Uma outra canção de exílios

Uma canção pode ter várias encarnações. Composta ou gravada num determinado contexto histórico, pode voltar à tona anos depois, num contexto diferente, ou correlato, na mesma gravação ou em outra que a releia e posicione perante o novo cenário. Em alguns casos, datada a princípio, tem uma segunda chance de mostrar perenidade para além da especificidade que a motivou. E em outros a canção já tinha em si esta capacidade de ultrapassar a significação imediata, mas precisou desta segunda exposição para isto ficasse mais claro a mais gente.

O período da ditadura militar brasileira foi pródigo em canções assim. Muitas serviram a seu tempo dignamente com metáforas e alusões que se esforçavam ao mesmo tempo por se fazer compreender e passar despercebidas. Tratavam do tempo presente, dos homens presentes, da vida presente, como disse Drummond em tempos de guerra, bem antes. E não se preocupavam muito com a própria sobrevivência como canções. No entanto outras, abaixo da casca de decifração direta, guardavam sementes de outras leituras, porque não se limitava a tratar do drama de sua época, que já era tremendo, mas o identificavam com questões ainda mais amplas, que dizem respeito a qualquer época, qualquer país, qualquer homem.

Vapor Barato, de Jards Macalé e Waly salomão, foi composta em 1970 e gravada por Gal Costa em 1971, no álbum Fa-tal – Gal a todo vapor, correspondente ao show de mesmo nome dirigido por Waly, que marcou a carreira da cantora. A canção foi feita em circunstâncias políticas e culturais muito difíceis, de repressão política duríssima, no período que foi intitulado Anos de Chumbo e que teve como resposta de uma parte da juventude o desbunde, uma reação de quem não suportava o que via à volta e voltava-se para valores espirituais; não se encontrava na cultura vigente e inventava uma contracultura.

A canção está impregnada destes fatos. Mas ela sobrevive a eles, recusando-se a ser um mero documento de uma época. De maneira quase casual, ela ressurgiu aplicada a uma nova circunstância histórica, e assim evidenciou-se a sua transcendência a estas circunstâncias. Vapor Barato trata da busca humana de um lugar no mundo, e do exílio deste lugar. Como o escritor italiano Primo Levi, que no título do livro que conta sua experiência no campo de concentração nazista de Auschwitz, pergunta: É isso um homem?, transformando num questionamento existencial sua vivência pessoal, Wally Salomão (á época Sailormoon), antes de falar de sua experiência objetiva, fala do seu exílio interno, de um país que o abandonava em vez de ser abandonado. Ele conta:

Começamos a trabalhar exatamente naquele período que marcava um vazio depois do AI-5, depois de tudo o que foi o tropicalismo em 1968 e que foi cortado violentamente no final daquele ano. 69 começava como um período de esmagamento total, vindo de cima, do poder. A gente conversava muito e eu ficava incitando Macalé a quebrar os vínculos com remanescentes da bossa nova ou então com a música de concerto, com aquele perfeccionismo. Insistia na necessidade dele criar um espaço próprio. Isso era fundamental naquele momento – uma voz que continuasse cantando e mantivesse acesa a chama. Nessa época escrevi e Macalé musicou Vapor Barato, de letra oposta à tendência liricista e nebulosa que predominava. Era direta, frontal, dizendo o que era possível naquele momento de desencanto.

Waly não conta duas coisas. Primeiro, que o personagem auto-descrito na letra tem muito de Balbino, o maluco da praça da cidade baiana de Jequié, natal de Waly, que vagava com a indumentária exata enumerada na canção, incluindo os anéis de bijuteria ou brinquedo. Waly aproveitou a lembrança de infância para a composição. E Waly também não conta, mas Macalé sim, que Waly foi preso e torturado no presídio de Carandiru. Vapor Barato nasceu daí. Os lancinantes oito minutos e meio da gravação de Gal Costa são o lamento de quem se perde de um país. Assim, a vestimenta exótica de Balbino passa a emitir mensagens (nem tão) cifradas: calças vermelhas, casaco de general, o recado é óbvio. E no entanto, está longe de explicar tudo.

Gal – 1971, álbum Fa-tal

A estrutura de Vapor Barato é franciscana. Tom menor, quatro acordes descendentes em direção à dominante, e é tudo. Jards diz que todo mundo tocava a canção à época. A melodia segue a direção dos acordes, descendente, linear, cansada, quase falada, subindo apenas no último acorde para preparar o retorno à tônica e a frase seguinte, num passo a passo desalentado, extenuado. Até chegar ao refrão.

O refrão, de duas palavras. O refrão, elementar, cru, estrangeiro, rompendo a barreira do agudo e despejando dor. Todo o desalento da letra da canção aqui se transforma em torrente, como um uivo para a lua – e Gal, efetivamente, no fim da música abandona a letra e se lança em vocalizes que são quase uivos, contrastando com os scats nasais, comedidos do início. Como também ao cantar eu quero esquecê-la / eu preciso, em que o quase grito da segunda frase contradiz a primeira e mostra o esforço violento deste esquecimento forçado, contra a vontade, necessário como forma de sobrevivência. Gal canta a canção duas vezes, a primeira acompanhada apenas por um violão batido com fúria, da maneira mais elementar, o contrário do Jards Macalé profundamente influenciado por João Gilberto. E na segunda vez um trio bluesly passa a soar. Blues, canto de exílio. Toda a solidão do mundo ressoa.

Corta para 1995. O cineasta Walter Salles filma Terra Estrangeira, com a atriz Fernanda Torres. Fernanda, num intervalo das filmagens, começa a cantarolar uma canção. Walter Salles decide incorporá-la ao filme, daquele jeito mesmo, cantada à capela pela personagem dela. E nos créditos pôs a gravação integral de Gal Costa.

O enredo de Terra Estrangeira se passa em 1990, logo após a ascenção de Collor à presidência, e o confisco do dinheiro das cadernetas de poupança, as economias e a esperança de boa parte da população. No momento maior da volta da democracia, uma fraude tinha lugar, e o país adiava o encontro consigo mesmo. No filme, personagens premidos pela crise econômica emigram para Portugal. Os versos de Vapor Barato voltam a fazer sentido quase literal: eu não preciso de muito dinheiro, graças a Deus.

Em 1996, a canção é gravada pelo grupo O Rappa, em seu segundo álbum, Rappa Mundi.

A versão do Rappa segue por um caminho diverso ao de Gal. A quase lassidão da primeira gravação dá lugar a um vigor condizente com a postura combativa do grupo. Até dentro da mesma frase, a ênfase muda: antes, eu estou tão cansado. Agora, mas não pra dizer que eu não acredito mais em você. Falcão se permite menos voos vocais que Gal, amarra mais a melodia, calca o pé na levada da bateria de Yuka, base da música do Rappa. Sob a sintaxe do reggae em substituição ao blues, mudam também as significações imediatas: o discurso pode ser de um filho que sai de casa, aquele velho navio adquire possibilidades diversas. O título, que fora citado por Caetano na canção Fora de ordem nomeando um mero serviçal do narcotráfico, integra-se também à letra de formas inesperadas.

A visão do Rappa não se compara com a de Gal. Nem deve. Pois o que torna possível a gravação do Rappa, de certa forma, é o retorno da gravação de Gal em Terra estrangeira. A atualização histórica de Vapor Barato no filme de Walter Salles foi mais que isso – pois o filme é menos uma crônica histórica que uma busca existencial -, foi o reconhecimento da permanência da canção para além de contextos particulares, ou aplicável a inúmeros contextos, gerais ou pessoais, como as boas obras de arte. Zeca Baleiro, pouco depois, a mesclou com a sua À flor da pele, com a familiaridade de quem relê uma carta antiga.

A sobreposição de contextos e significados em Vapor Barato, no lugar de esconder sua universalidade subjacente, a expõe. Vapor Barato não precisava do resgate de Walter Salles (ela tinha sido sequestrada? detesto esta expressão) para ser a soberba canção que é. Não foi ela a beneficiada, e sim nossa escuta que se renovou e se renova a cada momento histórico ou pessoal, ao reconhecer a polissemia que torna rica uma obra de arte. Este segundo olhar sobre ela permite vislumbrar a possibilidade de ainda muitos olhares. Que venham outros.

Brinde: aqui e aqui, uma interessantíssima interpretação astrológica de Vapor Brato, relacionando-a inclusive com o mapa astrológico do Brasil.

Uma aula de canção de Cole Porter

Falei aqui outro dia do formato básico da canção – ABACA – a partir do qual infinitas variações são possíveis. Sim, são possíveis, mas quanto mais distante vão, mais raras se tornam. A grande maioria das canções que ouvimos no rádio tem formas até mais simples que este padrão – sem a parte C, por exemplo. Saber extrapolar este formato com consciência exige engenho e arte.

Entretanto, esta fórmula esconde também detalhes específicos que se tornaram padrão no cancioneiro popular, em algumas de suas variações. Por exemplo, o padrão AABA com quatro estrofes de 8 compassos cada, totalizando 32 compassos, praticamente dominou a canção americana tradicional de grandes compositores de varias gerações, desde George Gershwin até Brian Wilson. (mais tarde o formato padrão tornou-se o estrofe-refrão, derivado de um ABABA, mas com um contraste marcado entre as partes, destacando o refrão bem mais que na forma AABA.)

Begin the beguine é apenas uma entre dezenas, talvez centenas de canções excepcionais de Cole Porter, um mestre da composição que sabia como ninguém explorar e, se necessário, ultrapassar os limites estritos da forma. Sua narrativa do amor que se foi e da esperança em sua volta não couberam na forma tradicional, e Cole Porter não hesitou em, partindo do formato tradicional, subvertê-lo e recriá-lo sob outros parâmetros.

A forma de Begin the beguine pode ser resumida em AABA’CC’, sendo as letras seguidas de apóstrofos correspondentes a variações. Mas antes disso, o próprio formato da estrofe de Porter já é uma variação, tendo 16 compassos em vez dos 8 tradicionais. Isto significa versos mais longos, mas principalmente a possibilidade de estender e trabalhar melhor as frases. O resultado é uma canção que, em vez de 32 compassos, tem 108 (!), e sem perder a fluência na audição, mas com uma complexidade de construção que levou o também compositor Alec Wilder a descrevê-la como um maverick – em sentido estrito, gado não marcado, e comparativamente, um exemplar (pessoa ou coisa) que recusa livremente os padrões estabelecidos. Vejamos a estrutura desta canção estrofe por estrofe:

When they begin the beguine
It brings back the sound of music so tender,
It brings back a night of tropical splendor,
It brings back a memory ever green

A primeira parte A é a típica exposição do tema. Na letra, pinta-se-se um cenário de memória, onde vão ser inseridos os personagens logo depois. O trocadilho que dá o título vai tornar-se o leitmotiv da canção, mas aqui é apenas apresentado com a melodia do verso inicial. O beguine é um ritmo caribenho, espécie de rumba lenta para ser dançada à maneira européia. A intenção de sua escolha é principalmente evocar um certo exotismo, ideal para a encenação de um musical – não esqueçamos que a maioria das canções de Cole Porter, incluindo esta, surgiram para espetáculos da Broadway. Porém, a citação de um beguine tocado na letra cria uma música dentro da música, que lembra outra música (como afirma o segundo verso), num exercício de metalinguagem que, estabelecido aqui, vai servir como sustentação de toda a canção, apoiado nas repetições do verso/título.

I’m with you once more under the stars,
And down by the shore an orchestra’s playing
And even the palms seem to be swaying
When they begin the beguine

A segunda estrofe, com exatamente o mesmo formato da primeira, introduz os amantes no cenário, e faz a primeira repetição do verso/título. Um jogo sutil de terminações se inicia aqui: o verso When they begin the beguine pode ser encerrado em três notas diferentes: na fundamental do acorde, em movimento descendente, indicando finalização de uma idéia; na terça do acorde, em linha reta, indicando uma continuação; e a quinta do acorde, indicando uma suspensão. Aqui, a terminação na terça serve de ligação para a parte B a seguir

To live it again is past all endeavor,
Except when that tune clutches my heart,
And there we are, swearing to love forever,
And promising never, never to part

A parte B, contrastante com a A, serve também para, aproveitando a modulação, mudar também o discurso, que passa do descritivo para uma evocação sentimental do passado. A estrofe se inicia com o acorde do tom, só que menor, já indicando esta passagem, e segue descendo dois tons nos dois primeiros versos, para depois cair numa sucessão de acordes suspensos que, ao mesmo tempo que preparam a volta à parte A, também dão uma impressão de irrealidade que é tanto da evocação da memória quanto da sensação de estar vivendo um sonho com o ser amado, descrita aqui com a expressão there we are, fazendo o passado presente.

What moments divine, what rapture serene,
Till clouds came along to disperse the joys we had tasted,
And now when I hear people curse the chance that was wasted,
I know but too well what they mean

Até aqui a canção teve forma similar ao formato AABA tradicional. Mas é aqui, na volta à parte A, que ela vai começar a se diferenciar. No segundo e no terceiro versos, a melodia assume uma variação que os torna mais extensos, esticando-se para o agudo em notas que chegam às dissonâncias dos acordes de harmonia. Isto serve para, na contramão do que deveria ser a última estrofe, aumentar a tensão do encontro amoroso que é e não é realizado, justamente quando é narrado o processo de separação e chora-se o que se perdeu. Assim, o último verso tem o tom de um lamento, mas não termina na nota fundamental, e sim novamente na terça, sinalizando que ainda não terminou.

So don’t let them begin the beguine
Let the love that was once a fire remain an ember;
Let it sleep like the dead desire I only remember
When they begin the beguine

Então, depois do fim da forma tradicional, vem a surpresa: Begin the beguine se reinventa numa inesperada parte C, que já se inicia na vitalidade de um clamor em linha reta no agudo. O grau de tensão emotivo chega a seu máximo, como numa cena de cinema em que o par romântico subitamente abandona os braços do parceiro por um motivo irresistível que os leva à separação, aqui numa tentativa desesperada de não sofrer, mal lembrar, calando a orquestra. Tentativa que já se sabe vã, e que leva à repetição do mesmo verso inicial, como que dito involuntariamente por quem quer esquecê-lo. Mas aqui sua terminação é ascendente, na quinta do acorde de tônica (nota fundamental da dominante, portanto), o que, além de indicar que ainda há algo a dizer, também parece pôr em dúvida exatamente a disposição de esquecimento expressa. E finalmente:

Oh yes, let them begin the beguine, make them play
Till the stars that were there before return above you,
Till you whisper to me once more, “Darling, I love you!”
And we suddenly know, what heaven we’re in,
When they begin the beguine

Agora a cena de cinema é outra: a do amante que se afasta vagarosamente na separação, para de súbito voltar-se e atirar-se novamente nos braços do parceiro, recusando-se a partir. Se o primeiro verso da estrofe anterior soava como um apelo, este soa como uma ordem, reiterada com o acrescentamento do make them play que ameaça extravazar o verso. O jogo de negação/afirmação, a contradição entre as duas últimas estrofes, sintetiza uma disposição de espírito que não é mais regida pela lógica, mas pelo sentimento em estado bruto. Novamente o passado torna-se presente, mas agora não pela evocação, mas pelo encontro real da canção, da canção na canção e da canção na memória, unificadas: que a orquestra toque até que o sonho seja real!

A estrofe tem 5 versos em vez dos 4 normais, o que a leva ultrapassar também o formato quadrado dos 16 compassos, como se se tentasse estender ao máximo a sensação de paraíso descrita na letra. Até que, enfim, o verso/título é repetido e finalizado na descendente, aterrissando na nota fundamental e apontando o fim da canção. Mas não sem antes uma outra repetição que ascende verticalmente uma oitava, como um grito de júbilo, de felicidade.

Cole Porter chegou a afirmar que não conseguia tocar Begin the beguine sem se guiar pela partitura. Talvez tenha sido um gracejo, mas dá ideia do grau de sutileza que ele próprio reconhecia em sua engenharia, o que a torna, como afirmei no título, uma aula de canção. Mas o que a torna uma obra-prima é o fato de nada disso ter importância no momento em que se a ouve. E acho que não é preciso dizer mais.

com Frank Sinatra

com Gal Costa, numa maravilhosa versão em bossa nova

Discoteca Brasílica – Brasil

Brasil, de Cazuza com George Israel e Nilo Romero, gravada por ele no álbum Ideologia, de 1988, é um samba! – ou melhor, é a intromissão do samba no rock, com a inversão da batida do bumbo, do tempo forte para o fraco. Não é a primeira vez que isso acontece – Vida Bandida, de Lobão, e antes disso Blitz e Rita Lee já tinham feito coisas semelhantes. Mas o fato de ser um samba já é um bom motivo para pensar – o porque do roqueiro Cazuza ter recorrido a ele quando decidiu tratar diretamente de seu país e suas mazelas. Mesmo para um roqueiro, Brasil e samba são sinônimos? Ou, sendo uma letra crítica, Cazuza insere nela também uma crítica à carnavalização dos problemas?

Brasil – com Cazuza (a montagem de imagens com mensagens políticas é do autor do vídeo)

Brasil é um retrato interessantíssimo e duplo de um artista e seu país passando por momentos semelhantes. Cazuza havia chegado dos EUA, onde tivera as primeiras crises de saúde resultantes do fato de ser soropositivo para AIDS, e passava por uma crise pessoal que ele narra abertamente na canção-título deste álbum. O país viva os primeiros anos depois da redemocratização, ao mesmo tempo que vivia os rescaldos econômicos e sociais da ditadura. Em ambos os casos, percebia-se na prática que o mundo não era exatamente como se acreditava. A identificação entre estes dois momentos transformou Brasil em um grande sucesso. Cazuza expõe seus questionamentos sem apresentar respostas, e sim partilhando sua busca.

Isto não impede – ou talvez seja por isso mesmo – que uma certa ingenuidade transpareça na canção, fruto da inexperiência diversas de ambos, artista e país. O eu lírico da canção é um guardador de carros na porta de uma festa luxuosa, papel de difícil verossimilhança para Cazuza. Filho de pais ricos, inclusive o presidente da gravadora que o lançou, farrista emérito nas noitadas do Baixo Leblon e em todo tipo de excesso (o que, aliás, explica ao menos em parte o incrível fim da primeira estrofe, em que ele compara as decepções do país com a compra de droga adulterada!), Cazuza tinha, sim, a tremenda sensibilidade e capacidade de empatia profunda com os sofredores – seus biógrafos dizem que era capaz de confraternizar com mendigos e de uma generosidade ímpar. Porém, coisa diferente é transformar estas generosidade e empatia em um discurso político minimamente organizado. A consciência política de Cazuza, se um dia fora articulada, passava então por um momento de desarticulação – e talvez este fosse um mérito, pois lhe dava a liberdade de criador. No entanto, ao abordar o assunto em suas canções, Cazuza tende a resvalar para o populismo em alguns momentos.

É claro de confrontar a vida particular do artista com sua obra é perigoso e pode ser simplesmente moralista. Mas, no caso de Cazuza, é impossível dissociar artista e obra. Se o início de Brasil é baseado nesta identificação com o guardador de carros, o despossuído como o povo brasileiro, logo ele próprio vai abandonando o personagem para, nos últimos versos, deixá-lo de lado inteiramente, em parte também pela generalização do discurso (inclusive incluindo o índio como outro símbolo dos despossuídos, do povo). É impossível não enxergar aqui, mesmo que involuntariamente, um viés demagógico que torna esta identificação algo artificial. Mais tarde, o próprio Cazuza explicitaria e radicalizaria este discurso em Burguesia:

A burguesia fede
A burguesia quer ficar rica
Enquanto houver burguesia
Não vai haver poesia

E logo depois, Cazuza, oriundo e integrante desta mesma burquesia, como que tenta se desculpar: eu sou burguês, mas eu sou artista / estou do lado do povo! A autodefesa soa canhestra ao lançar mão de uma frase feita que foi usada por todos os políticos populistas brasileiros, representantes de oligarquias ou não, de direita e de esquerda, de Getúlio a Lula. Em Brasil, na parte C, ocorre contradição análoga: grande pátria desimportante / em nenhum instante eu vou te trair! Desta vez, a frase populista chegaria a soar piegas se não viesse após um verso inspirado que resume a simpatia e o carinho de Cazuza pela pátria, soando sincero justamente por admitir sua condição algo contraditória. Há uma busca escancarada, em que se toma determinados atalhos para logo depois recuar, como quem exatamente quer uma ideologia para viver.

Mas então pode parecer que Brasil é um grande erro, uma sucessão de passos em falso, uma coleção de discursos ruins. Nada disso. Ao contrário de Burguesia, em que há uma direção definida (e no entanto deve ser lida com ressalvas, dadas as condições extremas em que todo o último álbum de Cazuza foi feito), Brasil em suas contradições internas retrata exatamente um momento de nação, e é isto que a torna forte. E é seu forte refrão que consegue amarrar as pontas soltas, ao se dirigir diretamente ao país como uma espécie de mistério, tomá-lo como seu interlocutor e externar suas dúvidas. Para terminar com um apelo inesperado: Brasil, confia em mim! A inversão surpreendente – em vez de, patrioticamente como nos hinos de louvor à ditadura, pedir para que confiem na pátria, Cazuza pede que ela confie nele – sintetiza um momento histórico de autodescobrimento do país que, não é favor dizer, se prolonga até hoje.

Mas ainda houve um acontecimento na trajetória desta canção que merece uma análise mais detida:

Brasil – com Gal Costa

Brasil foi regravada por Gal Costa especialmente para se tornar o tema de abertura da novela das 8 Vale Tudo, da Rede Globo, o que tornou a canção duplamente metalingística: primeiro pelo fato de a novela se propor a debater ética ao investigar, segundo seu autor Gilberto Braga, até que ponto valia ser honesto no Brasil; e segundo pelos versos finais antes da repetição do refrão: ver TV a cores na taba de um índio / programada pra só dizer sim, uma crítica direta ao poder dos meios de comunicação de massa no Brasil, TV em particular, em contraste com uma realidade simbolizada pelo índio na taba, de múltiplas significações, desde a mais simplória no sentido de uma manupulação da população indefesa até um contraste em que a globalização e o projeto de integração nacional da ditadura são confrontados com a população e sua(s) culturas variadas particularíssimas, o encontro de um Brasil ultramoderno e um arcaico (e agora lembrei do fabuloso filme Bye bye Brasil).

Há duas questões aqui. A primeira é que, Se Cazuza assume a voz do guardador de carros, Gal assume a do Cazuza assumindo a do guardador (pois sua gravação é inequivocamente referencial à anterior, com os metais repetindo os solos de guitarra originais). Ou seja, o que já era algo que parecia forçado agora se torna simulacro – que não não é de todo impróprio, em se tratando justamente da abertura de uma novela. Em compensação, a interpretação de Gal é vigorosa e sustenta a canção, não fosse ela a intérprete que é.

Entretanto, a diferença fundamental entre as duas vem do fato de a abertura da novela escancarar o samba que na versão de Cazuza surgia insidioso no meio da levada da bateria. A transformação de Brasil num samba inequívoco – e mais, um sambão de escola de samba, com direito a repiques de tamborim e roncos de cuíca, mas com uma certa estilização que soa um pouco como uma demonstração para turistas – permite entender um pouco das escolhas que Cazuza faz em sua gravação, ao escolher o samba, mas apenas pouco mais que sugeri-lo no arranjo. Já na versão de Gal – e esta impressão é reforçada ao lembrarmos da imagem forjada por ela em álbuns como Gal Tropical e canções do repertório de Carmen Miranda (obviamente, o buraco é mais embaixo, esta impressão é meramente superficial. Mas lembremos que estamos falando de uma abertura de novela) – ao mesmo tempo que é mantida a força interpretativa, ocorre também como que uma tropicalização da canção – que pode ser entendido no sentido raso de uma mera diluição do conteúdo, ou no sentido relativo ao movimento tropicalista, carregando em si toda a discussão da relação com os meios de comunicação de massa realizada por este movimento.

E então a conversão desta canção de protesto da geração 80, a geração perdida cantada por Renato Russo, em uma abertura de novela com escola de samba, acaba sendo a realização de uma profecia involuntária de Cazuza, feita na mesma canção, ou ao atendimento de uma parte de seu apelo. Pois ao enfatizar até a obviedade as características de Brasil, acaba-se por, pelo avesso, enfatizar também o processo de diluição que isto comporta, fazando o truque vir à tona, e devolvendo ironicamente o valor e o interesse à gravação de Gal, já agora carregada destas leituras sobre leituras a partir da gravação referencial de Cazuza. Mas, ao contrário do que se poderia supor, ao se acrescentar máscaras sobre máscaras à canção, ocorre o contrário de um mascaramento: é quando, ao tentar transformar Brasil num simulacro, o Brasil mostra sua cara. E, ao vermos uma parte dela que seja, (e ao menos há o consolo de conseguir energá-la) temos a impressão de que, infelizmente, ainda falta muito para que ele confie em nós.

Negão, neguinha, neguinho

Eu sou negão nem se chamava assim. O título era Macuxi, muita onda, e foi assim, com o título que a consagraria apenas entre parêntesis, que saiu no álbum gravado às pressas para dar vazão ao tremendo sucesso radiofônico . O Produtor musical Paquito conta a incrível história:

Eu sou negão não é bem uma canção, é também uma canção e peça curta falada, com um diálogo entre as duas forças do carnaval baiano: o trio elétrico, representado por seu cantor, e o bloco-afro, representado pelo negão propriamente dito, cantor do bloco, que toma a palavra e entoa o refrão poderoso:

Eu sou negão / Meu coração é a Liberdade

Disso todo mundo sabe, mas a canção nasceu em uma convenção da gravadora Sony no Hotel Quatro Rodas, em Salvador. Gerônimo ficou de apresentar um show para os executivos da gravadora, mas sentiu-se desdenhado no palco, diante da platéia indiferente, e danou a improvisar na hora, por cerca de sete minutos.

O então disc-jóquei da Rádio Itaparica, Baby Santiago, presente no local, gravou a música ali mesmo, no instante da execução, e botou pra tocar na programação da rádio. Verão de 86, a música fez sucesso instantâneo. A Itaparica, que era sétimo lugar em audiência, passou pra segundo, e Gerônimo não tinha nem disco, que contivesse a faixa, pra vender. Foi feita uma segunda gravação, mais curta, no estúdio de Silvio Ricarti, pra entrar num disco de apenas três faixas, e resto, como diz o clichê, é história.

Eu sou Negão – clip original (falta um pedaço no início, mas vale a pena ver)

Ouvindo Eu sou negão, percebe-se claramente que há duas músicas ali. Dentro de uma, o reggae que era a música original, surgiu uma outra coisa a partir dos improvisos de Gerônimo – uma espécie de enfrentamento entre as duas vertentes do carnaval baiano, mas mais que isso, uma discussão sobre a autenticidade de uma cultura negra e seus desdobramentos. Eu sou negão é sobretudo uma canção para ser assistida ao vivo. Eu só a vi assim uma vez, num programa de TV à época, e fiquei maravilhado quando, na mudança de ritmo da entrada do trio elétrico, Gerônimo e vários músicos começaram a pular e se empurrar no palco, pulando carnaval, teatralizando completamente a apresentação.

Eu sou negão – ao vivo (não há a teatralização, mas é uma versão mais madura, com um texto de improviso completamente diferente e interessantíssimo de Gerônimo)

Eu sou negão inspirou Eu sou neguinha, de Caetano, a partir de uma foto – enviada por Arto Lindsay a Caetano – que mostrava um Prince andrógino com a frase, escrita por Arto: “eu sou neguinha?”.

Eu sou neguinha? (Caetano Veloso com a Banda Cê)

Eu sou neguinha desloca e ao mesmo tempo amplia o raio de ação de Eu sou negão. Até geograficamente: se a primeira dá endereço certo (Pega a Rua Chile, desce a ladeira, tá na Praça Castro Alves, na Praça da Sé), Caetano tava em Madureira, tava na Bahia, no Beaubourg no Bronx, no Brás. A levada da gravação de estúdio de Caetano também passa ao largo de ritmos chamados baianos, e se presta a esta revisão na fase rocker atual. Para além da questão óbvia da sexualidade, a música de Prince, na época qualificada como fusion, misturava rock, funk, jazz (ele chegou a fazer sessões com Miles Davis) e era por si uma nova afirmação da cultura negra, acompanhada de um questionamento de suas verdadeiras fronteiras. Caetano sabia disso. No aniversário de Roberto Carlos aquele ano, o jornal O Globo fez uma enquete engraçadinha perguntando a vários músicos que presente dariam para o Rei. Caetano ofereceu o álbum Sign o’ the times, de Prince.

A pergunta de Caetano, que se definiria pouco tempo depois mulato na canção Branquinha, corresponde à admissão de Gerônimo no discurso da gravação ao vivo acima de não ser negão, e sim mulato, relativizando assim a tomada de posição em favor de um dos personagens de sua canção (pois o refrão, cantado pelo personagem/cantor do bloco afro, o sobrepõe ao trio elétrico decisivamente). Quem é negunha agora, quem é negão, nesta cultura miscigenada?

E então, em 2011, no álbum Recanto, só de canções de Caetano, Gal Costa gravou Neguinho.

Neguinho se encaixa numa tradição pessoal do Caetano da música-discurso civilizatório (Podres Poderes, Fora de Ordem, Vamo Comê), passando inclusive pelo seu assunto eterno retorno do ultrapasar o sinal vermelho (como também em Haiti e Neide Candolina). Neguinho é como que o lado escuro de Eu sou neguinha, com sua crítica feroz e sua melodia quase monocórdica. Mas de resto, todas as três canções são eminentemente discursivas – no caso de Eu sou Negão, quase à força… e no entanto, esta é a que acaba tendo mais variação pela interpretação falada, cheia de nuances, enquanto nas duas de Caetano, a melodia transita entre duas a três notas de cada vez. Aliás, o motivo melódico inicial das duas é muito parecido. E em todas, os refrões fortes, titulares, curtos e repetitivos contrastando com as estrofes, indo do grito de guerra à pergunta, e desta a um irônico hey, hey, que pode ser ouvido também (e mais ironicamente ainda) rei, rei.

Neguinho, partindo em sua construção da acepção de gíria da palavra, como um pronome indefinido, parte também para uma informalidade absoluta de linguagem, em frases como neguinho também se acha. Se as três canções primam pela sintaxe absolutamente coloquial, Eu sou negão e Neguinho, propositalmente, extrapolam para um universo linguístico muito popular, porém por motivos e com resultados diversos: enquanto a primeira provoca uma identificação pela teatralidade da personificação, a segunda causa um certo estranhamento, tanto pela interpretação sem nenhum entusiasmo de Gal Costa quanto pelo sóbrio arranjo eletrônico que sugere um universo bem diferente. Mas Caetano se apropria do código desta linguagem tida como inculta para traçar o retrato crítico de uma sociedade contraditória:

Neguinho vai pra Europa, States, Disney e volta cheio de si
Neguinho cata lixo no Jardim Gramacho

Mas o essencial nesta canção é exatamente o título/refrão. Caetano afirma adorar o uso da palavra neguinho em substituição à expressão todo mundo. E explicita a quem se refere no verso neguinho que eu falo é nós. É quando é feita a passagem da discussão de uma cultura para toda a sociedade, como herdeira desta cultura. Se em Eu sou neguinha Caetano se constitúi como o lugar desta mistura, no último verso parece já dar a deixa para a generalização que faria mais tarde:

E que o mesmo signo que eu tenho ler e ser
É apenas um possível ou impossível em mim em mim em mil em mil em mil

A passagem do em mim para o em mil completa a passagem da cultura negra para a cultura popular, das nações africanas para a nação brasileira, com todas as suas misturas e contradições (já tratei disso aqui recentemente, analisando Nação, de João Bosco, Aldir Blanc e Paulo Emílio). Não é à toa que do samba-reggae passa-se pelo rock e chega-se à música eletrônica (mas sempre com ritmos meio híbridos, utilizados para fazer algo que de alguma forma extrapola os estilos). Gerônimo, na versão ao vivo acima, já havia avisado:

A cultura negra fez com que o mundo descobrisse o rock’n roll, o jazz, o reggae, a música popular brasileira, se não tivese o tempero da raça negra, ai de nós, o que seria de mim.

O que seria de neguinho.

Dê um rolê, Roberta Sá!

Tenho notado uma coisa em comum a uma quantidade de cantoras cujo trabalho ganhou visibilidade de alguns anos para cá: uma certa forma de interpretar que privilegia o timbre suave, tecnicamente perfeito, elegante. Boa parte dessas cantoras tem sido “acusada” por alguns de copiar Marisa Monte, ou voltando mais no tempo, Gal Costa. Seria uma escola de canto que privilegia a emissão em detrimento da interpretação.

Grande bobagem, e por dois motivos. Primeiro, porque técnica e interpretação não são antônimos nem excludentes, é claro. E segundo porque as cantoras que pretensamente serviram de modelo às mais novas sempre souberam a hora de, se achassem necessário, deixarem de lado a emissão vocal “perfeita” para darem uns bons gritos, ou pelo menos escancararem a garganta e num timbre mais rascante ou com mais pegada.

Ainda assim, não tiro inteiramente a razão de quem reclama. Tenho às vezes a impressão, ao ouvir cantoras como Roberta Sá – vou ficar no exemplo dela para não fazer ainda mais generalizações – que ao cantar celebra-se o próprio ato de cantar e não necessariamente o que diz a canção. Percebo que a melodia, a interação com o instrumental, recebem enorme atenção, e a voz macia permanece a mesma ao cantar coisas alegras e tristes, felizes e furiosas. Quer dizer, não lembro de coisas furiosas no repertório dela…

Isto não significa que ela não saiba mudar a voz em prol de uma interpretação quando acha que deve. Um exemplo:

Fogo e Gasolina – Roberta Sá e Lenine

Em Fogo e Gasolina, Roberta parece que vai cantar do mesmo modo de costume. Só que, lá pelo meio da letra, mais precisamente no verso Eu sou a veia e você é a agulha, ela muda completamente o registro. Da primeira vez que ouvi a canção, achei que era uma outra participação além da do Lenine. Não consegui perceber o motivo de esta mudança ter acontecido no meio da música, em vez de ter ocorrido nela toda. Não há nenhuma indicação na letra e nem mudança no arranjo que justifiquem isto. Porém, isto não deixa dúvida da capacidade de a Roberta usar a voz em favor da canção. Só acho – e aí dou talvez uma de crítico – que ela pode fazer isto mais e melhor, se permitir mais sair da regra da aula de canto e explorar mais as possibilidades da voz. Cantar menos, contar mais, porque no fim das contas toda canção é uma história a ser contada. Isso talvez venha com o tempo. Tomara. Neste caso, ela estará na verdade seguindo o caminho inverso ao de Gal Costa, que hoje dificilmente desce do salto, mas que um dia já se esgoelou maravilhosamente. Fica o conselho do título, Roberta.

Dê um Rolê – Gal Costa, acompanhada pelos Novos Baianos – do álbum Fatal, de 1971.

A propósito: pesquisando para este texto achei o ótimo blog Geração Supernova, dedicado exclusivamente a esta geração 2000 da música brasileira. E deixo o registro.

Milton e o Eterno Retorno da Melodia – o Tema de Cais

Cais é a segunda canção do álbum Clube da Esquina I, de 1972, parceria de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos. Além da canção propriamente dita, ou tão importante quanto ela, o tema apresentado ao piano pelo próprio Milton no fim da faixa tornou-se emblemático.

Cais – do álbum Clube da Esquina I

O tema se apoia em um intervalo dissonante de segunda maior martelado na mão esquerda, enquanto a direita, e depois a voz, traçam a melodia. Não é apresentado inteiramente, mas decai em fade.

O tema retorna no mesmo álbum, numa das faixas finais, Um Gosto de Sol. Continua baseado no mesmo ostinato, mas agora transposto para cordas (o piano soa ao fundo), e é apresentado inteiro, ou seja, com uma segunda parte típica do Milton, em que a harmonia permanece em suspenso como que desequilibrada, para depois voltar com tudo à primeira parte (veja no post anterior).

Um Gosto de Sol – gravação do álbum Milton Nascimento ao Vivo, de 1983, com Gal Costa

A estratégia da reapresentação do tema de uma música inicial em outra música no fim serve para dar unidade ao álbum, e foi muito usada por grupos de rock progressivo da época como o Genesis (veja aqui sobre a relação do rock progressivo com o Clube da Esquina). Mas há algo mais aí.

Em 1978, Milton e L�� Borges gravam o Clube da Esquina II. O álbum já se inicia referencial – um coro à capela canta um trecho de San Vicente, do Clube da Esquina I, antes mesmo da primeira faixa. Mas é na música que encerra o álbum que a ligação se completa.

Que Bom, Amigo – do álbum Clube da Esquina II

Que bom, amigo é uma canção inteiramente construída sobre o tema de Cais. A melodia da canção soa intercalada com a do tema, fazendo um jogo de canto e contracanto. Mas não apenas a óbvia ligação entre os álbuns é reforçada. Há também um jogo de relações entre as três canções.

Cais, em sua letra, narra uma aventura fundamentalmente solitária. “Para quem quer se soltar invento o cais / Invento mais que a solidão me dá”. O piano toca igualmente solitário no fim do arranjo.

Um gosto de sol é acompanhada somente pelo piano. No entanto, ao final (o arranjo de 83 segue o original) as cordas se somam a ele emoldurando o encontro. “Alguém que vi de passagem / Numa cidade estrangeira / Lembrou os sonhos que eu tinha / E esqueci sobre a mesa”.  É o complemento do pensamento, do caminho percorrido solitariamente à descoberta do outro. Seria um bom encerramento para a idéia. Mas Milton volta a ela anos depois.

Com Que bom, amigo Milton consegue dar um passo à frente. O que era um encontro fortuito e de passagem se torna efetivamente uma comunhão. Nesta canção, o tema é indissolúvel da própria composição, sublinhando a letra que repete quase tautológica: “Que bom, amigo / poder saber outra vez que estás comigo / dizer com certeza outra vez a palavra amigo / se bem que isso nunca deixou de ser”. É, agora sim, a celebração do ideal coletivista que caracteriza o Clube e que levou Milton e Lô a convidarem novos participantes para este segundo álbum. O que era um grupo de amigos agora é uma congregação.

Milton sempre afirma que o Clube da Esquina é muito maior que seus participantes originais. Ele seguiu à risca este pensamento tocando com músicos de variadas vertentes – de nomes do jazz a estrelas pop como os grupos RPM e Duran Duran, e apadrinhando cantoras como Clara Sandroni e Maria Rita. Esta diversidade não o impede de ter uma obra profundamente particular. O uso reiterado de temas como os que abordei são uma de suas assinaturas. Um reconhecimento de si e do outro. Um modo de possibilitar o encontro.

De Debussy a Tom…

Este post vem do blog Doida Canção, escrito pelo carioca/parisience Paulo da Costa e Silva. O blog é pequeno e existe há pouco tempo, mas as análises musicais são de primeiríssima linha. Esta vem a calhar com algo que já penso há um bom tempo, e que vou dar continuação mais adiante.

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Em muitas de suas músicas, Tom Jobim cria uma estrutura melódica mínima, baseada em poucas notas que serão repetida sob diferentes caminhos harmônicos. Para que isso funcione bem, para que essas melodias mínimas não percam em impacto emocional, não se tornem pobres, foi preciso que houvesse um desenvolvimento, uma ampliação do uso expressivo dos acordes. A tensão subtraída à melodia, agora sumariamente reduzida, é compensada por uma harmonia rica, dissonante. A fórmula soa paradoxal: um elemento ultra simplificado é imantado por outro de extrema complexidade; a timidez melódica apóia-se na exuberância harmônica. Esta, por sua vez, altera a percepção que se tem da melodia – e aí está a jogada. Vamos imaginar a cena de um teatro-canção. Os acordes formam o cenário enquanto a melodia é o personagem principal. A própria forma como percebemos este último vai depender da moldura que o enquadra. Se o pano de fundo for um hospital, o ator vestido de branco será um médico; se for um terreiro de candomblé, será um pai-de-santo, e por aí vai. Com grande domínio da matéria musical, Jobim extraía o máximo dessas junções e deslocamentos, podemos dizer, entre figura e fundo. Como disse Jacques Morelembaum, ele sabia o exato significado de uma nota sob um acorde.

Talvez o exemplo mais radical desse modo de compor seja o Samba de Uma Nota Só. Na primeira parte (Eis aqui este sambinha…) a melodia permanece praticamente estática, apoiada numa só nota, enquanto a harmonia não cessa de se modificar, deslizando cromaticamente entre dissonâncias. Na segunda (Quanta gente existe por aí…) é a melodia que passa a se deslocar por todas as notas da escala, e a harmonia, se não chega a ficar parada num só acorde, torna-se no geral mais simples, sem grandes dissonâncias, evoluindo em convencionais saltos de quinta – e não mais no deslizamento cromático do início. A composição se estrutura a partir do desdobramento de uma célula mínima que projeta diferentes harmonias e jamais retorna sobre si mesma (o mais corrente entre os compositores populares é justamente o oposto: organizar a canção em torno de um ciclo harmônico mais ou menos fechado, que vai sendo preenchido pela melodia).

Lorenzo Mammì chamou a atenção para a singularidade desse modo criar e para as semelhanças que ele nutre com procedimentos da música clássica. É na maneira de construir que Tom mais se aproxima de seus mestres do universo erudito. De Villa-Lobos, nas extensas linhas melódicas feitas da transposição de pequenos intervalos para cima e para baixo, como em Chega de SaudadeSabiá. De Chopin, no fato de colocar a melodia como centro estrutural da composição. De Debussy, na complexidade e no uso da harmonia. Em Prélude à l’Après Midi d’Un FauneNuages, entre outras, o compositor francês brinca de repetir pequenas frases sob diferentes luzes harmônicas. Os ouvintes do fim do século XIX acharam graça, pois não conseguiam reconhecer ali a presença de uma melodia. Impregnados da sensibilidade romântica, acostumados aos grandes rodopios do desenvolvimento temático, eles não entendiam bem aquelas frases paradas, repetidas várias vezes e sem concatenações legíveis. Com dificuldades para descrever aquele universo, os críticos viram nos acordes flutuantes, soltos, desencadeados do fio de causa e efeito do fluxo tonal, a tradução musical da técnica de compor quadros a partir de pequenas manchas de cores, aparentemente desconectadas entre si. Debussy foi tachado de impressionista.

A ausência de desenvolvimento do material temático e a comparação com pinturas não queriam dizer, contudo, que sua música fosse estática. Havia movimento ali, mas um movimento distinto daquele encontrado em seu grande predecessor, Wagner. Em Debussy, o material melódico torna-se ainda mais cristalizado, o foco sendo jogado sobre harmonias quase auto-suficientes, sem traços de concatenação necessária, interligadas mais por analogias. Ele interrompia assim o fluxo tonal, levado ao seu momento de agitação máxima pelo cromatismo romântico, sem no entanto abandonar a tonalidade. Incorporava a técnica de Wagner e a desligava por dentro. Com isso, reagia contra a grandiloqüência romântica e trazia a música para uma temporalidade circunscrita a um espaço mais exíguo e, ao mesmo tempo, mais amplo e imprevisível – um pouco daquilo que Bachelard chamou de “imensidão íntima”.

É natural que Jobim tenha ido nessa fonte buscar alguns dos elementos que lhe possibilitaram formar o delicado intimismo urbano da bossa nova: o modo sutil de construir melodias que nos comunicam uma temporalidade suspensa, meio onírica. E aqui podemos falar em qualidades semelhantes, compartilhadas por Tom e Debussy: a impossibilidade de repetição – a nota que volta sob outro acorde já não é a mesma nota – e a ênfase na sensação do instante. De fato, Debussy parece ser um dos primeiros compositores a explorar de modo consciente o espectro puro do som como material expressivo. Ou seja, a sonoridade pelo que contém de bruto e imediato, de espacialidade e impacto corporal, e não tanto por sua vinculação ao tecido codificado de uma gramática musical. Com ele, comenta Pierre Boulez, “o movente e o instante fazem irrupção dentro da música”.

Algo parecido ocorre com as pinturas impressionistas. Sempre é complicado falar de tempo numa arte espacial e de espaço numa arte temporal, mas a geração de Monet dispensou as grandes narrativas em prol da captação da natureza como processo, como devir, como sucessão de instantes precisos e insubstituíveis. Ancorou-se no presente. Também elas produziram uma espécie de “poética do instante” – instantes que deveriam ser evocados menos como descrição ou entendimento intelectual e mais como sensação. A série de pinturas da catedral de Rouen (uma delas ilustra este texto) é um ótimo exemplo. Monet pinta a mesma fachada em diferentes horários do dia, com ligeiras mudanças de ponto de vista. Cria uma espécie de narrativa do instante – o lugar revisitado jamais é o mesmo.

Difícil falar de uma influência direta da pintura sobre a música de Debussy. Quando L’Après-Midi d’Un Faune, sua primeira peça madura, veio à luz, em 1894, o impressionismo já havia sido “ultrapassado” por outras correntes artísticas. O compositor parece ter sido bem mais influenciado pela literatura do seu tempo. De fato, Debussy foi um grande criador de mélodies – o equivalente francês dolied alemão. Foi através da prática de musicar os versos de Verlaine, Mallarmé e Baudelaire (o pai dos simbolistas), de adequar sons e palavras, de mergulhar fundo no trabalho da língua francesa, que ele desenvolveu o que há de mais determinante em seu estilo. Mammì chega a sugerir que “é tentando combinar a modulação contínua de Wagner com as repetições obsessivas de alguns poemas dos Fleurs du Mal (Cinq Poèmes de Baudelaire, 1889), muito mais que por uma súbita influência exótica, que Debussy alcançará um estilo pessoal”. Ou seja: a relação com a palavra foi decisiva no desenvolvimento de sua música.

Proses Lyriques – Claude Debussy (I- De rêve)

Derradeira Primavera – Tom Jobim e Vinícius de Morais, com Gal Costa