Em sua autobiografia Rita Lee comenta suscintamente sobre o álbum Tropicália ou Panis et Circencis, mas sem deixar de lhe dar a devida importância:
O disco Tropicália foi minha definitiva desvirginada na neo-MPB – Música Planetária Brasileira. Farra boa quando a gangue se encontrava para escolher quem gravaria o quê. A genial foto da capa foi apenas uma amostra da nossa audácia.
E a este se segue o primeiro álbum da banda, sobre o qual ela conta:
Na cola dos baianos, o destino dos Mutas ganhava novos desafios. Surgiu o convite da gravadora Philips para um primeiro LP solo. Pernas pra que te quero, bora buscar repertório. Gil e Caetano deram o mapa de como fazer letra e música em português, além de nos presentearem com Panis et circences, cuja composição em apenas 15 minutos eu, deslumbrada, testemunhei.
Já Caetano Veloso dedica um grande capítulo de seu Verdade Tropical ao álbum Tropicália ou Panis et circences, e se fala pouco sobre a canção, dedica um bocado de texto a seu erro de latim na escolha do título, e o significado deste erro.
Eu tinha feito e dado para Gil musicar uma letra a que pus o nome de Panis et circencis. Pensei em usar isso como subtítulo do disco que se chamaria – assumindo o título usurpado pela canção à obra de Oiticica como nome geral do movimento (mas, naturalmente, rejeitando o ismo) Tropicália. Não fui verificar (àquela altura nem saberia onde) se a expressão panis et circencis estava na forma latina correta. (…) (Na verdade, a forma em que a expressão se fez famosa é panis et circences, esta última palavra sendo um adjetivo que, no plural, substantiva-se no significado de coisas de circo). Afinal, em meio à iconoclastia tropicalista, a reverência às letras clássicas era a última das exigências a ocorrer a alguém. Mas o reconhecimento íntimo de que a intenção seria a de sobrepor à colagem pop de uma letra de música banal – e agora de um disco de canções pop – uma citação latina (ademais muitíssimo conhecida) cuja correção deveria contribuir para o efeito de contraste, empresta uma dimensão de atroz ridículo ao momento de reflexão devotado à questão. Havia, no entanto, orgulho nesse desleixo. (…) Eu me identificava com essa exibição de desprendimento intelectual. (…) Tropicália ou Panis et circencis (o mau latim – que Décio Pignatari, nos anos 70, já chamava de delicioso provincianismo de vanguarda – agora soa cheio de charme histórico), nosso disco-manifesto, saiu em 68 (…)
Quando o disco ficou pronto, eu exultava com o êxito conceitual, mas o que me parecia um relativo avanço técnico soava como um retrocesso aos ouvidos de Gil. De todo modo, para Zé Agrippino, apenas a faixa dos Mutantes (o tratamento que eles deram à minha parceria com Gil Panis et circencis) saia do limbo do subdesenvolvimento.
Do modo como Caetano se refere a ela, é fácil deduzir que ele considera Panis et circences uma obra menor. Panis et Circences é uma canção feita para preencher um espaço num álbum coletivo que se afigurava a partira da pretensão de Caetano Veloso de fazer um manifesto do movimento insurgente que ele e Gil estabeleciam. É, no entanto, uma canção nascida menor na comparação com outras decisivas neste movimento como Alegria, alegria e Domingo no parque. No entanto, se alguma canção está no lugar certo e na hora certa, é esta. É curioso como uma canção considerada menor por um de seus próprios autores (e provavelmente também por Gil, que só voltou a apresentá-la em shows quase 45 anos depois, em seu Concerto de cordas e máquinas de ritmo) esteja posicionada estrategicamente em dois marcos da música brasileira: como subtítulo do álbum Tropicália e abrindo o primeiro álbum dos Mutantes. Difícil acreditar que o que tenha levado até aí seja o mero acaso e não suas qualidades. No mínimo, trata-se de uma canção que dizia o que precisava ser dito naquele momento. Porém, obra menor que seja, datada ela está muito longe de estar.
Estruturalmente, é mesmo uma canção simples. Sua melodia é singela, uma ascendente que escala o acorde da harmonia triádica para repousar instavelmente na nona, mergulhar e ascender novamente, sucessivamente – a parte dois é basicamente uma variação suavizada deste tema. Traz mesmo em si o espírito de ter sido feita em 15 minutos, em que pese a enorme fluência de Gil para criar melodias. A letra também tem este espírito, escrita à base de associações livres e descrevendo ações de liberdade – panos, leões e tigres soltos, plantas crescendo e buscando o sol, mesmo o assassinato do amor como uma libertação -, e a liberdade destas associações serve de contraste com a imagem das pessoas na sala de jantar. Se esta imagem domina a canção, o seu contraste é o que a estrutura esteticamente, permitindo toda a liberdade literária das estrofes, com a amarra segura dos versos finais. Paradoxalmente, são estes versos que, ancorando as estrofes, dão coesão à composição.
Mas é útil ouvir a gravação dos Mutantes antes de prosseguirmos.
Nem o álbum Tropicália nem o dos Mutantes, ambos de 1968, trazem créditos de músicos, embora evidentemente saiba-se que arranjo de Panis et Circences (usarei esta grafia, preferida pelos autores e por Rita) é de Rogério Duprat e que os integrantes do grupo se encarregam da maior parte da instrumentação. A versão do álbum dos Mutantes (que traria também do Tropicália as canções Batmacumba e Baby, estas em versões diferentes por terem sido gravadas por outras pessoas no álbum) é aproveitada quase ipse literis, com pouquíssimas diferenças, sendo a mais notável a inserção, como abertura, do prefixo do Repórter Esso, o consagrado programa jornalístico do rádio (correspondente nos dias atuais a usar o prefixo do Jornal Nacional ou do Plantão da Globo), cortado abruptamente para entrada do arranjo original. Como Panis et circences é a primeira faixa, a salva de metais característica do informativo serve como introdução também do álbum e da própria banda, anunciando sua chegada com pompa e alarde. Porém, o corte no meio da cadência e sua substituição pelo andamento mais lento da introdução original como que desmoralizam esta pompa. Este recurso do corte sonoro inesperado, usado de forma algo humorística, se repetirá em outras canções dos Mutantes e nesta própria mais adiante.
O andamento escolhido pelos Mutantes para sua gravação, de um andante marcado, imprime um tom entre o majestoso e o jocoso à canção, acrescido do arranjo de Rogério Duprat com os metais graves marcando o contratempo como passos pesados e desajeitados. Tudo neste arranjo, desde o trompete épico à maneira de Penny Lane dos Beatles (provável influência para os autores), à flauta quase primaveril da segunda parte, têm implícito algo de zombeteiro à linguagem que apresentam.
Panis et circences não tem propriamente um refrão, e sim um formato AAB, mas com a particularidade de que tanto as duas estrofes A quanto a B terminam nos mesmos versos: Mas as pessoas da sala de jantar / estão ocupadas em nascer / e morrer. Para além do contraste já mencionado acima, um elemento a mais foi introduzido na gravação dos Mutantes, sem que se saiba se já fazia parte da composição de Caetano e Gil: a repetição da primeira frase. As pessoas da sala de jantar / são as pessoas da sala de jantar. Este proto-refrão passa a ter a duplicata da mesma expressão no sujeito e no complemento, igualando as pessoas da sala de jantar a elas mesmas, trazendo implícito o tom idiomático de um sinal de desânimo com o que elas são, algo típico do português coloquial e quase impossível de traduzir em outros termos.
Em vários aspectos de sua gravação, os Mutantes dizem mata onde Caetano e Gil dizem esfola, reforçando até extremos em termos sonoros o que é sugerido pela composição. Este é um dos casos em que isto se dá: Se nas primeiras duas estrofes (partes A) eles executam os versos finais como (provavelmente) foram compostos, sem repetições, na terceira vez (a parte B), os mesmos versos são entoados quatro vezes, numa reiteração circular que se aproxima perigosamente de perder o sentido, como se a autossuficiência de ser as pessoas da sala de jantar bastasse por si, numa espécie de carteirada existencial.
A extensão da estrofe pela repetição do penúltimo verso, como se sua estrutura fosse modular, prepara o ouvinte para a passagem seguinte. Após um efeito de estúdio em que a velocidade da gravação é diminuída até parar, como se tudo se derretesse (os equipamentos, foram efetivamente desligados), o verso-chave da canção passa a ser repetido com uma melodia mais linear, acelerando contínua e desvairadamente. São 10 repetições tautológicas até na décima primeira passar-se a um aaaaaaaah que pode ser de mergulho na alucinação ou no desespero, e que é – novamente – cortado de supetão para a entrada em cena dos próprios protagonistas destes versos, não mais musicalmente, mas em som ambiente.
Pois deste corte caímos em plena sala de jantar e sua ambiência sonora completa – mastigações, tilintar de copos e talheres, pequenas falas de obviedades e, ao fundo, Danúbio Azul, de Strauss, provavelmente a mais conhecida valsa da história e trilha sonora dos salões mais cafonas, símbolo supremo do kitsch. Interessante notar que esta mesma valsa seria usada – e recuperada em sua beleza original – por Stanley Kubrick em seu filme 2001 – Uma Odisseia no Espaço, também de 1968 e que serviria por sua vez como inspiração parcial para a canção 2001, de Tom Zé e Rita Lee, que seria gravada pelos Mutantes em seu álbum seguinte e inclusive parodiaria outra peça usada por Kubrick em seu filme – mas agora a nada kitsch Lux Aeterna, de György Ligeti (analiso esta canção em outro artigo deste blog).
O recurso de simplesmente interromper a música para a inserção dos sons que são, em última instância ou em espírito, descritos pela canção, é outro dos estratagemas usados amiúde pelos Mutantes, e que tanto pode ser interpretado como uma incursão na música de vanguarda quanto uma literalização que, afinal, corre o risco de suplantar e dispensar a linguagem musical. Também não seria a última vez em que recorreriam a este artifício: sua gravação de Chão de Estrelas, o clássico seresteiro, traria para dentro da gravação tiros, helicópteros, sons circences, escorregões e muito mais, espinafrando com a canção até desmoralizá-la. Porém, se em Chão de Estrelas estas sonoplastias são sobrepostas ao arranjo, aqui o arranjo desaparece, e o que há é só e somente só a sala de jantar, sem mais nada. Estamos entre o arrojo absoluto e a obviedade absoluta. Os Mutantes, em sua primeira gravação, vão ao extremo da linguagem musical até a deixarem de lado, ou para trás.
Já o grupo vocal Boca Livre, ao regravar Panis et circences em 1983, tomou caminho radicalmente diferente.
Panis et circences também abre o quarto álbum do Boca Livre, mas as coincidências param por aqui. O contraste entre estas duas visões de uma mesma composição é tão gigantesco que custa crer que seja a mesma. Tudo que para os Mutantes era ácido, para o Boca Livre é delicado. Tudo que ia ao limite da música para aqueles, para estes é estritamente musical e se basta. O arranjo de Maurício Maestro (outra vez a ficha técnica é escassa, mas sem dúvida ele toca o baixo, Lourenço Baeta faz o solo de flauta e provavelmente David Tygel uma viola caipira ou violão) é regular como um relógio, impressão reforçada pelos numerosos staccatos em diversos instrumentos, dos violões e baixo às cordas. Quiçá emulando o tique-taque do relógio da sala de jantar, como um símbolo do tempo passando inutilmente e se esvaindo em vão para estas pessoas ocupadas em nascer e morrer… regularidade que chega ao ponto de dispensar as repetições do proto-refrão que são uma das marcas da primeira gravação. Em vez disso, na do Boca o verso é sempre cantado duas vezes, em todas as suas aparições, inclusive na última, em que parece suplicar para ser bisado e bisado…
Entretanto, a maior diferença entre estas duas visões da mesma canção, e que possivelmente é a determinante de todas as demais decisões tomadas por estes dois grupos de músicos, é a de qual é o eu lírico da canção. Pois, se o Boca Livre assume o ponto de vista objetivo, do narrador da letra em primeira pessoa que se apresenta logo no primeiro verso em oposição às pessoas na sala de jantar, os Mutantes escolhem o caminho mais sinuoso e subjetivo, e, ao criarem uma interpretação que reforça a cada passo o que é dito na letra, embora refiram-se às pessoas na sala de jantar na terceira pessoa (como está na letra, afinal), cantam assumindo em boa parte suas personas, de forma totalmente contraditória – e no entanto esta contradição enriquece a canção por seu próprio caráter. Se o registro interpretativo do Boca Livre é o de alguém que recusa-se a compactuar com elas, o dos Mutantes parece ser, desde o arrastado da introdução até o derretimento sonoro do efeito já descrito, o de alguém que até tenta escapar mentalmente da mesmice, da mediocridade, mas é puxado de volta para ela por seus pares, por seu ambiente, por algo de que não consegue escapar.
Desta diferença é possível derivar todas as características de uma e outra gravação. A dos Mutantes é uma montagem de estúdio cheia de artificialidades; a do Boca Livre é de músicos tocando junto. A atmosfera da gravação dos Mutantes é sufocante, dentro da sala de jantar possivelmente esfumaçada; a do Boca é uma atmosfera de ao ar livre, até otimista, de quem dá graças a Deus por não estar preso na sala de jantar. E o ápice da versão dos Mutantes se dá justamente quando a canção é abandonada e, não tendo mais as amarras da letra, eles assumem totalmente o discurso das pessoas da sala de jantar (Passa o sal, por favor), tornam-se elas – e não quase vestígio da paródia, do exagero que caracteriza investidas posteriores do grupo. O que há é o som ambiente de um jantar, nada menos. Neste momento os Mutantes efetivamente mutam, assumem a persona dos retratados pela canção, e ao fazerem isto, o eu lírico descrito por eles submerge na pequenez de que não conseguiu escapar, a canção é derrotada pelas pessoas da sala de jantar, e esta derrota é aquilo que leva a mensagem da canção até o ouvinte.
Enquanto isso, na versão do Boca Livre, a canção é a grande vitoriosa. Até porque, sem utilizar artifícios que não sejam estritamente musicais, o grupo cuida de apresentar a canção e permitir que ela fale por si. Pode-se dizer que os Mutantes reforçam à exaustão o que a canção diz, mas não necessariamente a própria canção, enquanto o Boca Livre reforça a canção, e assim também reforça o que ela diz. A versão do Boca Livre pode ser tida, em uma primeira instância, como conservadora, e certamente o caminho escolhido por ela é menos surpreendente que o dos Mutantes ao seguir em linha reta o que a composição indicava. Mas sua busca de expressividade consegue resultados igualmente excepcionais.
Em certo sentido, os Mutantes, apesar de terem ficado deslumbrados ao assistirem o processo de feitura da canção, a consideraram insuficiente para dizer por si o que tinha para dizer, e por isso a abarrotaram de efeitos, repetições e interrupções até chegarem a anulá-la e substitui-la pelo figurativismo puro, ao passo que o Boca Livre preferiu confiar nela e investiu em sua estrutura, em seus elementos constituintes mais elementares – melodia, ritmo, harmonia, letra e suas relações entre si. Neste sentido, são lados da mesma moeda. Certo é que ambos extraíram, cada um a seu modo, de uma a canção menor o suprassumo do que ela possuía para oferecer. E, ouvindo os resultados destas explorações, não se pode dizer que se trate de uma canção assim tão menor.