Ou vi outro dia uma definição algo matemática muito interessante, que poderia ser resumida em duas equações:
Beatles + Black Sabath = Pixies
Pixies 2 = Nirvana
Em português: O Pixies conseguiu uma maneira de equalizar a melodia com o peso, alternando entre estes dois ao longo da canção. Em geral, a melodia vem na primeira parte, acompanhada por uma marcação baixo/bateria e pouco mais, e na segunda parte vem a fúria explosiva de uma muralha de guitarras vindo abaixo. Mas pode ser o contrário também.
Where is my mind – Pixies
Esta mesma fórmula pode ser encontrada em praticamente todas as gravações do Nirvana. As admirações de Kurt Cobain são bem conhecidas. Ele adorava Pixies, bem como Beatles. Quando seu produtor queria que ele fizesse algo no estúdio (como gravar a voz duas vezes), o argumento decisivo que fazia Kurt aceitar a sugestão era de que John Lennon fazia assim.
Outra grande admiração de Cobain era o REM, não tanto pela influência musical, mas pelo modo como o grupo conseguiu resistir ao furacão de se tornar um sucesso internacional com Losing my religion sem que seu trabalho musical se diluisse nem permitindo que sua imagem se deteriorasse em modismos. Ele e Michael Stipe ficaram amigos a ponto de Stipe ter proposto um projeto em conjunto para Cobain pouco antes de seu suicídio, na intenção explícita de tirá-lo do buraco.
Talvez Michael Stipe conseguisse, quem sabe. Mas o fato é que o Nirvana não conseguiu escapar da roda-viva da sua transformação em produto, que já vitimara o movimento punk (mas este já começou pelo avesso, já que os Sex Pistols foram lançados pelo dono de uma butique). Kurt, ao contrário, foi apanhado pela máquina de moer carne da mídia que simplificava imensamente tudo o que ele dizia para poder vender, dos garotos que achavam que entendiam Kurt porque usavam bermudas iguais às dele, da idolatria ao espírito juvenil que ele tentara exorcizar no maior sucesso da banda. E o resto é história: o título do último álbum de estúdio que seria I hate myself and I want to die e acabou trocado pelo psicanalítico In Utero, que no fundo dizia quase a mesma coisa; uma overdose em 4 de março de 1994, e a morte apenas um mês depois.
Mas a última gravação oficial da banda não foi In Utero, e sim o Umplugged MTV, em 1993. Nele há muito poucos sucessos, o que confirma a resistência de Kurt em se deixar transformar em hitmaker – ao contrário, ele convida os desconhecidos Meat Puppets para participarem. E na escolha do repertório, uma canção em particular deixa claro o quanto ele tinha noção do que estava acontecendo à sua volta e o quanto isto o atingia: The man who sold the world. Composta por David Bowie para o álbum de mesmo nome, é um exemplo típico do Bowie cancionista em que as frases da guitarra caminham passo a passo com a melodia, ambas compostas juntas e de igual peso. E também é o Bowie de poética elíptica, cheia de mensagens vagas e ao mesmo tempo certeiras. Com esta, ele ensaia a criação de personas que levará a cabo a partir de Ziggy Stardust. O Homem que vendeu o mundo já é um personagem, apenas não é desenvolvido totalmente.
Ou melhor, não por David Bowie. Na letra cantada melancolicamente por Cobain, há um relato mais preciso do que se poderia esperar de quem se tornava uma celebridade contra sua vontade: “Embora eu não estivesse lá, ele disse que eu era seu amigo”; ou
Eu ri e apertei sua mão, e fiz meu caminho de volta pra casa
Eu procurei um jeito e lugar, por anos e anos vaguei
Eu encarei com um olhar vazio milhões de montanhas
Eu devia ter morrido sozinho, há muito, muito tempo
Quase tudo já foi dito sobre Kurt Cobain. Sem perder o sarcasmo, ele se pintou como quem vendeu o mundo, quando o mundo é que queria comprá-lo. Ele se recusou terminantemente, e o mundo o perdeu. Nunca saberemos como teria sido uma colaboração entre ele e Michael Stipe. Talvez fosse o caminho para que ele aprendesse a lidar com as enormes forças que se moviam em torno dele. Ele preferiu fazer seu caminho de volta para casa. Pena.
The man who sold the world – David Bowie
The man who sold the world – Nirvana
P.S. Este post vai para a Daniela Name, que foi quem me deu a notícia da morte de Kurt Cobain, desolada, vindo da redação do jornal. Um beijo saudoso.