Agora que se vai o Tríduo Momesco (adoro esta expressão), ficam algumas coisas para remoer. Depois de uma avalanche de blocos antigos e novos se espalharem sobre a cidade do Rio, espanta perceber que, afora os sambas de cada bloco, e embora as marchinhas antigas sejam o repertório majoritário de quase todos, nenhuma composição nova consegue se fazer ouvir por sobre a batucada do Céu na Terra ou do Cordão do Boitatá.
Não é que não haja repertório novo: só para dar um exemplo com mais visibilidade, a Fundição Progresso, desde 2006, promove um Concurso Nacional de Marchinhas que tem suas votações feitas dentro do programa Fantástico, da Rede Globo. As concorrentes são de ótima qualidade, divertidas, engraçadas, inteligentes. Pois nem assim alguma delas toca no rádio, e muito menos nas ruas durante o Carnaval. E aí então, por fadiga de material, ou seja, pelo cansaço de cantar sempre a mesma coisa todo ano, começam a surgir blocos como o ExaltaRei e Sargento Pimenta, que adaptam outros repertórios (respectivamente Roberto Carlos e Beatles) para ritmos carnavalescos, não apenas marchas – aliás, seguindo o exemplo do que o Monobloco já fazia. O que faz com que o eterno revival da marchinha seja sempre insuficiente para realmente reavivá-la?
Pois agora vou defender uma tese polêmica: é porque a função primordial da marchinha no carnaval passou a ser cumprida por outros estilos. Resumo dos acontecimentos: o Rio de Janeiro, via Rádio Nacional e por ser a capital do país, foi hegemônico musicalmente por décadas, enquanto outros estados quase não influenciavam a produção daqui – a não ser por importação, quando Caymmis e Gonzagas vinham se integrar ao cast das rádios.
Só que isso mudou com o tempo, o Rio perdeu sua hegemonia e hoje a situação se inverteu, ou pelo menos se equilibrou: se o samba e o funk cariocas modelam e influenciam a música de todo o Brasil, as influências de outros estados também se fazem sentir fortemente por aqui. E durante o período em que o carnaval de rua carioca estava morto, outros carnavais de rua cresceram e se fizeram notar: o baiano, o pernambucano, o paraense, com características muito próprias, e que passaram a ter seu lugar na mídia.
E acontece que estes carnavais há muito tempo já tem substitutos para a música de brincar carnaval – para dar o exemplo baiano, vide A festa, Poeira, Arerê, para não falar do Rebolation… São as novas marchinhas, cumprem a mesma função de divertir, animar e, de quebra, fazer, à sua maneira, a crônica de costumes de sua época. Descartáveis? Ora, mas para cada marchinha de que lembramos há vinte que foram soterradas, feitas para durar apenas aquele carnaval, e que hoje fazem a delícia dos pesquisadores. Do mesmo modo, para cada Ivete Sangalo há vários Gerônimos, que estão lá firmes e fortes nos trios e ainda farão a alegria dos pesquisadores também…
E resumindo, estas músicas passaram a conseguir extrapolar seus estados de origem, soando também nas ruas do Rio, e não só no carnaval. E quando os blocos de rua renascem, onde fica o espaço da marchinha? Para onde ela marcha?
Bendita Baderna – Edu Krieger – vencedora de 2009
Nossa Fantasia – vencedora em 2011
As duas marchinhas campeãs de Edu tem coisas em comum. Ambas são construídas em 3 partes diferentes, em vez de refrão e segundas, como a maioria absoluta das que fazem sucesso ainda hoje nos blocos (e muita gente não sabe as segundas). As de Edu, ou se sabe inteiras ou não se canta. E isto porque são o desenvolvimento de um raciocínio (até filos��fico, no primeiro caso. Nada contra, Chiquita Bacana já era existencialista), o contrário da marcha carnavalesca típica, mais episódica.
Edu Krieger considera possível um renascimento das marchinhas, e afirma:
Se fizermos uma análise histórica, podemos notar que a decadência das marchinhas começou justamente quando quiseram reduzi-las a um gênero musical sacaninha, divertidinho, debochadinho, de duplo sentido. As grandes marchinhas que fizeram história e se eternizaram, como Máscara negra, Jardineira, Touradas em Madri e tantas outras, não tinham esse compromisso com a irreverência banal, a crônica boba.
Ele tem razão. No entanto, Nossa Fantasia é um manifesto em favor de uma delicadeza encontrada em bem poucas das marchas cantadas pelos blocos – exceção feita a As Pastorinhas e mais uma ou duas. Edu fala explicitamente de carnaval na última estrofe (a pra empolgar) de suas duas vencedoras. Entretanto, talvez no caso o reducionismo não seja pensar a marcha como sacaninha e de duplo sentido, mas sim pensá-la como necessariamente de carnaval. Penso nisso ao lembrar que Futuros Amantes, de Chico Buarque, é uma marcha – e poucos se dão conta disso ao ouvi-la.
A marchinha vai ter que encontrar outro caminho, e não duvido que encontre. Apenas não deverá ser o do carnaval de rua que foi um dia. Assim como o carnaval de rua dificilmente tomará o caminho que se adivinhar para ele, seja qual for. Tenho para mim que compositores como Edu, que sabem dialogar com a tradição em busca de novas possibilidades de criação, serão imprescindíveis. Mas no caso da marchinha, talvez o apego a um contexto histórico esteja mais prejudicando que ajudando, e tentando revivê-la no mesmo lugar de meados do século XX, estejam marcando-a mais ainda como datada e passada. Talvez seja preciso trazê-la de volta para o mundo da canção, reencontrar seu espaço na música brasileira, recriá-la. Talvez seja melhor deixar a marchinha voar.