Clarice e Cazuza: “Como reproduzir em palavras o gosto?”

Há muitas maneiras de escrever uma canção. Há quem pense primeiro na melodia – alguns só pensam nela, e deixam outros colocarem a letra; outros, ao contrário, pensam primeiros nos versos, e para alguns os elementos vêm juntos à mente. Mas, no segundo caso, de uma letra que recebe melodia, provavelmente a situação mais desafiadora é a de musicar um texto em prosa. Um poema tem quase sempre algum tipo de regularidade que permite a divisão estrófica, a repetição melódica em versos do mesmo tamanho, sem falar das rimas. Nada disso está presente em um texto em prosa, e é preciso como que inventar meios de suprir estas ausências. Alguns compositores se aventuraram nesta seara. Um deles, numa parceria inesperada. Em algum momento da década de 1980, Cazuza, com o discreto auxílio de Frejat, musicou ninguém menos que Clarice Lispector. A canção Que o Deus venha só foi gravada pelo Barão Vermelho após saída do vocalista, no álbum de 1986, Declare Guerra.

Frejat conta que Cazuza o procurou para fazer ajustes na canção e ele se espantou, pois ao ler a letra achou-a perfeitamente dentro do estilo do parceiro. O trecho musicado por eles vem do livro Água Viva, de 1973. Água Viva é, possivelmente, o texto mais ambicioso de Clarice, embora curto, cerca de 50 páginas apenas. Água Viva não chega a ter uma história a ser contada: sabe-se parcamente que a narração em primeira pessoa é feita por uma pintora, e é dirigida a um homem com quem, em algum momento, teve um relacionamento. E é só. O livro é feito de divagações da protagonista sobre seu mundo interno, suas sensações, e o desafio que é colocar em palavras estas coisas inefáveis. Água Viva é simultaneamente uma tentativa direta, sem rodeios, da descrição das subjetividades mais íntimas de um ser humano, e a descrição, igualmente subjetiva e metalinguística, do processo de fazê-lo.

Ao longo do texto, a narradora de Água Viva faz frequentes comparações entre a pintura, com a qual tem intimidade, com o uso da palavra para o mesmo fim de expressão, com a qual, segundo ela, não tem, e diz se atrapalhar. E em alguns outros momentos, ocorre também a comparação com a música. “Não se compreende música: ouve-se”, afirma ela. E mais adiante: “Minha pintura não tem palavras: fica atrás do pensamento” (…) Estou sendo antimelódica. Comprazo-me com a harmonia difícil dos ásperos contrários”. E finalmente, ainda mais adiante:

Como reproduzir em palavras o gosto? O gosto é uno e as palavras são muitas. Quanto à música, depois de tocada para onde ela vai? Música só tem de concreto o instrumento. Bem atrás do pensamento tenho um fundo musical. Mas ainda mais atrás há o coração batendo. Assim o mais profundo pensamento é um coração batendo.

Como se vê, Clarice é pessimista quanto à possibilidade de converter em linguagem o que vai dentro, no entanto não cansa de tentar. E, se considera que no mais profundo do pensamento há uma pulsação, admite implicitamente a possibilidade de a música expressar o que busca.

Passemos então ao trecho escolhido por Cazuza, que teve pouquíssimos ajustes para receber música. A parte efetivamente incluída por Cazuza na canção vai frisada.

(Estou) precisando mais que a força humana. Sou forte mas também destrutiva. O Deus tem de vir a mim já que não tenho ido a Ele. Que o Deus venha: por favor. Mesmo que eu não mereça. Venha. Ou talvez o que menos merecem mais precisem. Sou inquieta áspera e desesperançada. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor. Ás vezes me arranha como sem fossem farpas. Se tanto amor dentro de mim recebi e no entanto continuo inquieta é porque preciso que o Deus venha. Venha antes que seja tarde demais. Corro perigo como toda pessoa que vive. E a única coisa que me espera é exatamente o inesperado. Mas sei que terei paz antes da morte e que experimentarei um dia o delicado da vida. Perceberei – assim como se come e vive o gosto da comida.

Cazuza, além de passar o eu lírico para o masculino, muda muito pouco no texto – a alteração mais impactante provavelmente está na parte final, em que ele troca o verbo perceberei pela expressão Vou aprender, e retira a palavra assim. Este verso acaba ganhando uma conotação ligeiramente diferente, e menos sutil, tornando-se “Vou entender como se come e vive o gosto da comida”. Mas mesmo esta modificação, nitidamente com o intuito de simplificar a frase de modo a torná-la mais compreensível ao ser cantada, não chega a ser prejudicial. O fundamental aqui, antes de tudo, é encontrar a regularidade do texto – sua pulsação, a batida de seu coração – que abra caminho para a melodia. E Cazuza consegue isso com o blues.

Evidentemente, o blues está inteiramente dentro do estilo do Barão Vermelho, e é uma escolha natural para muitos temas tratados pelo grupo e por Cazuza em sua carreira solo. Mas particularmente para este trecho de Clarice, ou para Clarice de forma mais geral, o blues se presta à perfeição, tanto tecnicamente quanto em espírito. Sua pulsação lenta e marcada como um coração, com uma base harmônica bastante simples (no caso, não a clássica sequência de acordes, mas uma em tom menor, mas ainda assim capaz de dar muita liberdade para o improviso vocal) permitem à voz de Frejat passear dando a cada frase a entonação de que ela precisa, sem a amarra de uma melodia que se repita, já que a harmonia já concede esta regularidade. Mas mais que isso, a própria ideia do blues como descendente direto dos spirituais, os cantos entoados para que o Deus venha, ajusta-se à noção do texto tornando-o uma espécie de prece torta – não à toa Frejat espantou-se que ele não fosse de autoria do próprio Cazuza.

O pesquisador Rafael Julião, em um excelente artigo sobre a relação entre Cazuza e Clarice, aponta:

O fragmento específico que dá origem a “Que o Deus venha” toca em um ponto de constante inquietude na obra de Cazuza: a incapacidade de amar, que se apresenta como o grande pathos do compositor. A recorrente afirmação do não saber amar (em tensão com seu intenso desejo de transitividade amorosa) atravessa várias de suas composições e se faz notória nos versos “embora amor dentro de mim eu tenha/ só que eu não sei usar amor”.

Formulações semelhantes aparecem nas letras de “Malandragem” (“eu sou poeta e não aprendi a amar”), “Rock’n’geral” (“ou de um coração meio surdo que não sabe amar”), (“não amo ninguém e é só amor que eu respiro”) “Não amo ninguém”, “Filho único” (“estou na mais completa solidão/ do ser que é amado e não ama”), “Nunca sofri por amor” (“será que nunca amei de verdade/ ou o verdadeiro amor é assim”), “Carente profissional” (“levando em frente/ um coração deprimente/ viciado em amar errado/ crente que o que ele sente/ é sagrado/ e é tudo piada”) e “Fracasso” (“mas eu tenho a impressão/ que todos nós somos fracassados/ eu, por exemplo: não amo…”).

Assim três pontos chave da letra estão posicionados exatamente sobre os mesmos acordes: os versos “Só que eu não sei usar amor” e “É que eu preciso que o Deus venha” são cantados sobre os acordes deslizantes de F para E7 – este a dominante, que conduziria à tonalidade e ao repouso, mas não conduz, pois a cadência é quebrada e vai em seguida em outra direção, deixando em suspenso o desejo, o amor, a espera da vinda de Deus. O terceiro ponto em que esta mesma harmonia é usada é, já na última estrofe (a canção ganha o formato clássico AABA), sob o verso “O delicado da vida”, em que a melodia desce para o grave e se suaviza acompanhando a letra, mas novamente ilustrando uma suspensão, já que a letra afirma esperar um dia experimentar esta delicadeza, antes da morte.

Assim, Cazuza e Frejat conseguem encontrar um delicado equilíbrio entre o ritmo livre do texto em prosa e a estruturação estrófica da canção, concedendo liberdade à melodia ao mesmo tempo que esta organiza o texto, a ponto de conseguirem uma única rima, em versos diferentes de cada estrofe, tenha/venha. Menos que uma rima, um eco distante entre a falta de amor e a espera de Deus.

E então, em seu álbum de estreia em 1990, Cassia Eller apresentou sua versão de Que o Deus venha.

Afora Cássia ter trazido o eu lírico da canção de volta ao feminino, sua gravação mantém, é claro, a atmosfera bluesly da canção, mas acrescentando-lhe algo de jazzy, devido à formação: Jorge Helder no contrabaixo acústico, Écio Cafaro tocando a bateria com vassourinhas, Nelson Faria ao violão e Zé Marcos no piano. O arranjo acústico tira bastante da agressividade da gravação original, mas a aspereza mencionada logo no primeiro verso permanece na voz de Cássia. Mas além disso, a mudança de timbres traz à canção uma certa sensação de desamparo. A solidão que na gravação do Barão era quase orgulhosa, em certa medida desafiando Deus a aparecer, aqui ganha em suavidade e um tom mais próximo da desesperança também mencionada na letra.

E no mesmo álbum, Cássia canta uma canção de um companheiro de geração de Cazuza, que aborda, por outro viés, um sentimento parecido: Por enquanto, de Renato Russo, gravada inicialmente pela Legião Urbana em seu primeiro álbum, de 1984.

De alguma forma, Que o Deus venha e Por enquanto têm temáticas comuns, mas Cazuza (apud Clarice) fala em termos individuais, Renato em termos coletivos – o eu lírico de Por enquanto varia entre a primeira pessoa do singular e a do plural. A possível resolução do dilema existencial proposto por cada uma se resolve no aprendizado dos sentidos (Experimentar o delicado da vida), ou no compartilhamento da experiência (Quando penso em alguém, só penso em você / e aí então estamos bem). Mas trata-se fundamentalmente, não apenas de impasses similares, mas também do mesmo desafio de expressar esta subjetividade em palavras.

A gravação de Cássia para Por Enquanto faz a canção seguir um trajeto comparável ao de Que o Deus venha: se esta vai do blues rasgado e elétrico para algo mais próximo do jazz acústico, a de Renato passa de uma sonoridade eletrônica (que causou espanto ao fechar o álbum da banda) que pode ser relacionada à passagem da banda pós-punk Joy Division para sua nova formação de New Order após a morte do seu vocalista Ian Curtis – o que era fúria desesperada se converte em melancolia -, para um blues assumido e também acústico (aqui apenas o violão de Cássia), em que esta melancolia pode se derramar. Esta adaptação similar de ambas também as aproxima no álbum.

E mais uma decisão interessantíssima de Cássia faz a aproximação, não entre Renato e Cazuza, mas entre Por Enquanto e Clarice: a inclusão, como música incidental, de I’ve got a feeling, de Lennon e McCartney, do álbum Let it be dos Beatles, como introdução para Por Enquanto. I’ve got a feeling, a feeling deep inside, a feeling that I can’t hide. Um blues, um sentimento que não posso esconder, que preciso colocar em palavras. E este é o desafio, colocar em palavras. Já sabia Clarice.

Discoteca Brasílica – Brasil

Brasil, de Cazuza com George Israel e Nilo Romero, gravada por ele no álbum Ideologia, de 1988, é um samba! – ou melhor, é a intromissão do samba no rock, com a inversão da batida do bumbo, do tempo forte para o fraco. Não é a primeira vez que isso acontece – Vida Bandida, de Lobão, e antes disso Blitz e Rita Lee já tinham feito coisas semelhantes. Mas o fato de ser um samba já é um bom motivo para pensar – o porque do roqueiro Cazuza ter recorrido a ele quando decidiu tratar diretamente de seu país e suas mazelas. Mesmo para um roqueiro, Brasil e samba são sinônimos? Ou, sendo uma letra crítica, Cazuza insere nela também uma crítica à carnavalização dos problemas?

Brasil – com Cazuza (a montagem de imagens com mensagens políticas é do autor do vídeo)

Brasil é um retrato interessantíssimo e duplo de um artista e seu país passando por momentos semelhantes. Cazuza havia chegado dos EUA, onde tivera as primeiras crises de saúde resultantes do fato de ser soropositivo para AIDS, e passava por uma crise pessoal que ele narra abertamente na canção-título deste álbum. O país viva os primeiros anos depois da redemocratização, ao mesmo tempo que vivia os rescaldos econômicos e sociais da ditadura. Em ambos os casos, percebia-se na prática que o mundo não era exatamente como se acreditava. A identificação entre estes dois momentos transformou Brasil em um grande sucesso. Cazuza expõe seus questionamentos sem apresentar respostas, e sim partilhando sua busca.

Isto não impede – ou talvez seja por isso mesmo – que uma certa ingenuidade transpareça na canção, fruto da inexperiência diversas de ambos, artista e país. O eu lírico da canção é um guardador de carros na porta de uma festa luxuosa, papel de difícil verossimilhança para Cazuza. Filho de pais ricos, inclusive o presidente da gravadora que o lançou, farrista emérito nas noitadas do Baixo Leblon e em todo tipo de excesso (o que, aliás, explica ao menos em parte o incrível fim da primeira estrofe, em que ele compara as decepções do país com a compra de droga adulterada!), Cazuza tinha, sim, a tremenda sensibilidade e capacidade de empatia profunda com os sofredores – seus biógrafos dizem que era capaz de confraternizar com mendigos e de uma generosidade ímpar. Porém, coisa diferente é transformar estas generosidade e empatia em um discurso político minimamente organizado. A consciência política de Cazuza, se um dia fora articulada, passava então por um momento de desarticulação – e talvez este fosse um mérito, pois lhe dava a liberdade de criador. No entanto, ao abordar o assunto em suas canções, Cazuza tende a resvalar para o populismo em alguns momentos.

É claro de confrontar a vida particular do artista com sua obra é perigoso e pode ser simplesmente moralista. Mas, no caso de Cazuza, é impossível dissociar artista e obra. Se o início de Brasil é baseado nesta identificação com o guardador de carros, o despossuído como o povo brasileiro, logo ele próprio vai abandonando o personagem para, nos últimos versos, deixá-lo de lado inteiramente, em parte também pela generalização do discurso (inclusive incluindo o índio como outro símbolo dos despossuídos, do povo). É impossível não enxergar aqui, mesmo que involuntariamente, um viés demagógico que torna esta identificação algo artificial. Mais tarde, o próprio Cazuza explicitaria e radicalizaria este discurso em Burguesia:

A burguesia fede
A burguesia quer ficar rica
Enquanto houver burguesia
Não vai haver poesia

E logo depois, Cazuza, oriundo e integrante desta mesma burquesia, como que tenta se desculpar: eu sou burguês, mas eu sou artista / estou do lado do povo! A autodefesa soa canhestra ao lançar mão de uma frase feita que foi usada por todos os políticos populistas brasileiros, representantes de oligarquias ou não, de direita e de esquerda, de Getúlio a Lula. Em Brasil, na parte C, ocorre contradição análoga: grande pátria desimportante / em nenhum instante eu vou te trair! Desta vez, a frase populista chegaria a soar piegas se não viesse após um verso inspirado que resume a simpatia e o carinho de Cazuza pela pátria, soando sincero justamente por admitir sua condição algo contraditória. Há uma busca escancarada, em que se toma determinados atalhos para logo depois recuar, como quem exatamente quer uma ideologia para viver.

Mas então pode parecer que Brasil é um grande erro, uma sucessão de passos em falso, uma coleção de discursos ruins. Nada disso. Ao contrário de Burguesia, em que há uma direção definida (e no entanto deve ser lida com ressalvas, dadas as condições extremas em que todo o último álbum de Cazuza foi feito), Brasil em suas contradições internas retrata exatamente um momento de nação, e é isto que a torna forte. E é seu forte refrão que consegue amarrar as pontas soltas, ao se dirigir diretamente ao país como uma espécie de mistério, tomá-lo como seu interlocutor e externar suas dúvidas. Para terminar com um apelo inesperado: Brasil, confia em mim! A inversão surpreendente – em vez de, patrioticamente como nos hinos de louvor à ditadura, pedir para que confiem na pátria, Cazuza pede que ela confie nele – sintetiza um momento histórico de autodescobrimento do país que, não é favor dizer, se prolonga até hoje.

Mas ainda houve um acontecimento na trajetória desta canção que merece uma análise mais detida:

Brasil – com Gal Costa

Brasil foi regravada por Gal Costa especialmente para se tornar o tema de abertura da novela das 8 Vale Tudo, da Rede Globo, o que tornou a canção duplamente metalingística: primeiro pelo fato de a novela se propor a debater ética ao investigar, segundo seu autor Gilberto Braga, até que ponto valia ser honesto no Brasil; e segundo pelos versos finais antes da repetição do refrão: ver TV a cores na taba de um índio / programada pra só dizer sim, uma crítica direta ao poder dos meios de comunicação de massa no Brasil, TV em particular, em contraste com uma realidade simbolizada pelo índio na taba, de múltiplas significações, desde a mais simplória no sentido de uma manupulação da população indefesa até um contraste em que a globalização e o projeto de integração nacional da ditadura são confrontados com a população e sua(s) culturas variadas particularíssimas, o encontro de um Brasil ultramoderno e um arcaico (e agora lembrei do fabuloso filme Bye bye Brasil).

Há duas questões aqui. A primeira é que, Se Cazuza assume a voz do guardador de carros, Gal assume a do Cazuza assumindo a do guardador (pois sua gravação é inequivocamente referencial à anterior, com os metais repetindo os solos de guitarra originais). Ou seja, o que já era algo que parecia forçado agora se torna simulacro – que não não é de todo impróprio, em se tratando justamente da abertura de uma novela. Em compensação, a interpretação de Gal é vigorosa e sustenta a canção, não fosse ela a intérprete que é.

Entretanto, a diferença fundamental entre as duas vem do fato de a abertura da novela escancarar o samba que na versão de Cazuza surgia insidioso no meio da levada da bateria. A transformação de Brasil num samba inequívoco – e mais, um sambão de escola de samba, com direito a repiques de tamborim e roncos de cuíca, mas com uma certa estilização que soa um pouco como uma demonstração para turistas – permite entender um pouco das escolhas que Cazuza faz em sua gravação, ao escolher o samba, mas apenas pouco mais que sugeri-lo no arranjo. Já na versão de Gal – e esta impressão é reforçada ao lembrarmos da imagem forjada por ela em álbuns como Gal Tropical e canções do repertório de Carmen Miranda (obviamente, o buraco é mais embaixo, esta impressão é meramente superficial. Mas lembremos que estamos falando de uma abertura de novela) – ao mesmo tempo que é mantida a força interpretativa, ocorre também como que uma tropicalização da canção – que pode ser entendido no sentido raso de uma mera diluição do conteúdo, ou no sentido relativo ao movimento tropicalista, carregando em si toda a discussão da relação com os meios de comunicação de massa realizada por este movimento.

E então a conversão desta canção de protesto da geração 80, a geração perdida cantada por Renato Russo, em uma abertura de novela com escola de samba, acaba sendo a realização de uma profecia involuntária de Cazuza, feita na mesma canção, ou ao atendimento de uma parte de seu apelo. Pois ao enfatizar até a obviedade as características de Brasil, acaba-se por, pelo avesso, enfatizar também o processo de diluição que isto comporta, fazando o truque vir à tona, e devolvendo ironicamente o valor e o interesse à gravação de Gal, já agora carregada destas leituras sobre leituras a partir da gravação referencial de Cazuza. Mas, ao contrário do que se poderia supor, ao se acrescentar máscaras sobre máscaras à canção, ocorre o contrário de um mascaramento: é quando, ao tentar transformar Brasil num simulacro, o Brasil mostra sua cara. E, ao vermos uma parte dela que seja, (e ao menos há o consolo de conseguir energá-la) temos a impressão de que, infelizmente, ainda falta muito para que ele confie em nós.

Fulano de Tal – Vida e Obra

Em 1988, Cazuza voltou ao Brasil, depois de um curto período nos EUA, e lançou o álbum Ideologia. Nele havia a canção Boas Novas, que dizia:

Senhoras e senhores, trago boas novas
Eu vi a cara da morte, e ela estava viva!

No entanto, Cazuza oficialmente estava apenas recuperando-se de uma pneumonia que se complicara um pouco. Ele só admitiria publicamente ser portador do HIV no ano seguinte. Isto não o impediu, neste trabalho como eu todos os anteriores e posteriores, de colocar abertamente sua vida particular tanto em suas composições como na escolha de repertório alheio, como ao cantar Luz Negra, de Nelson Cavaquinho, a ponto de a revista Veja tê-lo colocado na capa – uma foto de quando pesava 40 quilos – com a manchete Uma vítima da Aids agoniza em praça pública, que causou enorme repercussão.

Cazuza foi um exemplo, como Michael Jackson no artigo abaixo, de artistas que são pratos cheios para exegetas, por colocarem – ou parecerem colocar, em certos casos – suas experiências reais, vividas, em sua obra. Isto dá ao seu trabalho artístico um sabor especial que vai bem além do valor estético: a sensação de penetrar na sua intimidade, pois suas canções são também, de certa forma, confissões. Mas para isto, em tese, é necessário que suas vidas sejam muito interessantes, é claro. Ou que sejam tornadas muito interessantes, e temos diversos exemplos de artistas que, independente do mérito de suas obras, sabem como ninguém utilizar a mídia a seu favor “criando” fatos pessoais para a promoção de sua arte. Mas o que dizer de uma vida absolutamente comum? Será capaz de suscitar uma boa canção?

Um Dia Útil, com Maurício Pereira:

Por outro lado, há uma espécie de senso (ou lugar?) comum de que a arte consiste na “expressão de sentimentos e emoções”. É óbvio que o artista, para criar, usa a si mesmo como matéria prima – seus conhecimentos, experiência, vivências (um amigo meu não pode ouvir ninguém dizer “Na minha opinião…” sem interromper: “Claro que é a sua, de quem mais?). Daí a considerar que obrigatoriamente as vivências relatadas são dele… Chico Buarque, célebre, entre outras coisas, por suas canções sob o ponto de vista feminino, que o diga.

O Meu Amor, com Chico Buarque:

Noel Rosa compôs Três Apitos para uma namorada chamada Josefina, que começara a trabalhar numa fábrica de botões no Andaraí. Noel foi procurá-la em seu carro velho, pensou que trabalhava em outra fábrica próxima, de tecidos.  A história desta confusão pode ser lida neste ótimo artigo.

Noel Rosa, em Três Apitos, fez uma descrição precisa das transformações profundas por que passavam o Rio de Janeiro e o Brasil na década de 30: a rápida industrialização da zona norte, as condições precárias do proletariado (“você no inverno/ sem meias vai para o trabalho”), a proliferação do automóvel, a popularização da publicidade (“quando a fábrica apita/ faz reclame de você”), enfim, uma nova cidade que se punha de pé. Esta análise econômico-social pode ser lida neste ótimo artigo.

Três Apitos é uma obra-prima porque, aliada à sua sensacional qualidade técnica e expressiva (colocando a palavra “grito” na nota mais aguda da música, por exemplo), traz algo do que o artista Noel Rosa era e do que ele via. Traz suas vivências transfiguradas, sua visão de mundo estilizada, e se torna bem maior que ambas. Se é verdade que sempre há uma parcela do público que quer o sangue do artista, cabe a ele realizar o milagre cotidiano da transformação deste sangue em vinho para oferecê-lo ao público. Sua vida não precisa ser espetacular para que sua obra o seja. Seu sangue não durará; o vinho, se tiver qualidade, ficará mais saboroso ao envelhecer, e sobreviverá a ele.

Três Apitos, de Noel Rosa, com Tom Jobim: