Cordial, do latim cordiālis relativo ao coração. O conceito criado por Sérgio Buarque de Hollanda em seu clássico Raízes do Brasil deu margem a algumas deturpações, derivadas da acepção popular da palavra. Sergio nunca se referiu ao homem brasileiro simplesmente como afável ou simpático. Sua definição era bem mais aprofundada, e tentava ir à raiz de nossa personalidade constituída. O homem cordial de Sérgio é aquele que elegeu Lula, e também o que elegeu Bolsonaro, que fez Canudos e os protestos de 2013, capaz de ser alternada ou simultaneamente reacionário e revolucionário., um enigma a ser decifrado.
Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade – daremos ao mundo o “homem cordial”; A lhaneza do trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que estas virtudes possam significar “boas maneiras”, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. (…) Nossa forma de convício social é, no fundo, justamente o contrário da polidez. (…) No “homem cordial”, a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência. (…) O desconhecimento de qualquer forma de convívio que não seja ditada por uma ética de fundo emotivo representa um aspecto da vida brasileira que raros estrangeiros chegam a penetrar com facilidade. (…) A vida íntima do brasileiro nem é bastante coesa, nem bastante disciplinada, para envolver e dominar toda a sua personalidade, integrando-a, como peça consciente, no conjunto social. Ele é livre, pois, para se abandonar a todo o repertório de ideias, gestos e formas que encontre em seu caminho, assimilando-os frequentemente sem maiores dificuldades.
Em 1978, Edu Lobo lançou seu álbum Camaleão, cuja faixa de abertura era uma parceria com o poeta Cacaso, Lero-lero.
Lero-lero é a descrição acabada do homem cordial. Ou, para ser mais acertado, sua transcrição para o formato da MPB., como o corolário do projeto de Mário de Andrade de uma arte que atingisse a alma do Brasil, promovendo a leitura da produção cultural popular pela lente da estruturação formal européia, esta enriquecida por aquela. (Haja vista a faixa seguinte, sua gravação do Trenzinho do Caipira, de Villa-Lobos, com letra de Ferreira Gullar). Voltaremos ao homem cordial adiante. Mas por hora, guardemos este conceito para tratar de como o fenômeno da MPB teve, entre suas características principais, o assumir de forma estilizada e altamente elaborada o discurso do homem comum – não necessariamente o receptor ou consumidor, mas um outro, de um Brasil mais profundo. A MPB consolidou-se como a estilização da linguagem popular, num processo que tem seu precedente aberto em outra composição de Edu, esta com Capinan: Ponteio – e também em Disparada, de Geraldo Vandré e Théo de Barros.
Nestas duas canções, de mais de dez anos antes, o protagonista e narrador, o eu lírico, é o homem do campo, o autor do folclore, por assim dizer, mas parafraseado pelo poeta. Ponteio e Disparada, vencedoras de Festivais da Canção e enormes sucessos populares em grandes metrópoles, são a abertura da porteira (para usar uma expressão do mesmo universo) para que a produção musical voltada para a classe média não tenha mais pudores de levar para o eu lírico o processo de haurir-se da cultura da população rural e mais pobre, inclusive romantizando-a, ao estilizar seus ritmos e estilos musicais em sua produção, conseguindo assim, ao radicalizar o processo de mimetismo interclasses (E num album chamad Camaleão isto chega a soar divertido), um grau de diversidade e qualidade artística entre os maiores do mundo. (Sim, há inúmeras implicações de ordem social e mesmo ética envolvidos neste processo, e que precisam ser enfrentadas, mas que não serão objeto deste texto. Um dia tratarei disso).
Lero Lero, escrita muito depois de Ponteio e Disparada, quando este processo está consolidado no imaginário de nossa produção musical, é um passo na sequência lógica, num país que, entre estas canções, passou de majoritariamente rural a majoritariamente urbano: é a leitura da alma do homem comum, não mais em suas características regionais, mas mudando seu foco para a cidade, ou ao menos deixando em aberto sua origem. O protagonista de Lero Lero é o filho do de Ponteio, que foi morar na cidade. Cacaso não é povo, Edu não é povo, mas Lero-lero é a busca tanto estética quanto ética de estabelecer o ponto de contato possível entre ambos e uma identidade que se possa chamar brasileira, numa leitura de terceira pessoa trazida poeticamente para a primeira. Mas aqui, ao contrário de suas antecessoras, não se trata de narrar seus feitos, mas de fazer um auto-retrato. Edu e Cacaso tentam ir ao coração não do Brasil, mas do brasileiro, e, falando por ele, simultaneamente dar a ele o microfone. Quem é você?
E por ser a resposta a esta pergunta, Lero-lero é toda ela uma afirmação. Não há dúvidas aqui, nem na letra nem na melodia que martela a fundamental em assertivas peremptórias. O piano dobrado com o baixo apresentam o motivo que introduz a canção, também martelando a fundamental. Este motivo não será ouvido por toda a parte cantada, mas parece ecoar em toda ela. E nesta auto-enunciação transparece também um orgulho, uma profissão de fé de uma certa ética. Lero-lero é uma declaração de princípios que vai além de sua condição. Ser brasileiro, de estatura mediana, gostar de uma mulher que não o quer, não são em si os motivos de orgulho. O orgulho é de ultrapassar estas condições, de reagir a elas e sobreviver. Todo o tempo Lero-lero se equilibra entre estas duas posições, a da aceitação de sua condição e da atitude pessoal no limite do auto-elogio: bom de bola, ruim de grana, tabuada sei de cor.
E voltamos ao homem cordial. O homem regido pela relação pessoal se sobrepondo à instituição, o espaço privado se sobrepondo ao público, avesso ao ritual e à formalidade, capaz de uma relação íntima ao nível do desrespeitoso com os santos (como nas tradições de maltratar Santo Antônio para conseguir casamento, por exemplo). Mas também o sujeito de uma ética bastante rígida. Sua palavra não volta atrás, ele se basta, deve nada pra ninguém, faz como lhe convém. Uma ética pessoal que desdenha convenções, e mesmo tem um certo prazer não confessado em deixá-las de lado. Uma altivez teimosa que pode se manifestar tanto numa sabedoria instintiva quanto num dar com a cabeça na parede em suas decisões. Um quebra mas não verga, A cordialidade de Sérgio Buarque não exclui uma ferocidade.
Mas que não nega a poesia, e aí está um dos pulos do gato para o entendimento deste personagem que, no fundo, nos inclui. Nossa relação com ela é real e inegável, está aí, do repente ao rap. É, assim como a religiosidade, um ponto de contato do homem que é pão., pão, queijo, queijo, com o transcendente. A poesia não está incluída no lero-lero que ele não tolera, ao contrário, é o complemento necessário para ele, reconhecidamente, que vai do batente pro batuque. Mesmo esta poesia é, de algum modo, inscrita num ethos do trabalho, uma ordenação de mundo, pois é para isto que ela está aí. A poesia estrutura a vida como ela é, por isso é necessária, para que esta seja ao mesmo tempo aceita e enfrentada. com destemor e a partir de sua própria precariedade. O subjetivo é a arma secreta e insuspeita do homem comum. A gente não quer só comida.
A melodia/harmonia das estrofes intermediárias de Lero-lero quebram parcialmente a assertiva quase contínua da canção. A letra continua na mesma toada, mas a ida ao quarto grau serve de piso mais suave para os versos referentes à poesia. Em contraste, os momentos de maior tensão, tanto pelo agudo da melodia quanto pela chegada à uma dominante suspensa antes da volta ao tema, são os versos Tenho a minha solução e Desacato Satanás. O primeiro segue numa autoconfiança voluntariosa e não muito difícil de ser induzida ao erro. E o segundo, clamado quase como um grito ou um desafio temerário em praça pública, merece mais atenção.
Merece porque, ao fim e ao cabo, o homem cordial, mediano desde sua altura, que não é de meandros nem meio-termos, capaz, como afirmou Sérgio Buarque, de se abandonar a todo o repertório de ideias, gestos e formas que encontre em seu caminho, é também aquele capaz de se identificar com o discurso fascista, da autoridade patriarcal que se propõe a transpor para o Estado a ordenação familiar, tanto em termos simbólicos quanto organizacionais, levando seus filhos para mando do governo, mas também adotando abertamente o patrimonialismo e o favorecimento por afinidade e familiaridade, e não por competência burocrática (ainda que seu discurso frouxamente afirme coisa diferente). O homem cordial é vítima preferencial da pós-verdade, da afirmação enfática da simplicidade cortante, direta e convicta- e falsa. O homem que não tolera lero-lero é o que propaga memes, por meio dos quais acha que entendeu questões complexas. Ele acredita que a distância entre dois pontos �� sempre a linha reta, está disposto a rasgar o caminho para isto. Esta é sua força e também seu ponto fraco.
Ou pode-se dizer o contrário, que este é seu ponto fraco mas também sua força. Pois a ética de fundo emocional a que se refere Sérgio Buarque também pode impedir a instalação do mesmo discurso fascista, pelo reconhecimento do outro, da relação pessoal, acima da noção ideológica ou institucional. A mesma vida íntima pouco disciplinada que assimila sem dificuldades as ideias que lhe são impingidas, logo volta a fazer as contas – pois tabuada sabe de cor, ou seja, pelo coração., e é capaz então de desarrumar toda a trama e desacatar Satanás, assim que tem condições de identificar, do alto de sua mesma simplicidade, o distanciamento de tudo aquilo para si e sua vida.
A estrofe final de Lero-lero contém uma referência dupla, à Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, e ao choro Tico-Tico no Fubá, de Zequinha de Abreu, Esta estrofe foi desenvolvida por Cacaso a partir de outra, a inicial de seu poema Jogos Florais I:
Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico.
Enquanto isso o sabiá
vive comendo o meu fubá.
Ao que ele próprio responde na canção com Edu:
Diz um ditado natural da minha terra
Bom cabrito é o que mais berra onde canta o sabiá
Desacredito no azar da minha sina
Tico-tico de rapina, ninguém leva o meu fubá
A mudança de tom é evidente, com praticamente os mesmos elementos, e o maior responsável por ela é a passagem do tico-tico, de coadjuvante a protagonista do verso, de pobre vítima do predador a ele próprio feroz na defesa de seu direito = e na canção acompanhado de uma reafirmação de tônica e fundamental, numa assertiva cabal. Porém, não se trata de uma postura nova do homem cordial. A escolha do ditado popular Bom cabrito é o que mais berra reflete valores que não são necessariamente igualitários, por exemplo. O reflexo patriarcal e patrimonialista segue presente, a lei do mais forte continua em vigor. Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus, mesmo, se vier, que venha armado., diz Guimarães Rosa. Entretanto, há aqui um aviso e uma tomada de posição, quase um vaticínio: o aviso é que o brasileiro é, antes de tudo, um forte, agora parafraseando Euclides da Cunha, e que não aceita calado e inerte a injustiça; e o vaticínio é que o futuro não está escrito. Ou a onça me devora ou no fim vou rir melhor. As mesmas características contra formalismos e avessas a instituições que permitiram a fascinação pelo fascismo no poder têm a capacidade de desmoralizá-lo. O mesmo ceticismo que recusa a política tende a recusar mitos. O homem cordial está fazendo suas contas. O poeta que não nega sua raça está negaceando, dando a dica. Logo terá a sua solução.