Tenho ânsia de ser o autor do mais puro, do mais simples. Parto para encontrar a forma mais doce de dizer as palavras e música de uma canção, num estribilho que você segure na cabeça, que trauteie, que assovie. Meu sonho é chegar à perfeição de ser o autor de uma Ciranda Cirandinha, uma coisa que se perca no meio do povo. – Dorival Caymmi, em entrevista ao jornalista Tárik de Souza nas páginas amarelas da Veja em maio de 1972.
A canção é uma condensação, uma síntese. De certa forma toda obra de arte é. Mas a canção é um formato específico em que este fenômeno ocorre de forma quase imprevista, como o voo do besouro. A junção de palavras com melodia e harmonia funcional em pouco mais de três minutos – poucos temas, não muitos versos. Formalmente, a canção não tem como ir muito longe, como iria uma sinfonia, por exemplo. Seu arco é curto. E no entanto, este arco tem a capacidade de subentender dentro de si mundos inteiros. A canção é um subentendido por excelência. E, de todos os cancionistas brasileiros, o que sem dúvida teve a maestria de fazer conter mais em menos, mundos inteiros em três minutos, foi Dorival.
E como é que ele conseguia, é a pergunta inevitável. O mistério de seu ofício, de sintetizar em poucos versos cantados não uma miríade de desdobramentos semióticos ou que tais, mas a vivência específica de algo com tamanha força e consistência que parece se tornar memória pessoal. Dorival é da linhagem dos mestres de ofício medievais, desenvolvedores em toda uma vida de suas técnicas refinadas em fazer o comum – uma cadeira, uma parede, um pão – algo ao mesmo tempo imanente e transcendente, apto ao uso cotidiano e portador de uma verdade profunda. Dorival sabia extrair e expor do evento diário a sua dimensão trágica, épica, e sabia fazer isso como o lapidador, com meia dúzia de golpes precisos. Como é que ele conseguia?
Para esta resposta há apenas pistas, e a primeira delas é descartar a noção de que estas sínteses tenham surgido prontas na mente de seu criador. As canções de Caymmi tiveram em geral ciclos longos de gestação, às vezes anos, e mais de uma versão antes da definitiva, interrompidas até que um verso se desatasse. Outra pista vem talvez do fato de que o próprio Caymmi tivesse dúvidas sobre seu método ou capacidade de realização. A neta Stella Caymmi, no livro sobre o avô O mar e o tempo, conta que em 1943, Caymmi, já conhecido desde 38 por O que é que a baiana tem ter sido gravada por Carmem Miranda,
procurou alguns amigos para discutir um desejo antigo. O baiano estava pensando seriamente em estudar música. Achava que não poderia ser um músico completo se não pudesse ler partituras. Esperava ser incentivado. Surpreendeu-se quando Villa-Lobos e Radamés Gnatalli o dissuadiram da ideia. Temiam que Caymmi perdesse sua espontaneidade de cantor popular. Em vista disso, ele desistiu até dos estudos que havia começado a fazer em casa por conta própria. Afinal, um conselho de um Villa-Lobos e de um Radamés não podia ser ignorado. Caymmi então recolheu seu chapéu e foi tratar de compor do jeito que estava acostumado.
E ainda na entrevista para Tarik, ele afirma:
Acontece que eu prefiro sempre a harmonia alterada (…) Deve ser instintivo, porque desde pequeno acho que o som deve ter outra beleza, além do acorde perfeito
Pois o caminho para chegar à simplicidade não é ele mesmo simples. E o desejo de Caymmi de que sua obra se confunda com a criação popular se mostra muito ambicioso, pois esta criação é fruto de séculos de lapidação de arestas. O lento processo de Dorival de encontrar, na complexidade, sua forma mais concisa, no contraste com este, se mostra extremamente veloz.
Pois se é exatamente a capacidade de ser simultaneamente simples e complexo com tal intensidade seu grande mistério, o caminho para compreendê-lo será acompanhar este processo. Tomemos uma canção de Caymmi arbitrariamente, pois, como diz Caetano, escrevi 400 canções e Dorival Caymmi 70. (na verdade, cerca de 120 catalogadas) Mas ele tem 70 canções perfeitas e eu não. Stella anota em seu livro:
Tô fazendo uma música com cara de pesca milagrosa – Caymmi anotou no dia 12 de julho (de 1975) em sua agenda. Em Rio das Ostras, nos dias que se seguem, ele continua trabalhando a música nova. O samba, depois chamado Milagre, típica canção praieira, foi gravado por Nana e Dorival, no disco da cantora, pela RCA, dois anos depois.
E eis aqui o primeiro esboço da futura Milagre:
Neste rascunho já é possível vislumbrar quase toda a estrutura da canção, mas o número de rasuras indica a quantidade de caminhos possíveis para praticamente todos os versos. Frases alternativas como Tinha que ter peixe pro pescador, pode ser que mude o tempo e Zeca nem se incomodou foram mais tarde buriladas. Ao menos uma foi deixada de lado, Tinha que ter peixe, sim, sinhô. O verso final, imensamente expressivo, já era definitivo desde então.
Alguns dias depois, Dorival volta ao trabalho.
Esta versão de Milagre, de alguns dias depois, é reveladora de alguns procedimentos de Dorival. Um deles, que é encontrado também em canções como João Valentão ou Das rosas, consiste em uma primeira estrofe introdutória, contrastando com uma segunda parte mais longa, por assim dizer principal. A melodia pensada por Dorival para a introdução Me contaram um caso um dia / De um fato que se passou / Se é verdade o que disseram / Foi milagre do Sinhô não é conhecida, mas é possível presumir que seria mais lenta que o samba que se segue. E por que terá sido descartada? Outra vez a resposta é uma conjectura, mas a mais provável seria: em nome da concisão. Dorival deve ter avaliado que a introdução pouco acrescentava de informação. Ela poderia ter a função de estabelecer um caráter algo lendário à história contada a seguir – caráter que ela já tem. Ademais, esta primeira estrofe seria único lugar da canção onde a palavra que deu seu título, ainda não escolhido, apareceria, e talvez tenha sido deixada de lado para evitar a redundância – veremos logo a função primordial da repetição na música de Dorival, e a diferença entre esta e a redundância.
Outro ponto a ser notado é a variedade de ações aventadas para o terceiro pescador, Zeca. Três hipóteses são postas: não parou, não cansou, ou lutou. Talvez Dorival pensasse em utilizar mais de uma neste momento. Mas a multiplicidade de opções é um sintoma de que talvez ele não estivesse satisfeito com nenhuma delas, o que vai se confirmar na versão definitiva, em que todos são descartados e Zeca, esse nem falou.
O processo de composição de Milagre começa em julho e termina em setembro.
Neste manuscrito Milagre aparece já com sua feição definitiva, quase sem correções. A principal não está na letra, mas no título. Pesca Milagrosa é substituída por Milagre, simplesmente. Outra vez a busca da concisão: desnecessário informar que se trata de pesca. Escrever é cortar palavras, disse Drummond.
Caymmi só chegou a gravar Milagre sozinho em 1984, para um LP da Funarte. Mas, como anunciou Stella, em 1977 a canção tem seu primeiro registro pela filha Nana, e o próprio Dorival.
A estrutura de Milagre então surge inteira em apenas onze versos. Uma estrofe de apresentação dos personagens, uma com a ação propriamente dita, e um verso de encerramento. Esquemático? Não, econômico. Nem uma sílaba é desnecessária. Os dois primeiros versos (aliás, cantados ad libitum na primeira vez, como que substituindo a introdução descartada) fazem a descrição objetiva: três pescadores embarcaram de manhã. E os dois seguintes situam a narrativa no plano mítico, prenunciando o transcendente, traçando a ligação com o sagrado que passará a pairar sobre os acontecimentos: era quarta-feira santa. A primeira estrofe situa o ouvinte nos dois planos da história, mas sem usar uma metáfora sequer. O antropólogo Antônio Risério diz que Caymmi faz uma leitura literal do litoral. Tudo que se ouve são histórias, descrições. O transcendente contido nelas transborda sem a necessidade de mais nada.
E de repente, o tempo vira. O aspecto trágico da vida do pescador é explorado em inúmeras canções praieiras. Em O Mar, por exemplo, que Dorival considerava talvez sua canção preferida, o verso de abertura tão banal O mar quando quebra na praia é bonito, ao ser repetido no fim, depois de cantada a morte trágica de Pedro, que não volta no fim do dia, e o sofrimento desesperado de Rosinha, adquire uma conotação terrível. Longe de mera repetição, ele traz uma transfiguração de sentido que beira o apavorante. Assim, o anúncio da virada repentina do tempo abre a porta para a possibilidade da tragédia, instaurando a tensão. E aqui Dorival mostra sua maestria: o tom muda junto com o tempo, descendo uma terça. Muda sem preparação, mas o que causa a sensação de mudança sequer é a passagem de tônicas, mas sim o fim do verso Aí o tempo virou, quando a harmonia para no segundo grau do novo tom, depois de o acorde do tom ter sido usado na verdade como uma passagem modal para ele. O alvo da modulação não fica claro imediatamente, gerando a sensação no ouvinte de desestabilização: o barco pode virar.
Mas Milagre é uma canção épica, não trágica. Maurino, Dadá e Zeca guentaram, labutaram, nem falaram. E o tempo serenou. E o peixe veio, junto com a volta à tonalidade inicial. O perigo é recompensado, era só jogar a rede e puxar. A repetição do verso, longe de uma tautologia, remete à repetição do gesto, e a própria frase tem a entonação da história contada, é possível imaginá-la na boca do próprio pescador contando o dia da fartura que ficou na memória da aldeia.
Então, quando parecia que não seria possível ser mais conciso, sintético, econômico, surge João Gilberto.
João gravou Milagre no magistral álbum Brasil, com Caetano Veloso e Gilberto Gil. A gravação de João, Gil e Caetano consegue ser ainda mais econômica que a própria canção do Dorival, ao abreviar as repetições de frases, a da apresentação e a final – de melodias similares, particularmente a frase inicial ascendente. Ele as resume ao mínimo essencial. Era quarta-feira santa, dia de pescar e de pescador passa a ser apenas Quarta-feira santa, dia de pescador. E a frase final, esta é reduzida a apenas duas palavras, tornando-se A rede. Estas três sílabas são suficientes para evocar toda a frase melódica e consegue, incrivelmente, ainda intensificar a força dos versos. E, seguindo o exemplo de Caymmi, ao retirar toda a dramaticidade possível e preocupar-se unicamente com a própria história e com a própria canção, João permite que se mostre toda a sua expressividade e beleza. Em João, como em Caymmi, menos é mais.
A referência bíblica de Milagre é propositalmente múltipla e algo vaga. A menção inicial à Quarta-Feira Santa não encontra correspondência no restante da letra. O amansamento da tempestade (ou talvez apenas um vento virado) que atinge os pescadores remete a uma passagem de Jesus, enquanto a óbvia pesca milagrosa, primeiro título do samba, é outra – aliás, são duas as relatadas no Novo Testamento. E o próprio Dorival acrescenta ter buscado nos símbolos do pescador e do peixe a simbologia cristã. A relação com o sagrado, o transcendente, permeia toda a canção unicamente à base de alusões que não se desviam um milímetro da função de contar. Caymmi elimina toda repetição meramente literária, como usar duas palavras diferentes para referir-se à mesma coisa, e ao encontrar a palavra justa, aí sim se permite repeti-la, saboreá-la – e até a isso João Gilberto renuncia, mas paradoxalmente, é exatamente este rigor quase estoico que retira todos os obstáculos de significados acessórios e permite que o metafísico emerja na escuta de Milagre. Depois de analisar, dissecar todos estes detalhes, compreendendo um pouco do caminho percorrido pelo artesão para fabricar este cristal Baccarat, ainda mais belo pelo que se vê através dele, a pergunta persiste: como é que Dorival conseguia? Qualquer resposta será insuficiente. Como toda canção de Caymmi, Milagre é uma aula de mistério.
_____________________________________________________
Dois brindes sobre as canções praieiras de Dorival, que serviram de fontes para este texto:
Artigo de Paulo da Costa e Silva; e
Aula show com Zé Miguel Wisnik e Arthur Nestroviski.