Dois Elvis

A invocação do mito é dos recursos utilizados na arte desde Homero ao invocar as musas e situar os deuses gregos nos enredos de suas epopéias. O mito acontece quanto o humano ganha um significado transcentente, e passa a simbolizar algo maior que ele mesmo. Van Gogh foi um pintor absolutamente genial, mas a representação do louco que nunca conseguiu vender um quadro durante a vida é quase maior que sua obra, e acabou ajudando muito a valorizá-la. Che Guevara foi um idealista e revolucionário, mas sua morte ainda jovem e sua fotogenia o levaram a representar este ideal de uma maneira que seu companheiro Fidel, que ficou por aqui para enfrentar a realidade, nunca mais conseguiu encarnar.

A obra de arte é capaz de criar mitos, mas mais comum é que ela se alimente do mito pré-existente para agregar significados extras a si. O retrato em serigrafia multicolorido de Marilyn Monroe por Andy Warhol ao mesmo tempo trazia para si o mito Marilyn e o alimentava – afinal, o próprio Andy também era um mito, ou estava a caminho de se transformar em um.

Por outro lado, apenas usar o mito para agregar significado sem devolver significações novas por sua vez acaba se tornando uma forma de vampirismo. A obra de arte pode criar redimencionar simbologias – aliás, é feita para isso. Se simplesmente repetir a que já existe, para que serve?

Aqui, duas invocações de Elvis Presley. A primeira, literal, no último e subestimado álbum do Dire Straits, On every street. Em Calling Elvis, Mark Knofler encarna algo ironicamente o fã desarvorado, fazendo uma ligação de longa distância para o Rei (para o outro mundo?). A atmosfera obsessiva do arranjo, com o mesmo curto riff de guitarra repetido hipnoticamente por vários minutos, reforça a impressão.

Callling Elvis – Dire Straits

Porém, Knofler não invoca Elvis propriamente dito. O empilhamento de clichês de sucessos (“love me tender”, “heartbreak hotel”) antes afasta que aproxima, ao evocar o mito, não a pessoa. Elvis não atende a ligação (já deixou o edifício), ele não está lá. Calling Elvis explicita a relação do grande público e da mídia – aqui simbolizada no telefone – com o mito e sua impossibilidade de comunicação real com o ser humano.

King of the mountain abre o último álbum de Kate Bush, Aerial. A voz quente de Kate substitui a soturna de Knofler. O arranjo, de obsessivo, torna-se etéreo, mesmo embalando na segunda parte. Estas diferenças são sintomas do olhar radicalmente oposto que Kate lança sobre o mito.

Kate Bush não telefona, fala diretamente com Elvis, em tom familiar, quase cúmplice. Conta-lhe as novidades sobre ele:

Outra garçonete de Hollywood esta dizendo que vai ter um filho seu
Há um rumor de que você está congelado e que vai despertar novamente algum dia
E que há uma fotografia em que você está dançando sobre seu túmulo

 Não deixa, no entanto, de se espantar. O personagem influencia também o ser real, a criatura interfere no criador:

Por que um multimilionário enche sua casa de lixo caríssimo?

King of the Mountain – Kate Bush

Mas é no refrão que Kate dá o golpe de mestre e revela a fundo o ser humano por trás da máscara. É na referência a Cidadão Kane, de Orson Wells, que muitos reputam o melhor filme de todos os tempos.

Cidadão Kane narra a busca de um jornalista para descobrir o significado da última palavra dita por um multimilionário antes de morrer. O personagem Kane foi inspirado no magnata das comunicações William Randolph Hearst. Ao final (atenção, vou contar o final. Mas bolas, o filme é de 1941!) Rosebud é o trenó do menino Kane, pedido na neve muitos anos antes. Wells no filme “fura” o mito e permite a visão do homem – e mais, da criança – The man with the child in his eyes, como diz outra canção de Kate.

Traçando a relação entre estes dois, King of the Mountain consegue fazer o retrato do artista quando jovem, e pintar o contraste terrível entre ele e o que o mundo fez dele – com o seu consentimento ou não. Calling Elvis faz este retrato em tintas sombrias. O de Kate é luminoso:

Elvis, você está lá fora em algum lugar,
Com o aspecto de um homem feliz?

O homem, não o mito. Ou o Rei no alto da montanha, maior do que o mito, sobrevivendo a ele. Afinal, Elvis não morreu, não é?

P.S. Não pude deixar também de pensar em Michel Jackson ao escrever este post. Graceland ou Neverland, a história se repete, como farsa e como tragédia.

Falando em blues…

…aqui, três gravações da mesma música: a primeira, do autor, Robert Johnson, numa das duas míticas sessões de San Antônio; na gravação de Johnson, já estão todos os elementos fundamentais do arranjo que Eric Clapton irá desenvolver, ao gravar a canção em Me and Mr. Johnson, álbum inteiramente voltado à obra do autor. O arranjo de Clapton é reverencioso, e como que desdobra nos instrumentos o que estava implícito no violão. Já os Red Hot Chilli Peppers não se contentam com desenvolver; preferem subverter um pouco, e aproveitam a coincidência de nomes do grupo com a música para usá-la no fecho do álbum Blood Sugar Sex Magik. O que Clapton havia elaborado, eles distorcem, e se divertem um bocado. Divirta-se também.

They’re red hot – Robert Johnson

They’re red hot – Eric Clapton

They’re red hot – Red Hot Chili Peppers 

(Por motivos de direito autoral, o You Tube não aceitou estas gravações. Clique no nome dos artistas para assistir os vídeos no Yahoo).

P.S. Na verdade, chamar esta música de blues só porque é de Robert Johnson talvez seja um pouco ortodoxo demais. Quem ouvir a segunda parte com atenção, vai perceber facilmente de onde Elvis Presley tirou a introdução de Blue Suede Shoes.