Dois sambas sobre o fim do mundo

Dia 4 de julho deste ano (2023), o planeta Terra bateu o recorde de temperatura média – foi o dia mais quente da história considerada a medição global. O recorde batido era recente, na verdade do dia anterior, 3 de julho. O ano de 2023, antes mesmo de terminar, já é o mais quente em 125 mil anos, segundo pesquisadores do clima. A média do mês de outubro foi 0,85º acima da média do mesmo mês entre 1991 e 2020 e 0,4º acima de 2019.

As causas para isso remontam à Revolução Industrial, quando motores a explosão passaram e liberar uma quantidade crescente de calor, aliada o desmatamento e à poluição. Às emissões de carbono e criação do efeito estufa somou-se em 2023 os fenômenos do El Niño e da La Niña, de aquecimento ainda maior do Oceano Pacífico. Mas o fato é que o aquecimento global se tornou inegável até mesmo para muitos de seus detratores e negacionistas ao longo do ano.

Não é de hoje que ambientalistas e pesquisadores apontam para o que está acontecendo e alertam que podemos estar tomando um caminho sem volta. Porém, ainda antes deles, profecias e tradições religiosas listavam eventos de fim do mundo, em geral cataclismas violentos (muitos dos quais, se olharmos com atenção, podem estar acontecendo atualmente, apenas em câmera lenta), incluindo a tradição cristã. O último livro da Bíblia, o Apocalipse de João, é a descrição do Fim dos Tempos, em que a Terra é destruída para renascer, os ímpios são castigados e os justos recompensados.

Mas e o nosso tema canção? Ora, não faltam os que cantaram tanto a questão ecológica quanto a escatológica, às vezes simultaneamente, e não falo aqui das vertentes confessionais. Dois sambas da melhor cepa da música brasileira são dedicados a estes eventos, e até certo ponto um deles pode ser considerado um desenvolvimento do outro, tanto tematica quanto musicalmente. Vamos a eles.

Nelson Cavaquinho gravou seu clássico Juízo Final no álbum com seu próprio nome, em 1973. Dois anos depois, Clara Nunes o regravou em seu álbum Claridade.

A abertura de Juízo Final é uma das mais retumbantes da música brasileira e provavelmente universal. A carga de dramaticidade contida em suas duas primeiras palavras, duas primeiras notas e dois primeiros acordes é difícil de ser superada. O verso O Sol é cantado com um salto oitava acima, com a nota aguda estendida amplificando seu brilho e poder o máximo possível. E então, do acorde menor inicial da tonalidade, se passa bruscamente ao acorde do segundo tom bemol maior com sétima, totalmente fora da tonalidade – na verdade uma dominante substituta que, por sua vez, conduzirá à dominante natural do tom. Por exemplo, Am, Bb7, E7.

O surgimento deste segundo acorde é muito inesperado (e normalmente ainda é apresentado com uma convenção sincopada que o antecipa ligeiramente ao tempo forte). A dissonância apresentada de chofre, sem nenhuma preparação, dá ao ouvinte a sensação de algo terrível iminente, em consonância perfeita com a letra. Entretanto, não se trata apenas de um acorde fora da tonalidade ou uma dissonância comum. O efeito tremendo deste segundo acorde se deve ao fato de ele manter, em relação à dominante, o intervalo mais dissonante da música ocidental, a quarta aumentada.

O intervalo de quarta aumentada (ou trítono) foi chamado em tempos medievais de diabolus in musica e terminantemente proibido antes do estabelecimento definitivo da tonalidade como a conhecemos hoje. Não por causas religiosas, mas sonoras mesmo: Os comprimentos de onda de sons separados por este intervalo quase nunca coincidem, o que causa enorme estranheza ao ouvido. No caso de Juízo Final, um acorde “natural” para a condução harmônica teria como baixo a nota Si, nunca a de Si Bemol. O acorde de Bb, meio tom abaixo, é exatamente o mais dissonante possível em relação ao caminho esperado, já que todas as suas notas estão igualmente deslocadas. É como se um terremoto tivesse descarrilhado a harmonia logo de saída. É assim que Juízo Final se inicia, com um ovo de Colombo de efeito espetacular.

Nelson assume o discurso de um profeta do Antigo Testamento – ou do apóstolo João, autor do Apocalipse. O que não deixa de estar em consonância com sua obra. Nelson é um dos autores mais trágicos do cancioneiro nacional, ao lado de Lupicínio Rodrigues e Adoniran Barbosa, todos tratando em seus sambas da tragédia do cotidiano. Em Juízo Final, ele apenas amplia sua noção de um destino inexorável, de casos particulares para toda a existência. A letra de Juízo Final é sucinta, mantendo em sua segunda parte a grandiloquência nas notas agudas. Nela, poder-se-ia dizer, está resumida a Lei e os Profetas, e Nelson ainda se permite uma discreta menção a uma expressão usada por Jesus, aquele que tiver olhos de ver, veja nos versos finais quero ter olhos pra ver / a maldade desaparecer.

Passemos agora ao segundo samba sobre o Fim do Mundo: As Forças da Natureza, de João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro. Foi composto e gravado pouco depois de Juízo Final, mas guarda diferenças com ele. Porém, mais impressionantes que as diferenças são as semelhanças. Este foi gravado primeiro por Clara Nunes em 1977 e acabou dando nome ao álbum.

E João, por sua vez, o gravou no álbum Vida Boêmia, em 1978.

As Forças da Natureza é, na prática, um desenvolvimento do tema de Juízo Final. Porém, acrescentando uma perspectiva, digamos, proto-ecológica ao entrar em mais detalhes sobre os acontecimentos, num espírito que é tanto relacionado com o Apocalipse cristão quanto a descrição de uma revolta da natureza contra quem a maltratou tanto. Em relação ao livro bíblico, possível até mesmo traçar algumas correspondências de texto:

Uma chuva de prata do céu vai descer / E as estrelas do céu caíram sobre a terra como figos verdes caem da figueira quando sacudidos por um vento forte. (Ap. 6, 13)

Quando o Sol se derramar em toda a sua essência / O quarto anjo derramou a sua taça no sol, e foi dado poder ao sol para queimar os homens com fogo. (Ap. 17,8)

Assim como tematicamente, As Forças da Natureza também desenvolverá mais os temas harmônicos e melódicos do que o samba de Nelson. Para começar, tem uma forma mais extensa e muito diversa das tradicionais primeira e segunda partes. Ao contrário, pode ser dividido aproximadamente em três partes e uma coda, com poucas repetições melódicas, mesmo quando a harmonia é a mesma. E mesmo esta harmonia vai seguir caminhos e utilizar recursos mais próximos da harmonia funcional, sem quebras radicais como o segundo acorde de Juízo Final, mas se permitindo certas sutilezas como fazer o tom variar entre menor e seu relativo maior (Por exemplo, Lá menor e Dó maior), conseguindo com isso mudanças de clima que vão do mais introspectivo ao mais exaltado.

O músico e pesquisador Luís Filipe de Lima, em seu livro Para Ouvir o Samba, estabelece critérios cuidadosos para descrever cada um de seus subgêneros, do samba amaxixado ao samba-enredo, da Bossa-Nova (sim, está incluída) ao pagode romântico da década de 1990. Ele classifica ambos os sambas em pauta na categoria pós-MPB (capítulo 14.1), que engloba tanto a produção feita por sambistas que se apropriou de algumas conquistas formais da MPB quanto a de sambistas da velha guarda como Cartola e o próprio Nelson, que foram redescobertas e revalorizadas à luz dessas conquistas. Neste sentido, é fundamental perceber que uma eventual maior complexidade de uma das composições não significa absolutamente que haja algum tipo de superioridade estética. Na verdade, o uso das fórmulas tradicionais do samba e da MPB poderia, ao contrário servir para tornar a canção banal e medíocre… Por outro lado, ao colocar ambas lado a lado, por mais que estejam próximas em termos históricos (e efetivamente as separam poucos anos), fica evidente a diferença entre elas: Nelson faz um samba nos moldes da tradição (o que inclui quebrá-la genialmente quando lhe convém), do tipo que alimentou a MPB; João e Paulo César Pinheiro fazem um samba que por sua vez se alimenta da estilização formal da MPB. Há uma continuidade entre eles que não é apenas estética, mas também histórica.

E isto ficará evidente ao analisarmos As Forças da Natureza e notarmos agora as semelhanças entre ele e Juízo Final – semelhanças que são também diferenças na forma de percorrerem os mesmos caminhos. As Forças da Natureza também se inicia com uma referência ao Sol – e com um salto de oitava! As duas primeiras notas de ambas as canções são exatamente as mesmas. Porém, enquanto no samba de Nelson a segunda nota se estende causticante na palavra Sol, no de João o Sol só surge na terceira nota, que desce suavemente um tom: Quan-do_o Sol… Assim, o Sol tem sua potência matizada – ao menos inicialmente. Até pode-se dizer que o movimento melódico vai reforçar o efeito da palavra derramar, logo adiante, fazendo com o que a luz solar se propague de forma menos direta.

Mas há um detalhe mais difícil de detectar que une as duas composições, justamente o uso do trítono, o intervalo de quarta aumentada, o diabolus in musica, na cadência harmônica. Assim como Juízo Final, As Forças da Natureza também tem dois acordes encadeados com esta distância entre eles. Mas outra vez, assim como no caso da melodia inicial, este encadeamento acontece de uma forma mais suave, tendo seu impacto reduzido. Aqui, trata-se da passagem que acompanha o verso Desafiando o poder da ciência (e de novo no verso Levar consigo o pó dos nossos dias). O que ocorre é que, quando oscila entre os tons de lá menor e dó maior, há acordes comuns que servem para fazer a passagem entre eles. Mas há também acordes de empréstimo que são úteis. Assim, a sequência harmônica C / F7 / B7 / E7 / Am faz a passagem de uma tonalidade para outra, mas a distância entre o Fá e o Si é justamente a que causa estranhamento no ouvido (se o leitor não tem conhecimento de harmonia, basta ouvir a passagem para perceber do que falo).

Isso se dá porque na verdade o acorde de B7 não é de nenhuma das duas tonalidades, e sim um empréstimo – a dominante da dominante do tom menor. Mas sua presença aí torna a melodia muito mais interessante – a curva na palavra ciência e depois em os dias chama imediatamente a atenção do ouvido, porém sem causar o choque do início de Juízo Final. Trata-se do mesmo intervalo, com função similar, porém usado de forma lateral na sequência da harmonia, de modo a reduzir seu impacto e torná-lo de um verdadeiro cataclisma, em uma coloração a mais, um diabolus domado afinal, ao menos in musica.

As Forças da Natureza reconta Juízo Final a seu modo, seguindo seus passos mas acrescentando em seu enredo uma visão do samba que já passara pela MPB – a mesma que escutava avidamente e reverenciava Nelson, assim como João Nogueira também fazia, é claro. Quando compostas e gravadas na década de 1970, a humanidade se considerava longe de qualquer consequência de suas ações destrutivas no planeta: aquecimento global, pandemias, elevação do nível do mar, tudo isso era matéria de ficção científica ou fanáticos religiosos. Hoje são realidade, e não dá para não pensar que Nelson Cavaquinho, João Nogueira e Paulo César Pinheiro avisaram. Para nosso consolo, seus sambas proféticos, ao final, descrevem um mundo onde o mal terá sido banido. Se Nelson não menciona a sobrevivência humana (ou o faz, sutilmente – ao menos a dele próprio), João e Paulo o fazem, relatando o desaparecimento das armas e dos homens de mal – possivelmente os que se denominam de bem. Só nos resta dizer amém.

Da Bahia ao Maranhão, via Minas – por Leonardo Davino

Leonardo Davino é um estudioso sobre Literatura e música que durante o ano de 2010 enfrentou o tremendo desafio de fazer a análise de uma canção por dia (!) O resultado foi o blog 365 canções. E quando o exercício auto-proposto acabou, ele logo achou um modo de estendê-lo. Assim, hoje ele tem o blog Lendo canção, que pelo título considero desde já primo deste, com a intenção de ouvir, acompanhar e ler de modo crítico e ensaístico a canção mediatizada criada a partir dos anos 00, e dividindo o foco entre as poéticas vocais (pois uma canção que muda de intérprete muda a sim própria junto) e a metacanção (a canção que fala de si mesma, prato cheio para análises, mas também a relação entre canções). Trago um exemplo das análises do Leo, que partem de viezews muito diferentes dos meus – o que é ótimo – recomendando ao mesmo tempo seu blog. Esta se concentra na canção Feira de Mangaio, de Sivuca e Glorinha Gadelha, na gravação de Clara Nunes (que não foi composta nem gravada depois de 2000, mas e daí?) Mas o que me encantou nela foi a ponte que ele enxerga e assinala quase de passagem, partindo de Carmem Miranda e chegando a Rita Ribeiro através de Clara, por ambos os trajetos a que se propôs: pelo diálogo entre seus repertórios e entre suas vozes brasileiras, espalhadas no mapa, encadeadas no tempo. Eis aqui:

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Um dos grandes benefícios da remasterização sonora é a possibilidade que ela nos dá de contato com artistas e vozes que circularam “presencialmente” por outras épocas. Se a gravação vocal em si já amplia a noção de permanência e presença do artista, cuja voz pode ser acessada ao sabor do prazer do ouvinte, a remasterização traz para nosso redor vozes registradas noutros suportes e técnicas. E isso é maravilhoso. Desperta comparações, promove novas análises e aproximações entre os próprios cancionistas.

Penso nisso quando ouço Rita Ribeiro, em sua cartática performance tecnomacumba, cantar acompanhada por um vigoroso coro os versos “Saia do mar, linda sereia, saia do mar, vem brincar na areia” e me vem à lembrança da imagem de Clara Nunes na TV, sambando à beira mar, com o vento buliçoso balançando seus cabelos soltos. E assim sou levado a pensamentos que só a experiência estética (me) oferece.

A imagem que resulta da sobreposição imaginativa de Carmen Miranda e seu turbante frutal e Clara Nunes e seu chocalho amarrado na canela é reveladora: desperta uma entidade feita de “amor da cabeça aos pés”, pura dança e sexo e glória. Tutti-frutti hat e chocalho. Uma portuguesa-brasileira até o último balangandã e uma mineira “filha de Angola, de Ketu e Nagô, de Ogum com Yansã”.

Ambas unidas inconsciente e (talvez) involuntariamente numa ação sincrética. Situadas em “um espaço de (mais raramente harmônico que conflituado) de fusões, transfusões e confusões. Espaço de convergências, justaposições, amálgamas, padês”, na definição de Antonio Risério para sincretismo, em A Utopia brasileira e os movimentos negros.

Do “tabuleiro da baiana” à “feira de mangaio”, há uma cordialidade antropofágica entre os signos de africanidade e europeização. Por isso não entendo quem analisa a mestiçagem no Brasil apenas pelo viés do embranquecimento da cultura afro. Subestimando a capacidade de reinvenção e manutenção dessa cultura.

Guardada no disco Esperança (1979), “Feira de Mangaio”, de Sivuca e GlorinhaGadelha, encontra na voz e na persona artística de Clara Nunes a melhor representação. A sofisticação na hibridização dos elementos verbais e melódicos dançam ao ritmo do remelexo de Clara Nunes.
Tal e qual a baiana do acarajé defendida por Carmen Miranda, Clara Nunes aqui é uma feirante a cantar e oferecer suas prendas e lindezas: “Fumo de rolo arreio e cangalha (…) Bolo de milho broa e cocada (…) Pé de moleque, alecrim, canela”.

Mas transmutada no sujeito da canção Clara é também uma observadora e cantora da cultura popular (ainda) não mediatizada: cindida entre o urbano e o interior. Como não acreditar (e visualizar a cena) quando ela canta que “tem um sanfoneiro no canto da rua / Fazendo floreio pra gente dançar / Tem Zefa de purcina fazendo renda / E o ronco do fole sem parar”?

Clara Nunes canta tudo com uma verdade (alegria) irresistível. Há uma potência mestiça em mutação na sua performance. “Nossa população nunca foi obrigada a amputar antepassados. É majoritariamente mestiça. E se reconhece como tal”, anota Risério. Clara Nunes identificava isso e transformava o Brasil mestiço em objeto estético. Como Carmen também fez a seu tempo.

“Vem desde o tempo da senzala / Do batuque e da cabala / O som que a todo povo embala / E quanto mais o chicote estala / E o povo se encurrala / O som mais forte se propala”, diz o sujeito de outra canção do repertório de Clara Nunes intensificando a discussão.

Carmen e Clara deram vida (voz) a sujeitos comuns, interpretaram canções de rápida identificação popular. Para o povo não se desesperar, elas não deixavam de cantar. Duas sereias cantando pelos sete cantos a tolerância, a democracia, o diálogo entre culturas afins, que se desconheciam, mas que se reconhecem.

No tabuleiro da baiana – de Ary Barroso, com Carmen Miranda

Feira de Mangaio – com Clara Nunes

Cocada – Rita Ribeiro

Discoteca Brasílica – Nação

Nação, a canção de abertura do álbum de João Bosco Comissão de Frente, de 1982, e também do último álbum de Clara Nunes, no mesmo ano, a quem deu o nome, é uma transubstanciação da Aquarela do Brasil.

transubstanciação: [Do lat. med. transubstantiatione.]
Substantivo feminino.
1. Mudança duma substância em outra.
2. Rel. Palavra adotada na Igreja Católica, sobretudo a partir da filosofia escolástica, para explicar a presença real de Jesus Cristo no sacramento da Eucaristia pela mudança da substância do pão e do vinho na de seu corpo e de seu sangue.

Da Aquarela do Brasil – e da gravação de João Gilberto com Caetano Veloso e Gilberto Gil – falo aqui. De Nação, o historiador José Maurício de Carvalho afirma ser totalmente hermética. José Maurício pesquisou e comparou canções de diversas épocas que focavam o Brasil como tema em seu artigo O Brasil, de Noel a Gabriel. Já a pesquisadora Astréia Soares afirma que Nação se reapropria dos elementos enfileirados na Aquarela – e que de resto são elementos anteriormente constituintes de uma imagem de país. Só que – e aí sou eu que afirmo – Nação coloca estes elementos no liquidificador e os regurgita transfigurados. Assim, o arco-íris de Nação faz paralelo à imagem de uma aquarela; as fontes murmurantes de Ari Barroso agora são labarágua, Sete Quedas em chamas; além da óbvia citação do Hino Nacional com a expressão berço esplêndido.

Mas há outros paralelos a serem feitos, e não só com a Aquarela. Nação é construída sobre uma base imagética de mitologia do Candomblé. A nação Jeje, uma das três correntes preponderantes no candomblé, provinda principalmente dos escravos trazidos da região do Daomé (hoje Benin), é identificada com todo o povo brasileiro. Interessante notar que a palavra Jeje vem do yorubá adjeje que significa estrangeiro, forasteiro. O próprio título da música então já é uma referência múltipla e mesmo contraditória a princípio, ao colocar um povo estrangeiro como protagonista de uma canção que faz referência a inúmeros símbolos nacionais.

A pesquisadora Silvia Maria Jardim Brügger, em um excelente estudo sobre Clara Nunes (aqui), encontra na referência a Oxumaré, o orixá do arco-íris, a chave para desvendar a canção. Ela afirma:

O Brasil-Oxumaré é uma nação da diversidade de cores, mas também da mestiçagem – o que não é uma novidade, pois o tema já se fazia presente em músicas desde a década de 1940, – do movimento, da superação, da dualidade, da fertilidade, da riqueza. O verde e amarelo da bandeira brasileira são as cores de Oxumaré, que é homem, durante metade do ano, e mulher na outra metade. Mas ele não sintetiza os dois sexos. Pelo contrário, os une em sua diferença; assim como ocorre ao arco-íris, que apresenta misturas ou zonas de intercessão entre suas cores, mas não as anula em suas especificidades: as sete cores estão nele presentes.

Fiel a este espírito de mestiçagem, a letra traça também paralelos entre mitologias: assim, Jeje e suas asas de pomba, presas nas costas com mel e dendê, remetem a Ícaro, e o uirapuru que das cinzas chama remete à Fênix. Outra referência dupla é a Caramuru – que, por matar um pássaro com uma arma de fogo, passou a ser respeitado pelos índios que o capturaram e escapou da morte – e Anhanguera – que pôs fogo numa tijela com aguardente para mostrar aos índios que tinha o poder de incendiar a água. Caramuru e Anhanguera, ambos estrangeiros que foram aceitos pelos indígenas conquistando seu respeito ou seu temor, numa relação que é de aceitação e também enfrentamento. Todos estes mitos, sucedendo-se misturados na letra, vão criando menos um significado explícito e sim algo mais próximo de uma sensação; as inúmeras referências religiosas são acompanhadas de um modo de tratar o tema que, não linear, vai criando uma atmosfera sem se preocupar em contar uma história – e no entanto a conta, mas sem que esta seja traduzível em enredo.

A criação desta atmosfera se dá também pela construção da harmonia e dos arranjos, usando clichês harmônicos idênticos aos que servem de base à Aquarela, em especial acordes de quinta aumentada, mas também acordes menores com sétima maior, conseguindo com isto passagens suaves, de semitom a semitom, de um acorde para outro. A razão de ser disto é que Nação é ao mesmo tempo um sambão e uma cantiga suave – como o João fez com a Aquarela, mas agora o processo vem desde a composição. Os acordes de Ouro cobre o espelho esmeralda seguem os de Ô, abre a cortina do passado. A orquestração suave sobre uma batucada típica de escola de samba também dialoga com a da gravação da Aquarela, seguindo os mesmos padrões, como que reforçando a identidade entre elas.

Em seu estudo, Silvia Maria lembra também que Nanã, mãe de Oxumaré, é simbolizada pela lama, que teria dado a Oxalá para que este criasse o homem. Novamente, a simbologia do (re)nascimento surge, agora para fechar o caleidoscópio de personificações: Jeje é a bananeira, é o arco-íris, é Ícaro, é o uirapuru. As imagens não se sucedem, na verdade se amalgamam. Jeje, o estrangeiro, se naturaliza, se transubstancializa de nação religiosa a nação no sentido mais amplo, de povo e país.

Nação se inicia e se encerra com a invocação de Silas de Oliveira, autor de outra Aquarela, a Brasileira, e de Dorival. Com o Rio desaguando na Bahia, traça um roteiro sintético que a canção percorre nos dois sentidos: da brasilidade algo estereotipada (mas já revista por João Gilberto) da Aquarela para a simbologia do candomblé, e desta (e da Bahia de Caymmi) novamente para uma visão de brasilidade, agora muito mais complexa – desaguando no mar mas também remontando às origens. Nação conta, à sua maneira elíptica, hermética, o processo mesmo de formação de uma nação. Algo que é dissecado por historiadores ao longo de volumes e mais volumes, e que só pode ser sintetizado a contento num formato não racional, antieuclideano, mítico, místico (adjetivo: misterioso; que encerra razão oculta ou significado alegórico): numa canção.

Uma Breve História no Timbre – a volta

Começando a voltar

O Tropicalismo foi a chegada do século XX à canção brasileira. Se na década de 40 uma canção era melodia e letra, e depois da Bossa-Nova passou a ser melodia, letra e harmonia, o Tropicalismo trouxe à tona o timbre como elemento da música. Isto se deve um tanto à influência das experimentações da música clássica contemporânea (via Rogério Duprat, por exemplo, mas também pelo Tom Zé, formado em composição na UFBA), mas não só. Também foram fundamentais as conquistas técnicas amplamente utilizadas pelos grupos de rock. A partir de 1960, teclados e guitarra elétrica, esta com a popularização dos pedais de efeito, ganham uma gama de sonoridades antes inimaginável.

Quem traz as guitarras para o Brasil não é a Tropicália, mas a Jovem Guarda, que é pessimamente recebida pelo mainstream musical da época, embora sucesso de público. Até que Maria Bethânia chama a atenção do irmão para a força daquele movimento, ao afirmar que eles eram os representantes do novo naquele momento. E quando Caetano se faz acompanhar por um conjunto de ie-ie-ie argentino ao apresentar Alegria Alegria (que no fundo é quase um baião) no festival da Record, o mundo vem abaixo, a ponto de acontecer uma passeata contra a guitarra elétrica (na verdade contra a invasão da música estrangeira), com a presença de Elis Regina e Gilberto Gil! (Gil diz hoje que só foi em consideração a Elis. Aliás, esta passeata é um dos episódios simbólicos da história de nossa música que ainda não foram devidamente tratados, a meu ver.)

A diferença no uso da guitarra pela Tropicália e pela Jovem Guarda é que esta repetia um padrão de uso e sonoridades, enquanto a Tropicália decretava a liberdade, para além do uso de instrumentos, mas também com a possibilidade de experimentação no estúdio, a partir do exemplo do Sargent Peppers, dos Beatles, e do primeiro álbum do Pink Floyd, The Piper at the Gates of Dawn, de 1967. Um exemplo disso são os Mutantes gravarem Dia 36 com o microfone ligado no canal do órgão para distorcer a voz de Arnaldo Batista, e com os instrumentos soando fora de rotação. Abriam-se horizontes novos.

Os Mutantes – Dia 36, do segundo álbum

A Reta Final

A partir daí, ocorrem diversas ondas de inovação trazendo novidades, quase sempre frutos da influência externa reprocessada de modos diferentes pelo contato com a cultura local: os nordestinos chegam com Zé Ramalho emulando Bob Dylan e repentistas e Alceu Valença guitarrando o coco; os Novos Baianos tem um Pepeu Gomes entre Hendrix e Jacó do Bandolim, e Baby entre Janis Joplin e Ademilde Fonseca; já nos 80, a geração BRock traz as várias vertentes do pós-punk para a nossa realidade; e o Mangue Beat leva vários passos adiante esta mistura, consolidando uma sonoridade própria. O Chiclete com Banana se torna o chiclete de banana, que é lançado no mercado.

Paula Tesser, cantora franco/brasileira e doutora na Sorbonne, afirma em seu artigo Mangue Beat: Húmus Cultural e Social:

O que encontramos nas músicas do Mangue Beat é o efeito da tecnologia na arte popular. As referências culturais como o maracatu, a ciranda, o coco, o repente, a embolada mostram que ele inseriu o velho no novo. Com a imagem da antena parabólica fincada na lama os mangue boys querem, com esse símbolo, estimular os artistas e a comunidade para que se mantenham em sintonia com o mundo exterior, sem, no entanto perder suas raízes.

E esta mistura, mais do que através de letras, melodias ou harmonias, se dá pelos ritmos, pelos timbres. Pela guitarra integrada aos tambores do maracatu, lá; pela bateria eletrônica integrada ao samba À Procura da Batida Perfeita.

Manguetown – Chico Science & Nação Zumbi – do álbum Afrociberdelia

A Linha de Chegada

No mesmo artigo citado acima, Paula Tesser cita Nietzsche em Humano, Demasiado Humano:

Quando tocamos obras antigas deveríamos nos proibir, por uma preocupação de objetividade, de colocar nossa própria alma para animá-las? De maneira alguma, pois é tão somente quando damos nossa alma que oferecemos a elas a possibilidade de continuarem vivas; só nosso sangue pode fazer com que elas possam ainda falar. A interpretação verdadeiramente “histórica” falaria de fantasma para fantasma.

Uma das primeiras “providências” das gerações pós-Manguebeat, tendo dominado as possibilidades tecnológicas, foi acertar as contas com o passado. De formas diversas, quase todos os artistas recentes tratam de se inserir (sem a  preocupação de se legitimar, mas simplesmente como um encontro com as raízes) no contexto de alguma tradição da música brasileira. No Rio, o ponto de encontro de diversos deles é a Orquestra Imperial, que tem seu repertório majoritariamente antigo e recriado com liberdade, além da presença física do baterista Wilson das Neves, como que abençoando a bagunça. Rita Ribeiro, que é do Maranhão e iniciou a carreira gravando muito do Zeca Baleiro, fez o álbum Tecnomacumba, todo de regravações (inclusive uma do próprio repertório, Cocada) que, como o nome indica, são rearranjadas com rock e eletrônica e alinhavadas a pontos de umbanda, com um resultado empolgante. O próprio Cidadão Instigado, de repertório autoral, em certos momentos rende seu tributo às influências de correntes do brega de cantores como Márcio Greick, marginalizadas pela inteligentzia, assim como acontecera com a Jovem Guarda. Isso sem falar do pessoal do samba e choro da Lapa, que leva adiante sua tradição(talvez de forma um tanto reverente demais, mas outro dia trato disso).

A Deusa dos Orixás (Toninho/Romildo) – Clara Nunes

A Deusa dos Orixás (Toninho/Romildo) – Rita Ribeiro

Mas apesar de remeter-se a estas tradições, o formato das canções compostas por esta turma não é necessariamente o mesmo das regravadas. Como disse aqui no início deste artigo, demorei para perceber que o que parecia desarrumado era, na verdade, exatamente desarrumado, só que de propósito. Acontecia que eu continuava partindo de um pressuposto antigo, enquanto eles partiam de um novo. Eu continuava pedindo a equalização entre letra, melodia e harmonia, enquanto eles partiam de um riff (coisa que eu estava acostumado dentro do rótulo do rock, mas, preconceituosamente, não no da MPB), de uma levada, de uma sonoridade. Rótulos que já se foram há muito tempo, eu é que não tinha notado…

Se na década de 40 uma canção era melodia e letra, e depois da Bossa-Nova passou a ser melodia, letra e harmonia, e se o Tropicalismo trouxe à tona o timbre como elemento da música, hoje temos a possibilidade de uma composição se estruturar a partir do timbre, como as canções do Cidadão Instigado surfam uma sonoridade que lhes dá sentido, tanto quanto as letras de Vinícius de Morais, diferentemente de sua poesia, só fazem sentido na melodia/harmonia de Tom Jobim. Ao contrário dos temores do Chico Buarque, arrisco-me a dizer, a canção não está acabando, mas se transformando, o que é a melhor garantia de sua sobrevida. Ainda que alguns possam demorar a reconhecê-la, como já aconteceu tantas vezes. “Desliga esse som, filho, isso não é música!”