A tradição do samba no futuro do pretérito

Em seu livro Tem Mais Samba: das raízes à eletrônica (parcialmente disponível aqui), o jornalista Tárik de Souza afirma:

Mesmo sem violentar o formato tradicional, Paulinho tomou liberdades com o velho ritmo. “Meu samba não se importa se eu não faço rima/ se eu pego na viola e ele desafina” como ele mesmo anuncia em Roendo as Unhas, uma de suas gravações mais próximas do atonalismo.

A harmonia de Roendo as Unhas, do álbum de Paulinho da Viola Nervos de Aço, de 1973, é circular, nunca se resolve. Paulinho usa eufemismos assustadores (“cheirar pelas esquinas minha flor nenhuma”) em uma melodia que caminha aparentemente sem rumo certo, e mesmo quando repete algum motivo numa direção específica (como na repetição ascendente de “se desapareço”, o faz apoiada em acordes que parecem não chegar a lugar nenhum. A canção desafia qualquer formato tradicional de samba, incluindo a divisão de primeira e segunda partes. No entanto, é um samba. E não soa estranha na obra de Paulinho.

Roendo as Unhas – Paulinho da Viola

Estava lembrando de um grupo da década de 90, logo anterior a este tremendo renascimento do samba na Lapa, a Família Roitman, cujo vocalista, Leo Tomassini, ainda está por aí. O grupo sempre me pareceu bem intencionado, mas mesmo quando o assisti ao vivo, nunca consegui me empolgar. Tinha a impressão de que o grupo era muito “certinho”, impressão que se confirmou ao ver o título de seu primeiro CD: O Samba nas regras da arte. Era a confissão da tentativa de se colocar numa fôrma (com acento, que esta Reforma Ortográfica só atrapalha a compreensão), de repetir a tradição  e de se legitimar de alguma forma, os jovens brancos cantando os sambas antigos. Só que o tiro saia pela culatra: a tentativa de seguir “as regras da arte” soavam falsas, fracas, e a sensação de “tem branco no samba” só se fortalecia.

Lobão, uma vez, fez um samba. Se desesperou, ligou para o baixista Artur Maia e disse: “Fiz um samba. E agora, o que faço com ele?” Artur foi à casa dele ouvir o samba, e conversa vai, conversa vem, fizeram outro samba. E se desesperaram de novo: “Meu Deus, agora são dois sambas!” Lobão acabou gravando alguns. O primeiro foi Girassóis da Noite, no álbum Vida Bandida (aliás, a faixa título também tem a célula rítmica básica de samba). Lobão mandou o disco para o Paulinho da Viola ouvir. Paulinho respondeu que os sambas eram excelentes, mas pediu para que o Lobão não deixasse de fazer rock’n roll…

Não fosse Paulinho um autêntico cavalheiro, seria uma crítica irônica aos sambas. Não era. O que Paulinho queria dizer é que Lobão não tinha porque abrir mão de sua vivência em favor de outra – no máximo conectá-las. Não tinha que imaginar que sua música seria menos brasileira ou menos autêntica que qualquer outra. Lobão na verdade já sabia disso, tanto que afirma: “sou músico, sou popular e sou brasileiro”.

Girassóis da Noite – Lobão (não reparem a propaganda no fim ao som de outra música)

O Casuarina lançou seu primeiro álbum em 2005, dez anos depois da estréia da Família Roitman. Em comum, o fato de ter apenas sambas antigos ou feitos por bambas consagrados, como Nelson Sargento e Nei Lopes. A destoar um pouco, apenas o Suingue de Campo Grande, do repertório dos Novos Baianos. Não poderia ser diferente, pois o repertório era calcado no que o grupo costumava tocar na noite.

Porém, no segundo álbum isto mudou. Seu título (e da faixa-título, em que nitidamente os clichês habituais do samba procuram caminhos harmônicos que surpreendam o ouvinte) já diz algo sobre as cobranças a que o grupo foi submetido por ser formado por universitários de classe média (outro paralelo com a Família Roitman), e a afirmação de legitimidade por parte de quem a buscou tocando com quase toda a velha guarda do samba carioca. O cantor João Cavalcanti afirma:

Certidão é um grito. De quem vem sendo posto em cheque por fazer samba. Logo o samba, sempre tão popular e acessível, agora tinha uma cartilha determinando quem o podia ouvir e fazer. Certidão é a resposta dos músicos-não-sambistas-que-fazem-samba-ainda-assim. Quando João Fernando me mostrou a melodia, vi na hora que ela se prestava, como uma luva, a esse propósito de gritar que não pedimos endosso, não pedimos para ser sambistas, apenas ouvimos sambas, fazemos sambas e vivemos do samba. Um pouco por vocação, um pouco por contingência, muito porque ninguém faz samba por preferir.

Esta postura expressa na última frase, de certa forma, é oposta ao pensamento expresso pela velha guarda em composições como O samba é meu dom, de Wilson das Neves (no entanto, a letra de Certidão afirma que “ninguém detém o dom”). João assume que faz samba por uma contingência – o que é comprovado pelas notícias de seu primeiro álbum solo, que está sendo gravado e tem rock e bolero no repertório. O bandolinista João Fernando (abração, João), no início do Casuarina tocava também no grupo Forró na Contramão, que teve de deixar quando o Casuarina ganhou espaço. Longe de ser um demérito, isto é algo recorrente. Beth Carvalho, oriunda da classe média como os rapazes do Casuarina e da Família Roitman, não iniciou sua carreira no samba e chegou a gravar Sentinela, de Milton Nascimento, em um de seus primeiros álbuns. Só com o estouro do samba Só Quero Ver,  de Edmundo Souto e Paulinho Tapajós, foi que ela passou a se assumir sambista, chegando hoje a ser a madrinha de toda uma geração de músicos oriundos do Cacique de Ramos.

E onde é que eu quero chegar com isso tudo? Resumindo: na possibilidade de renovação do samba a partir do histórico cultural diversificado dessas novas gerações, desde que não tentem mimetizar isto em troca de uma aceitação, seja de mercado, seja pelas velhas guardas. Paulinho da Viola não tem uma história diferente das outras relatadas aqui. Filho do violonista Cesar Faria, do conjunto Época de Ouro, mas também funcionário da Justiça Federal, Paulinho cresceu em Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro e conheceu Jacob do Bandolim e Pixinguinha ainda criança. Depois, entrou em contato com os compositores de samba frequentando seus ambientes, e emplacou suas primeiras músicas, inclusive em parceria com eles. Isto o levou a dominar a forma clássica do samba com maestria. Porém, assim que isto aconteceu, ele se deu o direito de mudar esta forma, de retrabalhá-la, de misturá-la com as outras coisas que ouvia. Não para deturpá-la, mas para levá-la adiante, investigar suas possibilidades.

Foi isso que Paulinho quis dizer a Lobão: que não desistisse de sua linguagem ao adotar outra, que não deixasse de ser roqueiro ao ser sambista. O caso extremo de Lobão é perfeitamente aplicável ao Casuarina, que analiso aqui como (não únicos) expoentes de toda uma turma que dá duro na Lapa de segunda a segunda. Depois de um aprendizado reverente, o grupo está chegando ao ponto de maturidade, e se declarando apto a voar mais alto, e se inserir na música nacional como um trabalho original, como um passo à frente na evolução do samba. Boa sorte para os rapazes, agora que tiraram o peso das costas. E divirtam-se/nos.

Certidão – Casuarina

João, o radical – parte 1

Sou amigo do João Gilberto. No Facebook, claro. E é claro que já soube também que não deve ser ele, graças a uma reportagem duvidosa da Revista Veja, que transforma declarações dele ao longo de dez meses em uma espécie de entrevista sem perguntas, e, fiel à sua atual linha editorial mais anedótica que analítica, preocupa-se em pintar um João exótico, sem trazer nada sobre o que realmente importa: sua música.

João inventou um jeito de fazer música que é a síntese de tanta coisa ao mesmo tempo que fica difícil fazer a lista. Ele é o lugar onde a música popular brasileira feita até então se condensa num ponto só, como uma singularidade física, e daí novamente se expande como num big bang. Mas tudo passa por ele, como a areia de uma ampulheta tem de passar pelo centro (desculpando a mistura de metáforas). E tudo o que se faz na música posterior a João se faz, de algum modo, pelos ouvidos dele.

Não é à toa que Milton, Chico, Caetano, Gil e muitos outros já disseram em entrevistas que começaram a tocar violão depois de ouvir o João. Gil, inclusive, tocava acordeão, e mudou quando ouviu Chega de Saudade. Talvez o que aventei no parágrafo anterior explique porque boa parte do grande público gosta dos que gostam de João, mas não do próprio João. Talvez a síntese de informações contida em sua música a torne mesmo difícil de ser decodificada. Caetano, Chico e outros fazem esta decodificação, de certa forma diluindo João ao escolher aspectos de sua música para desenvolver e misturar com outras influências.

Muitos já disseram que as canções de Tom Jobim parecem ter sido feitas para o João. Entendo que, no surgimento da Bossa-Nova, realmente uma catalizava a outra, as duas com o ar de novidade necessário ao momento, mas hoje, cada vez mais, acho que a interpretação de João foi feita para Caymmi, um compositor anterior à Bossa. Não é por acaso que João foi cada vez mais preferindo gravar canções mais antigas, deixando o repertório de Tom um pouco de lado, ao mesmo tempo que Tom, em sua última fase, reuniu um grupo – a Banda Nova – para poder fazer melhor o que já fazia – compor os arranjos junto com as canções. Neste ponto, ele também se distancia de João, haja vista que, no primeiro állbum de João, os arranjos são de Tom.

E o que João faz com as canções antigas, como também faz com as de Tom? Mais ou menos o contrário do que Tom fez, ou seja, em vez de vesti-las com a elegância de um coro feminino, flauta, violoncelo, João as despe. Tira delas tudo o que for acessório. Sobram a melodia, cantada sem nenhum efeito; a harmonia, homogeneizada na parede dos acordes do violão; e o rítmo. Ah, o ritmo. Todas as sutilezas de tempo e contratempo possíveis. É a única concessão a que João se permite. Mas mesmo esta está unicamente a serviço da canção. Eis aí o radicalismo absoluto de João. Como um fotógrafo da Playboy – vá lá, como um Rubens, ele deixa nua a canção, e a registra com todo o requinte – e sem Photoshop. Então a canção aparece inteira, sem disfarces.

E quando a canção foi despida de seus arranjos orquestrais, de seu canto empostado, ela se revela realmente como é – e a escolha de repertório do João é impecável, redescobrindo jóias esquecidas e as reinventando para o público. Várias delas depois foram regravadas por outros artistas, e só então caíram na boca do público – como Sandália de Prata, de Ari Barroso, que depois de passar por João virou Isto aqui o que é, com Caetano, e foi tema de novela.

Eu ainda ia falar aqui sobre duas composições do João, Oba-lá-lá e Bim-bom, que são a síntese da canção como João é a síntese da interpretação, mas vai ficar para outro artigo. Termino comparando três gravações da mesma música, pré, durante e pós-João. Convido o leitor a ouvir como ele “resume” a interpretação de Caymmi, e como o Casuarina e o Moinho “se apossam” do que ele fez com a música, independente do tom festivo que trazem. É um bom exemplo de como ficou impossível fazer música brasileira sem o prisma radical que ele nos legou. 

Rosa Morena com Dorival Caymmi

Rosa Morena com João Gilberto 

Rosa Morena com Casuarina e Moinho