamentos da Zona Sul carioca.

A gravação de Jackson… é puro Jackson. Samba na acepção ampla de Jackson, o samba que se espalhou pelo Brasil sob diferentes denominações influenciando manifestações culturais várias e sendo por sua vez modificado por elas, adquirindo sotaques e malemolências diversas. Para Jackson, samba é, entre outras coisas, coco. E coco é samba. Jackson mistura o bom humor e a ironia da canção à sua própria, como quem bate um papo ou conta um caso, ao mesmo tempo que quebra tudo no rítmo.

Salto para 1972. Gilberto Gil regrava Chiclete com Banana em seu álbum Expresso 2222. Formação instrumental: violão, guitarra, baixo, piano e celesta, bateria e percussão.

As contraposição das duas gravações parece, à primeira vista, estabelecer um panorama antes / depois da tremenda discussão da formação da MPB, via Bossa Nova e Tropicalismo. O que Gil faz é trazer para o arranjo e a interpretação tudo o que a letra diz no futuro, explicitando o fato consumado: a profecia se realizou. Gil faz scat singing sobre um arranjo que mistura cuidadosamente – e de forma nem tão natural – o samba e o jazz, mais até do que o rock e o boogie-woogie citados na letra, e após a exposição da primeira vez, canta as repetições da letra com melodias totalmente diferentes, como explorando o tema, à maneira dos cantores de jazz. Por outro lado, o baixista original, o americano radicado no Brasil Bruce Henry, não conseguiu fazer a levada de samba de que Gil precisava, e quem tocou o baixo na faixa foi Lanny Gordin (que é nascido na China, de pai russo e mãe polonesa, mas foi criado no Brasil, ao contrário de Bruce, criado na Espanha até os 16 anos).

Mas todo o álbum Expresso 2222 tem a marca desta mistura. Gil havia acabado de chegar do exílio em Londres, com a cabeça cheia de rock inglês, mas também cheio de saudades de casa. O álbum é um reencontro, um retorno do filho pródigo – mas o filho pródigo não voltará a ser como era antes de sair. Sintomas: Cada macaco no seu galho, do Riachão, que ele regravou com o Caetano anos depois no Tropicália 2, é gravado como se fosse uma faixa do Exile on Main Street, dos Rolling Stones! A faixa se contradiz internamente de propósito, como se adotasse o discurso-chave do Chacrinha: “eu não vim para explicar, eu vim para confundir” (Caetano faria coisa parecida no álbum Araçá Azul, ao gravar Eu quero essa mulher assim mesmo com guitarras desvairadas).

Já a abertura do álbum é com a Banda de Pífaros de Caruaru, tocando a também gravada por Caetano (e com letra dele) Pipoca Moderna. O espírito do retorno é explicitado: música regional tornada de vanguarda, no rítmo de complexas subdivisões de compasso. Pipoca Moderna e Chiclete com Banana são geminadas em Expresso 2222, a começar pelos títulos – mesma direção, sentidos inversos: de lá para cá, de cá para lá. Gil diz sobre seu retorno:

Eu já voltei pós-rock! (risos) A visão, a cultura e a informação eram pós-rock. Era Paralamas já! (risos) Já era Paralamas, já era Titãs, já era um rock voltado para as raízes e para os interesses locais e para as músicas de traço local.

Gilberto Gil foi exilado pela ditadura militar em 1968, no bojo dos acontecimentos ligados ao endurecimento do regime, que interromperam bruscamente muitos dos debates sobre o desenvolvimento da música brasileira ao imporem outra pauta mais urgente. Ao voltar, em 72, de certa forma estes debates se tornam fato consumado, e não é mais possível fazer as divisões entre os que aceitam ou não influência estrangeira, entre nacionalistas e entreguistas, etc. No entanto, não deixa de ser impressionante que Gil vá buscar num compositor anterior a toda esta discussão a constatação da resposta que só o tempo pode dar.

Em Chiclete com banana, Gordurinha exibe sua dialética: reconhecendo que o povo dominado influencia e modifica o dominador – como as línguas latinas vieram do latim, mas não são o latim – e sobreviveram ao Império Romano e tornaram-se dominadoras mais tarde; como o samba invasor do Sudeste e da Bahia se espalhou pelo Brasil, sofrendo por suas vez modificações, criando variantes a ponto de permitirem o surgimento de um Jackson do Pandeiro, artista maduro em sua arte que mistura homogeneamente todas estas influências; e como a mesma história estava a ponto de começar a se repetir em 1959, e continua a se repetir hoje, com o funk, com a música eletrônica; como a MPB, forjada sem este nome desde bem antes, continua a ampliar suas fronteiras, independente dos que sempre surgem para agourar uma suposta descaracterização – na verdade uma contínua recaracterização. O compositor como antena da cultura e também artesão da nacionalidade. Gordurinha explica, e Gil amplifica, que esta dicotomia é falsa, pois um papel do compositor alimenta o outro, em mútua dependência. Não apenas chiclete, não apenas banana. Muitos outros sabores.

Brinde: várias entrevistas do Gil sobre sua relação com o rock, antes, durante e depois do exílio.

Espanto, calamidade e milagre – Duas canções piedosas

A psicanalista Maria Rita Kehl dedica-se a pensar o mundo a partir de sua especialidade – como deve fazer todo intelectual, aliás – e o faz de forma brilhante há muito tempo. Até dia 2/10, mantinha uma coluna no jornal O Estado de São Paulo. Foi demitida sumariamente por contrariar em um artigo a decisão do jornal de favorecer a candidatura de José Serra à presidência, mesmo elogiando a decisão do Estadão de revelar publicamente sua preferência, coisa que outros jornais e revistas preferiram fazer sub-repticiamente. Este é o uso que nossos jornais fazem da tão defendida Liberdade de Imprensa.

Mas o que trago aqui é um artigo de 2006, em que ela trata de música e sua relação com a realidade brasileira. Muitos outros artigos sobre diversos assuntos podem ser encontrados em seu site pessoal, de onde nenhum jornal tendencioso pode despedi-la. O artigo é longo, mas excepcional na profundidade de seu diagnóstico. Publico-o em duas partes. Eis a primeira.

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Tem certas coisas no mundo/ Que eu olho e fico surpreso: Uma nuvem carregada/ Se sustentar com seu peso E dentro de um bolo d’água/ Sair um corisco aceso! (Manoel Chudu)

Para o nordestino do sertão, a chegada da chuva é sempre recebida com espanto. Quando os céus mandam a chuva exata, milagre é ver o chão fecundado e o verde que brota do solo seco da noite para o dia; quando exageram, a chuva é calamidade, água em excesso que o chão empedernido não consegue absorver e alaga as terras, os pastos, as casas. Mas por que o espanto? Por que espantar-se com o regime irregular das chuvas em uma região danificada pela exploração feroz e irresponsável da terra, praticada desde os tempos da colônia, que transformou quase toda a caatinga em deserto?

A chuva parece milagrosa porque representa a renovação da vida em regiões sempre ameaçadas pela morte dita “natural” que a seca traz; parece milagrosa porque é imprevisível; mas sobretudo, porque os agricultores pobres não dispõem de nenhuma medida protetora contra a falta de chuvas. As roças e os animais podem vingar ou morrer longe dos açudes, sem poços artesianos, sem recursos para a irrigação. Um amigo pernambucano me contou que, nos primeiros anos depois que se mudou para o Recife, o pai telefonava a cada novo inverno para anunciar, encantado: “ouça, meu filho, começou a chover!” – e colocava o telefone à janela para que o filho escutasse o gemido manso dos primeiros pingos de chuva ou o clamor da tempestade. O espantoso, a meu ver, não é que chova demais, ou deixe de chover durante meses a fio. A alegria e a esperança trazidas pelas primeiras chuvas que chegam (quando chegam) para trazer vida ao sertão não impedem que nos espantemos com o fato de que o destino do pequeno agricultor que tenta sobreviver de seu trabalho naquelas paragens ainda esteja, literalmente, nas mãos de Deus.

Sigo a indicação de Heloísa Starling e Bruno Martins , para quem “é próprio do compositor popular brasileiro o esforço de inventar ou reinventar tradições”. Na música sertaneja do nordeste, é o tema da seca que está no centro da tradição. A chuva não é tema tão freqüente no imaginário do sertão; a seca, fonte de angústia, desespero, desamparo e desterro, exige permanente simbolização. Da música de Luiz Gonzaga à poesia de João Cabral, das gravuras de Jota Borges à obra de Graciliano Ramos, de Glauber Rocha a Lírio Ferreira e outros cineastas jovens que descobriram o sertão nordestino como cenário ainda inexplorado de uma nova épica brasileira, a seca povoa o imaginário e exige elaboração, respostas estéticas, imagens, pensamento. Mas a chuva é o par antitético da seca e assim como ela, também é encarada como expressão de uma natureza tirana ante a qual o homem nada pode. Também ela, quando vem em excesso, pode ser recebida pelo pequeno agricultor como uma calamidade. No que toca o tema deste seminário, a fantasia de um “milagre” (ou de um castigo, como veremos) com a chegada da chuva remete, tanto quanto a seca, ao desamparo das populações sertanejas, que se consolam invocando as bênçãos de Deus ao se perceberem abandonados por sucessivos governos federais e regionais. Se a água depende das razões insondáveis do “céu”, as políticas de irrigação, represamento de açudes ou escavação de poços, a liberação de recursos para fertilização e conservação do solo viriam – ou então deixam de vir – dos poderes terrenos. A forte religiosidade das populações do campo no Brasil, mais do que alimentar esperanças, tem tido o papel tradicional de promover, em sucessivas gerações, o conformismo e a resignação.

Duas canções piedosas

Eu também to do lado de Jesus/ só que acho que ele se esqueceu/ de dizer que na terra a gente tem/ que arranjar um jeitinho pra viver. (Procissão, de Gilberto Gil)

A produção musical e poética do nordeste em torno dos temas da seca e da chuva não diz respeito tanto à posse da terra quanto ao abandono da região. A voz poética que se pronuncia através dessas canções parece sempre a de um pequeno agricultor que lamenta sua terra seca, seu gado magro, sua plantação ressequida. As canções tecem a fantasia de um sertanejo forte, combatente de sua sobrevivência, que resiste enquanto pode: “só deixo meu Cariri, no último pau de arara ”. Esta imagem, no entanto, não é incompatível com a do retirante derrotado que, ao ver a terra ardente, tem que deixar seu amor e sua terra para trás: “entonce eu disse/ adeus Rosinha/ guarda contigo/ meu coração ”.

Quer se trate da resistência passiva do personagem que não abandona a terra e espera o fim da seca até o limite de suas forças, quer se trate do retirante derrotado e melancólico que vem tentar a sorte no sul, o tom emocional dessas canções inspiradas no drama da seca é de desencanto e fatalismo. Para Walter Benjamin o fatalismo, que está na origem das disposições melancólicas, revela a identificação afetiva dos derrotados com o ponto de vista dos vencedores da história. Mais do que o efeito alienante da ideologia, a adesão afetiva aos vencedores produz, para Benjamin, a acedia, que consiste na falta de vontade e na indolência do coração, somadas ao conjunto de afetos tristes que compõem o quadro da melancolia. Interpretar o flagelo da seca como castigo divino e a chegada das chuvas como sinal da benevolência de Deus ou da intervenção de um santo protetor são duas faces da mesma disposição fatalista. O sertanejo que se percebe como vítima passiva de uma vontade superior está, inconscientemente, dando razão aos vencedores históricos na luta pela terra, na disputa por verbas públicas, no manejo do poder político e dos benefícios dele advindos. A adesão afetiva aos vencedores, no interior do Brasil, desloca o foco do problema contra o qual o homem da terra investe suas últimas forças. Diante dos mistérios insondáveis da natureza, ou da vontade de Deus, o homem enquanto sujeito da ação política torna-se supérfluo; resta ao suplicante humilde pedir a benção de seu “padrinho” Cícero e invocar a proteção de um Deus inclemente que tanto pode se comover com suas orações quanto castigá-lo por ousar pedir demais. Vejam a letra deste pungente choro-canção de autoria Nelinho e Gordurinha.

Súplica Cearense

Oh Deus, perdoa esse pobre coitado
Que de joelhos rezou um bocado
Pedindo pra chuva cair sem parar.
Oh Deus, será que o Senhor se zangou
E só por isso o sol arretirou
Fazendo cair toda chuva que há.

Meu Deus, eu pedi para o sol se esconder um tiquinho
Pedi pra chover, pra chover de mansinho
Pra ver se nascia uma planta no chão.
Meu Deus, se eu não rezei direito o Senhor me perdoe
Pois eu acho que a culpa foi
Desse pobre que não sabe fazer oração.

Senhor, desculpe eu encher os meus olhos de água
E pedir todo cheio de mágoa
Pro sol inclemente se arretirar.
Desculpe, eu pedi a toda hora pra chegar o inverno
Desculpe eu pedir pra acabar com o inferno
Que sempre queimou o meu Ceará.

Com Luiz Gonzaga

Com O Rappa

O Deus cruel de Súplica Cearense teria enviado a cheia para castigar o pobre sertanejo que, na sua excessiva humildade, passou todo o verão rezando e a seguir, diante das enchentes do inverno, acusa-se por não saber rezar direito. O que temos aqui, nessa canção tão pungente: uma voz irônica ou o esboço psicológico de um sujeito da enunciação masoquista? Gordurinha, nascido na cidade de Salvador e não no sertão, talvez tenha sido sarcástico ao criar um personagem tão humilde – ou um Deus tão vingativo. A voz poética de Súplica Cearense pede perdão por ter implorado para que Deus apressasse a chegada do inverno: este, enfurecido, mandou “cair toda a chuva que há”. Mas mesmo em seu desespero o personagem criado por Gordurinha não abre mão do terno sentimento de posse que liga o sertanejo ao solo onde nasceu: é “seu”, o Ceará queimado pelo inferno enviado por Deus. O Ceará lhe pertence de coração; por afeto, não por direito. O inferno não se confunde com seu amado sertão calcinado. Meu Cariri, meu Cobocó, meu Ceará, meu boi, meu sertão: retirar-se, forçado, da terra onde nasceu, abandonar um amor ou um pequeno pedaço de chão tornado estéril pela inclemência do clima e pela falta de cuidados, tudo isso faz com que o imaginário sertanejo conserve, como bem notaram Starlig e colaboradores ao comentar a música popular brasileira em geral, “uma profunda nostalgia da roça ”. A literatura de cordel é abundante em referências à nostalgia que o retirante guarda de sua terra natal, da qual saiu para trabalhar no Sudeste, deixando a família para trás. Como neste A carta do sertanejo – rimada por um caipira, de Antonio Teodoro dos Santos : “Puluquera olhe lá, ouça bem tudo o qu’eu falo: si ainda não chuveu/ tudo aí tem só o talo;/ venda o jumento pasto/ e se arrume c’o cavalo!…”

“Puluquera” é o nome da esposa do sertanejo que escreve do interior de São Paulo, saudoso: “Quando eu durmo vocêis tudo/ na minha cabeça passa…”.

Nesta pequena narrativa versejada, a chuva também não foi solução para o flagelo vivido pela família do narrador. “Arricibi sua carta/ a qual passo a respondê:/ aqui agora chuveu/ mas não tem o que come/ pois o corgo do Mocó/ matou até zabelê./ Carregou toda mandioca/ encheu a baxa da Chica/ o fumo ajuntou mosquito/ o arroz deu tiririca; / os tumate do Vicente/ tão inchado chega isticá”.

Estas são as notícias escritas na carta da esposa, e que o narrador reproduz para que o leitor compreenda que a chegada da chuva trouxe ainda mais miséria para a região de onde ele saiu.

Por conta da nostalgia e da separação forçada, o sertão imaginário fica sempre preservado, em potencial, como o paraíso que poderia ter sido, intocado na saudade e na idealização de seus cantores. Sob a terra ardente, sob o Cariri onde não chove no chão, sob o inferno que sempre queimou o Ceará, se esconde a fantasia de um outro sertão: “pois se chover dá de tudo/ fartura tem de porção”. Sob esta cobertura de fantasia restam, recalcados, todos os caminhos terrenos, todas as forças humanas e os projetos políticos que poderiam conduzir à realização deste sertão utópico . A dimensão transformadora do homem está completamente fora do horizonte poético de Súplica Cearense.

A crença firme em um sertão idílico que parece pronto a brotar pelo avesso da mesma terra infernal impede que o nordestino se desespere, em seu exílio compulsório. Mas impede também que ele trabalhe para transformar, efetivamente, as condições de sua vida. No imaginário desse cancioneiro, o sertanejo é um sujeito que está sempre prestes a se retirar, no instante-limite em que a vida se torna impossível; depois, em seu desterro compulsório, não vê a hora de voltar para uma natureza que, depois da chuva, voltará a se apresentar generosa, benfazeja.

Este é o sentimento que está presente no alegre baião cuja letra apresento a seguir.

A volta da asa branca
(Zé Dantas e Luiz Gonzaga)

Já faz três noites que pro norte relampeia
E a asa branca, ouvindo o ronco do trovão
Já bateu asas e voltou pro meu sertão
Ai, ai, eu vou-me embora, vou cuidar da plantação.

A seca fez eu desertar da minha terra
Mas felizmente Deus agora se alembrou
De mandar água pra esse sertão sofredor
Sertão das muié séria, dos home trabalhador.

Rios correndo, as cachoeiras tão zoando
Terra molhada, mato verde, que riqueza
E a asa branca à tarde canta, que beleza,
Ai ai o povo alegre, mais alegre é a natureza.

Sentindo a chuva me recordo de Rosinha
A linda flor do meu sertão pernambucano
E se a safra não atrapalhar meus planos
Que que há, ó seu vigário, vou casar no fim do ano!

Com Luiz Gonzaga

Neste baião contagiante, Deus afinal se lembrou do sertão onde as mulheres são sérias (como Ele gosta) e os homens, trabalhadores. Mas de nada adianta a disposição ao trabalho dos homens e a seriedade piedosa das mulheres, na terra castigada pela seca. Por isso o trabalhador de A volta da asa branca “deserta” de sua terra até que a chuva volte. Esta chuva de Gonzaga não é calamidade, não é enchente: é alegria. Em 1947, o poeta invoca e celebra um sertão que hoje já não há mais: rios correndo, mato verde, uma beleza. Maior que a alegria do povo é a que emana da natureza. É esta que lhe permite, afinal, romper com o fatalismo melancólico e fazer planos, mesmo que sejam apenas no âmbito da vida privada: casar no fim do ano com a mais linda flor do sertão pernambucano.

A tonalidade afetiva de A volta da asa branca não é melancólica: a sorte abençoou o sertão, tudo canta, tudo sorri. Mas as condições da melancolia estão presentes na estrutura da canção, pois só a sorte, ou a bondade divina, beneficiaram a vida daquele que agora pode tomar seu destino nas mãos. Precariamente – “se a safra não atrapalhar meus planos”… Ou até a próxima seca atingir a terra que o cantor, carinhosamente, também chama de sua (“a seca fez eu debandar da minha terra”…). Até que a próxima seca volte a destruir tudo o que foi arduamente conquistado.