O Milagre de Dorival

Tenho ânsia de ser o autor do mais puro, do mais simples. Parto para encontrar a forma mais doce de dizer as palavras e música de uma canção, num estribilho que você segure na cabeça, que trauteie, que assovie. Meu sonho é chegar à perfeição de ser o autor de uma Ciranda Cirandinha, uma coisa que se perca no meio do povo. – Dorival Caymmi, em entrevista ao jornalista Tárik de Souza nas páginas amarelas da Veja em maio de 1972.

A canção é uma condensação, uma síntese. De certa forma toda obra de arte é. Mas a canção é um formato específico em que este fenômeno ocorre de forma quase imprevista, como o voo do besouro. A junção de palavras com melodia e harmonia funcional em pouco mais de três minutos – poucos temas, não muitos versos. Formalmente, a canção não tem como ir muito longe, como iria uma sinfonia, por exemplo. Seu arco é curto. E no entanto, este arco tem a capacidade de subentender dentro de si mundos inteiros. A canção é um subentendido por excelência. E, de todos os cancionistas brasileiros, o que sem dúvida teve a maestria de fazer conter mais em menos, mundos inteiros em três minutos, foi Dorival.

E como é que ele conseguia, é a pergunta inevitável. O mistério de seu ofício, de sintetizar em poucos versos cantados não uma miríade de desdobramentos semióticos ou que tais, mas a vivência específica de algo com tamanha força e consistência que parece se tornar memória pessoal. Dorival é da linhagem dos mestres de ofício medievais, desenvolvedores em toda uma vida de suas técnicas refinadas em fazer o comum – uma cadeira, uma parede, um pão – algo ao mesmo tempo imanente e transcendente, apto ao uso cotidiano e portador de uma verdade profunda. Dorival sabia extrair e expor do evento diário a sua dimensão trágica, épica, e sabia fazer isso como o lapidador, com meia dúzia de golpes precisos. Como é que ele conseguia?

Para esta resposta há apenas pistas, e a primeira delas é descartar a noção de que estas sínteses tenham surgido prontas na mente de seu criador. As canções de Caymmi tiveram em geral ciclos longos de gestação, às vezes anos, e mais de uma versão antes da definitiva, interrompidas até que um verso se desatasse. Outra pista vem talvez do fato de que o próprio Caymmi tivesse dúvidas sobre seu método ou capacidade de realização. A neta Stella Caymmi, no livro sobre o avô O mar e o tempo, conta que em 1943, Caymmi, já conhecido desde 38 por O que é que a baiana tem ter sido gravada por Carmem Miranda,

procurou alguns amigos para discutir um desejo antigo. O baiano estava pensando seriamente em estudar música. Achava que não poderia ser um músico completo se não pudesse ler partituras. Esperava ser incentivado. Surpreendeu-se quando Villa-Lobos e Radamés Gnatalli o dissuadiram da ideia. Temiam que Caymmi perdesse sua espontaneidade de cantor popular. Em vista disso, ele desistiu até dos estudos que havia começado a fazer em casa por conta própria. Afinal, um conselho de um Villa-Lobos e de um Radamés não podia ser ignorado. Caymmi então recolheu seu chapéu e foi tratar de compor do jeito que estava acostumado.

E ainda na entrevista para Tarik, ele afirma:

Acontece que eu prefiro sempre a harmonia alterada (…) Deve ser instintivo, porque desde pequeno acho que o som deve ter outra beleza, além do acorde perfeito

Pois o caminho para chegar à simplicidade não é ele mesmo simples. E o desejo de Caymmi de que sua obra se confunda com a criação popular se mostra muito ambicioso, pois esta criação é fruto de séculos de lapidação de arestas. O lento processo de Dorival de encontrar, na complexidade, sua forma mais concisa, no contraste com este, se mostra extremamente veloz.

Pois se é exatamente a capacidade de ser simultaneamente simples e complexo com tal intensidade seu grande mistério, o caminho para compreendê-lo será acompanhar este processo. Tomemos uma canção de Caymmi arbitrariamente, pois, como diz Caetano, escrevi 400 canções e Dorival Caymmi 70. (na verdade, cerca de 120 catalogadas) Mas ele tem 70 canções perfeitas e eu não. Stella anota em seu livro:

Tô fazendo uma música com cara de pesca milagrosa – Caymmi anotou no dia 12 de julho (de 1975) em sua agenda. Em Rio das Ostras, nos dias que se seguem, ele continua trabalhando a música nova. O samba, depois chamado Milagre, típica canção praieira, foi gravado por Nana e Dorival, no disco da cantora, pela RCA, dois anos depois.

E eis aqui o primeiro esboço da futura Milagre:

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Neste rascunho já é possível vislumbrar quase toda a estrutura da canção, mas o número de rasuras indica a quantidade de caminhos possíveis para praticamente todos os versos. Frases alternativas como Tinha que ter peixe pro pescador, pode ser que mude o tempo e Zeca nem se incomodou foram mais tarde buriladas. Ao menos uma foi deixada de lado, Tinha que ter peixe, sim, sinhô. O verso final, imensamente expressivo,  já era definitivo desde então.

Alguns dias depois, Dorival volta ao trabalho.

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Esta versão de Milagre, de alguns dias depois, é reveladora de alguns procedimentos de Dorival. Um deles, que é encontrado também em canções como João Valentão ou Das rosas, consiste em uma primeira estrofe introdutória, contrastando com uma segunda parte mais longa, por assim dizer principal. A melodia pensada por Dorival para a introdução Me contaram um caso um dia / De um fato que se passou / Se é verdade o que disseram / Foi milagre do Sinhô não é conhecida, mas é possível presumir que seria mais lenta que o samba que se segue. E  por que terá sido descartada? Outra vez a resposta é uma conjectura, mas a mais provável seria: em nome da concisão. Dorival deve ter avaliado que a introdução pouco acrescentava de informação. Ela poderia ter a função de estabelecer um caráter algo lendário à história contada a seguir – caráter que ela já tem. Ademais, esta primeira estrofe seria único lugar da canção onde a palavra que deu seu título, ainda não escolhido, apareceria, e talvez tenha sido deixada de lado para evitar a redundância – veremos logo a função primordial da repetição na música de Dorival, e a diferença entre esta e a redundância.

Outro ponto a ser notado é a variedade de ações aventadas para o terceiro pescador, Zeca. Três hipóteses são postas: não parou, não cansou, ou lutou. Talvez Dorival pensasse em utilizar mais de uma neste momento. Mas a multiplicidade de opções é um sintoma de que talvez ele não estivesse satisfeito com nenhuma delas, o que vai se confirmar na versão definitiva, em que todos são descartados e Zeca, esse nem falou.

O processo de composição de Milagre começa em julho e termina em setembro.

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Neste manuscrito Milagre aparece já com sua feição definitiva, quase sem correções. A principal não está na letra, mas no título. Pesca Milagrosa é substituída por Milagre, simplesmente. Outra vez a busca da concisão: desnecessário informar que se trata de pesca. Escrever é cortar palavras, disse Drummond.

Caymmi só chegou a gravar Milagre sozinho em 1984, para um LP da Funarte. Mas, como anunciou Stella, em 1977 a canção tem seu primeiro registro pela filha Nana, e o próprio Dorival.

A estrutura de Milagre então surge inteira em apenas onze versos. Uma estrofe de apresentação dos personagens, uma com a ação propriamente dita, e um verso de encerramento. Esquemático? Não, econômico. Nem uma sílaba é desnecessária. Os dois primeiros versos (aliás, cantados ad libitum na primeira vez,  como que substituindo a introdução descartada) fazem a descrição objetiva: três pescadores embarcaram de manhã. E os dois seguintes situam a narrativa no plano mítico, prenunciando o transcendente, traçando a ligação com o sagrado que passará a pairar sobre os acontecimentos: era quarta-feira santa. A primeira estrofe situa o ouvinte nos dois planos da história, mas sem usar uma metáfora sequer. O antropólogo Antônio Risério diz que Caymmi faz uma leitura literal do litoral. Tudo que se ouve são histórias, descrições. O transcendente contido nelas transborda sem a necessidade de mais nada.

E de repente, o tempo vira. O aspecto trágico da vida do pescador é explorado em inúmeras canções praieiras. Em O Mar, por exemplo, que Dorival considerava talvez sua canção preferida, o verso de abertura tão banal O mar quando quebra na praia é bonito, ao ser repetido no fim, depois de cantada a morte trágica de Pedro, que não volta no fim do dia, e o sofrimento desesperado de Rosinha, adquire uma conotação terrível. Longe de mera repetição, ele traz uma transfiguração de sentido que beira o apavorante. Assim, o anúncio da virada repentina do tempo abre a porta para a possibilidade da tragédia, instaurando a tensão. E aqui Dorival mostra sua maestria: o tom muda junto com o tempo, descendo uma terça. Muda sem preparação, mas o que causa a sensação de mudança sequer é a passagem de tônicas, mas sim o fim do verso Aí o tempo virou, quando a harmonia para no segundo grau do novo tom, depois de o acorde do tom ter sido usado na verdade como uma passagem modal para ele. O alvo da modulação não fica claro imediatamente, gerando a sensação no ouvinte de desestabilização: o barco pode virar.

Mas Milagre é uma canção épica, não trágica. Maurino, Dadá e Zeca guentaram, labutaram, nem falaram. E o tempo serenou. E o peixe veio, junto com a volta à tonalidade inicial. O perigo é recompensado, era só jogar a rede e puxar. A repetição do verso, longe de uma tautologia, remete à repetição do gesto, e a própria frase tem a entonação da história contada, é possível imaginá-la na boca do próprio pescador contando o dia da fartura que ficou na memória da aldeia.

Então, quando parecia que não seria possível ser mais conciso, sintético, econômico, surge João Gilberto.

João gravou Milagre no magistral álbum Brasil, com Caetano Veloso e Gilberto Gil. A gravação de João, Gil e Caetano consegue ser ainda mais econômica que a própria canção do Dorival, ao abreviar as repetições de frases, a da apresentação e a final – de melodias similares, particularmente a frase inicial ascendente. Ele as resume ao mínimo essencial. Era quarta-feira santa, dia de pescar e de pescador passa a ser apenas Quarta-feira santa, dia de pescador. E a frase final, esta é reduzida a apenas duas palavras, tornando-se A rede. Estas três sílabas são suficientes para evocar toda a frase melódica e consegue, incrivelmente, ainda intensificar a força dos versos. E, seguindo o exemplo de Caymmi, ao retirar toda a dramaticidade possível e preocupar-se unicamente com a própria história e com a própria canção, João permite que se mostre toda a sua expressividade e beleza. Em João, como em Caymmi, menos é mais.

A referência bíblica de Milagre é propositalmente múltipla e algo vaga. A menção inicial à Quarta-Feira Santa não encontra correspondência no restante da letra. O amansamento da tempestade (ou talvez apenas um vento virado) que atinge os pescadores remete a uma passagem de Jesus, enquanto a óbvia pesca milagrosa, primeiro título do samba, é outra – aliás, são duas as relatadas no Novo Testamento. E o próprio Dorival acrescenta ter buscado nos símbolos do pescador e do peixe a simbologia cristã. A relação com o sagrado, o transcendente, permeia toda a canção unicamente à base de alusões que não se desviam um milímetro da função de contar. Caymmi elimina toda repetição meramente literária, como usar duas palavras diferentes para referir-se à mesma coisa, e ao encontrar a palavra justa, aí sim se permite repeti-la, saboreá-la – e até a isso João Gilberto renuncia, mas paradoxalmente, é exatamente este rigor quase estoico que retira todos os obstáculos de significados acessórios e permite que o metafísico emerja na escuta de Milagre. Depois de analisar, dissecar todos estes detalhes, compreendendo um pouco do caminho percorrido pelo artesão para fabricar este cristal Baccarat, ainda mais belo pelo que se vê através dele, a pergunta persiste: como é que Dorival conseguia? Qualquer resposta será insuficiente. Como toda canção de Caymmi, Milagre é uma aula de mistério.

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Dois brindes sobre as canções praieiras de Dorival, que serviram de fontes para este texto:

Artigo de Paulo da Costa e Silva; e

Aula show com Zé Miguel Wisnik e Arthur Nestroviski.

 

Letra e (é) poesia

Assisti outro dia o documentário de Helena Soldberg Palavra (En)cantada, feito em 2009, e que trata da temática da letra de música. Ou, como diz a sinopse do filme do seu sítio, a relação entre poesia e música. O que gera uma questão antiga e nunca bem resolvida, e que o filme explora bem, da diferença entre letra de música e poesia. E também nos lembra da excelência que as letras de música alcançaram no Brasil, a ponto de alguns afirmarem que aqui a canção popular assumiu funções e referências que seriam originalmente da intelectualidade, da filosofia, com a vantagem de tornar acessíveis à população discussões e temas que de outra forma lhe estariam vedados, e isto sem perder necessariamente ar despretensioso que lhe é indispensável – pois senão não seria popular.

Daí, talvez, a confusão entre poesia e letra de canção por aqui ser ainda maior, inclusive porque muitos poetas fazem ou fizeram letras, a começar pelo decano deles, Vinícius de Moraes. José Miguel Wisnik comenta que Vinícius foi seguidamente decepcionando os que esperavam determinadas coisas dele. De diplomata, “caiu” a poeta. E de poeta “caiu” a letrista!  E de fato, a escrita de Vinícius é deliberadamente mais simples ao escrever canção. Mas afirmar que isto se deva a uma subestimação do público mais amplo que passou a ter pode ser uma afirmação apressada.

Um amigo meu, ao fazer a análise de Eu sei que vou te amar, disse que era a música mais neurótica que ele conhecia. E de fato, mais da  metade dos versos termina com a frase do título, numa repetição obsessiva que, em termos estritamente técnicos, não parece condizer com a capacidade do Vinícius. A não ser claro, que nos lembremos das rupturas modernistas e do poema de Drummond No meio do caminho, igualmente obsessivo. E somado ao fato de que Vinícius usa estas repetições para tirar partido da melodia, que repete a terminação de cinco notas em linha reta cada vez mais agudo, cada vez mais agudo…

Wisnik também lembra, na aula-show da Rádio Batuta de que já falei aqui, o fato de que a temática de Vinícius não muda tanto quanto se pensa, ao passar da poesia à letra. Vide a Balada das meninas de bicicleta:

Meninas de bicicleta
Que fagueiras pedalais
Quero ser vosso poeta!
Ó transitórias estátuas
Esfuziantes de azul
Louras com peles mulatas
Princesas da zona sul

ou A mulher que passa:

Meu Deus, eu quero a mulher que passa
Seu dorso frio é um campo de lírios
Tem sete cores nos seus cabelos
Sete esperanças na boca fresca!
Oh! como és linda, mulher que passas
Que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!

e, finalmente, a Garota de Ipanema:

Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça
É ela a menina que vem e que passa,
Num doce balanço, a caminho do mar

E o que diferencia umas das outras? Ora, o fato de que, na terceira, o doce balanço não está apenas nas ancas da menina, mas também no violão, a graça não está apenas na menina, mas na melodia construída pela tríade de uma tonalidade e acompanhada por acordes de outra. Em suma, pela relação com a canção, que afirma paralelamente coisas que reforçam e completam a letra, que por sua vez foi construída para ser complementada, e não para existir sozinha.

Emblemático disto é a cena de Chico Buarque, no Palavra (Em)cantada, tentando recitar a letra de sua canção Uma Palavra e não conseguindo, passando a cantar enquanto explica que a repetição de palavra no fim de cada estrofe se deve à estrutura melódica. Ou cantando o Choro Bandido, dele e de Edu Lobo, e dizendo “o Edu vai me matar por cantar sem acompanhamento“. Ou seja, neste caso, cantar a melodia não basta, a letra precisa também da harmonia para fazer seu sentido completo.

Chico revela também que, quando musicou Morte e Vida Severina, o poema de João Cabral de Melo Neto, o poeta não sabia. Soube depois, quando a peça fez um enorme e inesperado sucesso e foi parar em Paris, e que mesmo depois, Chico não ficou convencido de que ele tivesse mesmo gostado, para além dos cumprimentos cavalheirescos que recebeu. Aliás, é notória a aversão de João Cabral por música, o que, numa poética em que o ritmo é elemento tão fundamental, é espantoso. Ou talvez ele não gostasse de música justamente por achar que a poesia iria se bastar. A este respeito, ou seja, dele e de João Donato, Caetano escreveu Outro Retrato:

Minha música vem da música da poesia de um poeta João que não gosta de música
Minha poesia vem da poesia da música de um João músico que não gosta de poesia

Antônio Cícero também revela no documentário  – e em seu magnífico blog em que trata de filosofia e poesia – que nunca pensara em escrever letras, até sua irmã Marina subtrair um poema seu e musicá-lo. Adriana Calcanhoto, em um show, contava sobre sua parceria com Cícero: ela só sabe musicar letras, e ele só sabe letrar músicas (ou seja, quando escreve sem música prévia, não é letra de música, é poesia). Para resolver este dilema, Adriana foi obrigada a escrever ela mesma uma letra, musicá-la, e depois jogá-la fora e mandar a melodia para Antônio Cícero letrar de novo! Foi assim que nasceram canções como esta, de métrica variada a cada verso (um verso branco de canção?):

Inverno – Adriana Calcanhoto e Antônio Cícero

Para fechar, dois exemplos de poesia musicada, em processos muito diferentes. Fagner fez canções com vários poemas de Cecília Meireles, começando por Canteiros.

Só que, na verdade, este não se trata de um poema musicado. Fagner usou apenas a quinta estrofe do poema Marcha, de Cecília, para fazer apenas a primeira estrofe da canção – e mesmo assim com diversas mudanças de palavras, e sem dar o crédito. Isto acabou num imbróglio judicial que durou de 1973, quando o primeiro álbum de Fagner foi lançado, até 1999, quando finalmente ele teve autorização para regravar a canção, num álbum ao vivo. A história completa do processo pode ser lida aqui no sítio do cantor, num texto bastante isento.

Já Dorival Caymmi pegou pela mão Manuel Bandeira. Há uma gravação belíssima do filho Dori com Olivia Hime, num álbum só de poesia do Bandeira musicada. Cabotinamente, trago uma gravação feita por um grupo que integrei, juntamente com Emília Cassiano e Wladimir Pinheiro.

Balada do Rei das Sereias – com Ábaco

Caymmi respeita e sublinha cada sílaba do poema original, incluindo as conjugações verbais eruditas, e faz uma melodia bem ao seu feitio: simplíssima e cheia de sutilezas, como a variação entre tom maior e menor pontuando a passagem da voz masculina para feminina, do rei para as sereias.

São dois exemplos opostos de uso da poesia como letra de canção. Mas não necessariamente com resultados opostos. Duas grandes canções saíram desta relação. Poderia ser diferente, porque uma boa poesia não é uma boa letra, e vice-versa. Mas letra é poesia, segundo o letrista Carlos Rennó. E Chico Buarque não é poeta, segundo o próprio. E mais conclusões deixo para vocês.

A utopia Itapuã

Nas aulas-show que já comentei e recomendei aqui intituladas O Fim da Canção, na Rádio Batuta do Instituto Moreira Salles, José Miguel Wisnik e Arthur Nestrovski dissecam no capítulo Visões do Paraiso uma canção em particular:

Saudade de Itapuã (Coqueiro de Itapuã) – Dorival Caymmi

A análise de Wisnik e Nestrovski vai desde como Itapuã era um local afastado da cidade nos anos 40, assim como Salvador era uma cidade apartada culturalmente do Brasil, até detalhes da relação melodia/letra como a repetição de palavras estendida para o agudo usada como uma forma de evocação: o ouvinte é situado na praia de Itapuã enquanto escuta os primeiros versos, para só depois ser avisado de que se trata de uma lembrança: saudade de Itapuã, me deixa.

Mas o que mais me interessa, e que no fundo era o mote da análise, é esta construção do mito de um lugar, e a representação deste lugar, mesmo existente, como uma utopia de lugar, seja no passado ou no futuro, como um Brasil de alguma maneira possível, ainda que na lembrança de um paraíso perdido, mas que persiste na memória e nos guia ainda hoje.

Espera aí, será que não estou exagerando? Será que é possível extrair toda esta torrente de significações desta canção tão simples, como aliás todas do Dorival?

Itapuã – Caetano Veloso (ao vivo)

Wisnik cantou esta música, sem comentá-la, na sequência da enumeração de várias outras que exploram e desenvolvem a idealização de Itapuã como um lugar que, de real, torna-se lendário, e não somente de Itapuã. Maracangalha (a 57 km de Salvador), também de Dorival, assim como a Pasárgada (cidade da antiga Pérsia) do poema de Bandeira, existem ou existiram objetivamente, mas o que importa isso? Importa a simbolização do Paraíso Perdido.

Pois desde a carta de Caminha – que aportou na Bahia – que o Brasil é visto com uma espécie de paraíso reconquistado. Há suficiente literatura sobre isso, da citação famosa de Maiakovski: Dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz, até a lenda irlandesa (!) da ilha encantada de Hi-Brasil, ou a também famosa frase de Stefan Zweig, na verdade o título de um de seus livros: Brasil, país do futuro.

Em Caymmi, Itapuã é presente, embora distante no espaço – ele pede ao vento que traga notícias de lá toda manhã. Já em Caetano, é recordação da infância, ou da inocência – distante no tempo. A canção é dividida em duas. A primeira parte, que retorna no fecho, em andamento mais lento, evoca recordações; a segunda e principal, mais movida, invoca a própria Itapuã e a faz presente:

Itapuã,
Quando tu me faltas, tuas palmas altas
mandam um vento a mim assim Caymmi

Ou seja, a canção pela qual Caetano faz a invocação de Itapuã é a própria canção de Caymmi, transfigurada. É Caymmi quem traz notícia de Itapuã para Caetano, toda vez que este precisa. Não à toa, é usado o mesmíssimo recurso de estender para o agudo a palavra do lugar recordado, logo no primeiro verso: Itapuã, logo depois, ainda mais agudo, Abaeté.

E na repetição de um verso inicial encerando a canção, fica claro que o que inicialmente soava como uma história de amor entre homem e mulher, na verdade tinha outro objeto: Ela foi a minha guia quando eu era alegre e jovem. Ela é Itapuã, que, mesmo distante, faz-se presente: Nada estanca Itapuã, ainda sou feliz. A utopia de lugar serve de guia para a vida, para a busca desta utopia talvez.

E uma última pista parece reconfirmar esta leitura: na primeira gravação desta canção, no álbum Circuladô, Caetano chamou o filho Moreno para dividir os vocais, cantando inclusive os dois primeiros versos/chave. Caetano passa o bastão do país do futuro, levando seu filho não até Itapuã, mas até Caymmi, reconhecendo que Caymmi, cantando Itapuã, cantou a ilha, ou  melhor, a praia encantada de Hi-Brasil, onde parece que há um homem feliz.

João, o radical – parte 1

Sou amigo do João Gilberto. No Facebook, claro. E é claro que já soube também que não deve ser ele, graças a uma reportagem duvidosa da Revista Veja, que transforma declarações dele ao longo de dez meses em uma espécie de entrevista sem perguntas, e, fiel à sua atual linha editorial mais anedótica que analítica, preocupa-se em pintar um João exótico, sem trazer nada sobre o que realmente importa: sua música.

João inventou um jeito de fazer música que é a síntese de tanta coisa ao mesmo tempo que fica difícil fazer a lista. Ele é o lugar onde a música popular brasileira feita até então se condensa num ponto só, como uma singularidade física, e daí novamente se expande como num big bang. Mas tudo passa por ele, como a areia de uma ampulheta tem de passar pelo centro (desculpando a mistura de metáforas). E tudo o que se faz na música posterior a João se faz, de algum modo, pelos ouvidos dele.

Não é à toa que Milton, Chico, Caetano, Gil e muitos outros já disseram em entrevistas que começaram a tocar violão depois de ouvir o João. Gil, inclusive, tocava acordeão, e mudou quando ouviu Chega de Saudade. Talvez o que aventei no parágrafo anterior explique porque boa parte do grande público gosta dos que gostam de João, mas não do próprio João. Talvez a síntese de informações contida em sua música a torne mesmo difícil de ser decodificada. Caetano, Chico e outros fazem esta decodificação, de certa forma diluindo João ao escolher aspectos de sua música para desenvolver e misturar com outras influências.

Muitos já disseram que as canções de Tom Jobim parecem ter sido feitas para o João. Entendo que, no surgimento da Bossa-Nova, realmente uma catalizava a outra, as duas com o ar de novidade necessário ao momento, mas hoje, cada vez mais, acho que a interpretação de João foi feita para Caymmi, um compositor anterior à Bossa. Não é por acaso que João foi cada vez mais preferindo gravar canções mais antigas, deixando o repertório de Tom um pouco de lado, ao mesmo tempo que Tom, em sua última fase, reuniu um grupo – a Banda Nova – para poder fazer melhor o que já fazia – compor os arranjos junto com as canções. Neste ponto, ele também se distancia de João, haja vista que, no primeiro állbum de João, os arranjos são de Tom.

E o que João faz com as canções antigas, como também faz com as de Tom? Mais ou menos o contrário do que Tom fez, ou seja, em vez de vesti-las com a elegância de um coro feminino, flauta, violoncelo, João as despe. Tira delas tudo o que for acessório. Sobram a melodia, cantada sem nenhum efeito; a harmonia, homogeneizada na parede dos acordes do violão; e o rítmo. Ah, o ritmo. Todas as sutilezas de tempo e contratempo possíveis. É a única concessão a que João se permite. Mas mesmo esta está unicamente a serviço da canção. Eis aí o radicalismo absoluto de João. Como um fotógrafo da Playboy – vá lá, como um Rubens, ele deixa nua a canção, e a registra com todo o requinte – e sem Photoshop. Então a canção aparece inteira, sem disfarces.

E quando a canção foi despida de seus arranjos orquestrais, de seu canto empostado, ela se revela realmente como é – e a escolha de repertório do João é impecável, redescobrindo jóias esquecidas e as reinventando para o público. Várias delas depois foram regravadas por outros artistas, e só então caíram na boca do público – como Sandália de Prata, de Ari Barroso, que depois de passar por João virou Isto aqui o que é, com Caetano, e foi tema de novela.

Eu ainda ia falar aqui sobre duas composições do João, Oba-lá-lá e Bim-bom, que são a síntese da canção como João é a síntese da interpretação, mas vai ficar para outro artigo. Termino comparando três gravações da mesma música, pré, durante e pós-João. Convido o leitor a ouvir como ele “resume” a interpretação de Caymmi, e como o Casuarina e o Moinho “se apossam” do que ele fez com a música, independente do tom festivo que trazem. É um bom exemplo de como ficou impossível fazer música brasileira sem o prisma radical que ele nos legou. 

Rosa Morena com Dorival Caymmi

Rosa Morena com João Gilberto 

Rosa Morena com Casuarina e Moinho 

 

Para onde vai a autoria afinal?

Trago o terceiro artigo que escrevi para a revista virtual Arte Institucional nº5.

João Brasil prometeu – e está cumprindo – fazer um mashup por dia ao longo de 2010. O resultado pode ser conferido em 365 Mashups,onde ele está disponibilizando suas criações. Mas peraí, o que é mashup? Um tipo de penteado?

Mashups consistem na técnica de sobrepor duas músicas criando uma terceira. A origem disto está nos DJs, que fazem a emenda de uma música na outra sincronizando sua batidas. Mas no caso do mashup, não é apenas uma transição, mas o objetivo em si. João Brasil já misturou Beatles com funk carioca, Miles Davis com o rapper Snoop Dog e continua.

A prática do mashup vem por mais uma pedra encima do já cambaleante conceito de autoria na obra de arte. Não é de hoje que ele vem aos poucos se desmilinguindo. A invenção do sampler, aparelho que permite manipular e utilizar sons pré-gravados, permitiu que os músicos fossem ao céu na criação de novos timbres, mas também fez com que James Brown se tornasse o músico mais copiado da história (sem receber os créditos), e carregou toda a base instrumental da canção de Prince When Doves Cry, para Pray, de Mc Hammer; e Shake!para ouvir (é necessário se inscrever gratuitamente) ou para baixar – para A Gente dá Certo, gravada por Sandy & Júnior!

A diferença é que o sampler traz pedaços do arranjo, vozes de instrumentos isoladas. Já o mashup usa a gravação integral, incluindo letra, melodia, harmonia – que faz com que seja mais fácil fazer a junção se uma das músicas for um rap, por exemplo.

Mas a questão de atribuição de autoria já foi muito menos rígida do que imaginamos. Johann Sebastian Bach, pegou “emprestados” diversos temas de outros compositores e o usou nas suas próprias peças, sem que isto fosse considerado plágio. Porém, ao longo do tempo isto mudou, e na entrada do século XX, era impensável mudar o que o compositor tinha escrito (na época contemporânea isto mudou novamente, mas fica para outro dia).

Mas na música popular, a coisa era diferente. Donga, sambista carioca da virada do século XX, dizia que “samba é que nem passarinho, é de quem pegar primeiro”. Isto porque a maioria dos refrões cantados nas rodas era de domínio público, ou seja, folclóricos. Aquele que é tido como o primeiro samba gravado, “Pelo Telefone”, é na verdade uma junção de pelo menos três desses refrões, o que pode ser comprovado tanto por sua estrutura irregular quanto por sua letra sem pé nem cabeça. Quem tirou os sambistas da época da pindaíba foi Noel Rosa, que os incentivava a fazer segundas partes para os refrões populares, registrarem a autoria e ganharem um dinheiro. Ele próprio fez isso em “Fita Amarela”, por exemplo.

Veja a história e a letra de “Pelo Telefone” aqui.

É claro que obras de arte sempre dialogam entre si, é nisto em grande parte que está sua riqueza. Quadros inspiraram canções e vice-versa desde sempre. Porém, é possível traçar um arco subjetivo que vai desde a apropriação que só beneficia quem se apropria, até a que relê e redimensiona a obra original, agregando-lhe novos significados e revitalizando-a.

Djavan apresentou a canção “Violeiros” em seu álbum “Coisa de Acender”. Os primeiros onze versos desta música são os mesmos do poema “Cantadores do Nordeste”, de Manuel Bandeira. Daí por diante, Djavan segue um caminho diferente, traçando uma visão lancinante da relação entre a vida sofrida e a obra exuberante dos repentistas do sertão. Djavan se serve do poema de Bandeira como inspiração inicial e o musica magistralmente, mas nada acrescenta ao poema em si. Na edição original em LP, não constava a parceria, tendo sido hoje a omissão reparada no site oficial do cantor.

O poema Cantadores do Nordeste, de Manuel Bandeira;

A letra de Violeiros, de Djavan, e a gravação de Violeiros.

Dorival Caymmi cantou em “Você já foi à Bahia?”:

Nas sacadas dos sobrados
Da velha São Salvador
Há lembranças de donzelas
Do tempo do Imperador
Tudo, tudo na Bahia
Faz a gente querer bem
A Bahia tem um jeito
Que nenhuma terra tem.

Esta letra vem acompanhada de uma melodia que desce em movimentos circulares e malemolentes, ao mesmo tempo afirmativa e convidativa, rememorando o passado, mas nos aproximando da terra de Caymmi, cantada também em “Samba da minha terra”.

Pois Caetano Veloso, na sua canção “Terra”, canta exatamente a mesma estrofe até o penúltimo verso. Só que, na canção de Caymmi, esta estrofe se segue a uma louvação à Bahia, e, neste caso, ela coroa uma divagação que começa “na cela de uma cadeia” e termina nos confins do espaço sideral. A melodia tem um desenho análogo à de Caymmi, só que invertido, ascendente, levantando o ouvinte do chão. A Terra/Bahia (agora com maiúscula) agora é a base para um sentimento de pertencer ao planeta.

E, lembremos, Caetano não  canta o último verso, diz: “a Bahia tem um jeito…” e entra no refrão, que começa por uma das palavras do último verso de Caymmi, o título de sua música: “Terra”. Isto remete à visão da Terra do espaço, cantada no início da letra. Mesmo assim, o último verso de Caymmi permanece implícito. Da mesma forma, Caetano não inclui Caymmi como autor de “Terra”. Mas o trecho de letra está entre aspas no encarte do álbum. Caetano, ao contrário de Djavan, parte do pressuposto de que o ouvinte conhece a canção original. Ao mesmo tempo, ele homenageia Caymmi como uma influência fundamental em sua obra, e o ultrapassa de certa maneira ao desdobrar a Bahia da primeira música para todo o planeta na segunda.

Você já foi à Bahia?

Terra

A relação entre duas obras pode se dar suavemente ou por contraste. Quando o jornalista Ricardo Calazans (abraço e obrigado, Ricardo) noticiou no blog MPB Player que João Brasil mesclara todas as faixas de “Let it be”, dos Beatles, com a “a fina flor do funk carioca”, choveram críticas ferozes, tanto de fãs dos Beatles quanto de odiadores do funk. O que talvez não se tenha percebido é que a novidade que ele trouxe é antiga, bem antiga. João rouba seu método de Bach e o passa adiante a quem se interessar, gratuitamente; rouba a autoria de suas obras e, ao mesmo tempo, as compartilha generosamente, como todo DJ. Ouvir o que ele faz como duas músicas não acrescenta nada a nenhuma das duas. Ouvir como uma obra nova pode, ou não levar a algum lugar. Goste-se ou não do resultado, João Brasil dispõe-se a correr um risco recusado por Mc Hammer e Sandy & Junior, que tomaram trechos a obra de um gênio como Prince, e pouco acrescentaram a ela. João Brasil prefere dar um pequeno passo à frente. Ou, no caso, 365.

Folclore. Folclore?

É sempre bonito ver quando alguém consegue cantar um tema assim chamado folclórico incorporando-o ao seu repertório sem rupturas. É sinal de que seus  pés estão bem fincados no chão, o que em música popular é fundamental. Mesmo a composição mais elaborada precisa manter este fio terra desimpedido, ou correrá o risco de se tornar mera teorização vazia, discussão intelectualizada – ou seja, vai deixando de ser arte, ou pelo menos arte popular.

Além disso, adoro comparar gravações. Gosto de ver como cada artista consegue trazer um tema escolhido para o seu universo musical, adaptando e adaptando-se, e muitas vezes revelando elementos fundamentais de seu trabalho que permanecem diluidos em outras músicas. Eventualmente, duas gravações da mesma música se distanciam enormemente, o que, sendo uma canção de domínio público, ao mesmo tempo é muito natural e pode ser espantoso.

Déa Trancoso é uma cantora mineira que mergulha fundo nas tradições populares. Gravou o seu primeiro CD, Tum Tum Tum em 2007 a partir do repertório musical do Vale do Jequitinhonha.

Wado é curitibano radicado em Alagoas, o que já dá uma boa medida de seu cosmopolitismo, e também de sua capacidade de misturar infuências. Gravou A Farsa do Samba Nublado, com a banda Realismo Fantástico, em 2004.

Grande Poder – com Déa Trancoso

Grande Poder – com Wado e o Realismo Fantástico

Mas há algo que considero talvez ainda mais interessante que isto: é quando o artista cria algo que tem ao mesmo tempo as características estéticas do seu trabalho, uma elaboração formal que dialogue com seus contemporâneos (ou com mestres), e uma identificação tal com a arte popular que pode mesmo vir a se confundir com o repertório folclórico. Volpi, nas artes plásticas, conseguiu isso, a meu ver. No campo da música brasileira, ninguém o fez melhor que Dorival.

Roda Pião – Dorival Caymmi

Roda Pião – Azymuth

Em tempo: Azymuth, trio de instrumentistas brasileiros radicados nos EUA, em atividade desde 1970 (!)

O cantor e compositor carioca Edu Krieger conta que um dia estava passando em frente a uma escola municipal, quando ouviu música no pátio, e se achegou ao portão para ouvir. Qual não foi sua surpresa ao reconhecer que uma ciranda sua estava sendo ensinada na aula de música. Ele ainda estava  gravando seu primeiro álbum, mas a canção já fora gravada por mais de uma cantora, como Rita de Cássia e Maria Rita. Edu esperou a aula acabar, pediu licença para falar com a professora e perguntou de onde ela conhecia a música. A professora então “informou” a ele que a canção era folclórica! Neste momento, Edu decidiu incluir a música no seu primeiro disco, antes que ela deixasse de ser dele e virasse folclórica…

Ciranda do Mundo – com Edu Krieger e Rodrigo Maranhão

Ciranda do Mundo – com Maria Rita

P.S. Deixo para o final o esclarecimento, bem no espírito deste texto: a canção Grande Poder não é de domínio público, tem autor. E este é Mestre Verdelinho, um dos maiores coqueiros e repentistas de Alagoas, perito no pandeiro e no ganzá. Mestre Verdelinho faleceu dia 18 de março de 2010. A ele, um dos muitos que realizaram a fusão perfeita da arte popular, dedico este post.