Clarice e Cazuza: “Como reproduzir em palavras o gosto?”

Há muitas maneiras de escrever uma canção. Há quem pense primeiro na melodia – alguns só pensam nela, e deixam outros colocarem a letra; outros, ao contrário, pensam primeiros nos versos, e para alguns os elementos vêm juntos à mente. Mas, no segundo caso, de uma letra que recebe melodia, provavelmente a situação mais desafiadora é a de musicar um texto em prosa. Um poema tem quase sempre algum tipo de regularidade que permite a divisão estrófica, a repetição melódica em versos do mesmo tamanho, sem falar das rimas. Nada disso está presente em um texto em prosa, e é preciso como que inventar meios de suprir estas ausências. Alguns compositores se aventuraram nesta seara. Um deles, numa parceria inesperada. Em algum momento da década de 1980, Cazuza, com o discreto auxílio de Frejat, musicou ninguém menos que Clarice Lispector. A canção Que o Deus venha só foi gravada pelo Barão Vermelho após saída do vocalista, no álbum de 1986, Declare Guerra.

Frejat conta que Cazuza o procurou para fazer ajustes na canção e ele se espantou, pois ao ler a letra achou-a perfeitamente dentro do estilo do parceiro. O trecho musicado por eles vem do livro Água Viva, de 1973. Água Viva é, possivelmente, o texto mais ambicioso de Clarice, embora curto, cerca de 50 páginas apenas. Água Viva não chega a ter uma história a ser contada: sabe-se parcamente que a narração em primeira pessoa é feita por uma pintora, e é dirigida a um homem com quem, em algum momento, teve um relacionamento. E é só. O livro é feito de divagações da protagonista sobre seu mundo interno, suas sensações, e o desafio que é colocar em palavras estas coisas inefáveis. Água Viva é simultaneamente uma tentativa direta, sem rodeios, da descrição das subjetividades mais íntimas de um ser humano, e a descrição, igualmente subjetiva e metalinguística, do processo de fazê-lo.

Ao longo do texto, a narradora de Água Viva faz frequentes comparações entre a pintura, com a qual tem intimidade, com o uso da palavra para o mesmo fim de expressão, com a qual, segundo ela, não tem, e diz se atrapalhar. E em alguns outros momentos, ocorre também a comparação com a música. “Não se compreende música: ouve-se”, afirma ela. E mais adiante: “Minha pintura não tem palavras: fica atrás do pensamento” (…) Estou sendo antimelódica. Comprazo-me com a harmonia difícil dos ásperos contrários”. E finalmente, ainda mais adiante:

Como reproduzir em palavras o gosto? O gosto é uno e as palavras são muitas. Quanto à música, depois de tocada para onde ela vai? Música só tem de concreto o instrumento. Bem atrás do pensamento tenho um fundo musical. Mas ainda mais atrás há o coração batendo. Assim o mais profundo pensamento é um coração batendo.

Como se vê, Clarice é pessimista quanto à possibilidade de converter em linguagem o que vai dentro, no entanto não cansa de tentar. E, se considera que no mais profundo do pensamento há uma pulsação, admite implicitamente a possibilidade de a música expressar o que busca.

Passemos então ao trecho escolhido por Cazuza, que teve pouquíssimos ajustes para receber música. A parte efetivamente incluída por Cazuza na canção vai frisada.

(Estou) precisando mais que a força humana. Sou forte mas também destrutiva. O Deus tem de vir a mim já que não tenho ido a Ele. Que o Deus venha: por favor. Mesmo que eu não mereça. Venha. Ou talvez o que menos merecem mais precisem. Sou inquieta áspera e desesperançada. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor. Ás vezes me arranha como sem fossem farpas. Se tanto amor dentro de mim recebi e no entanto continuo inquieta é porque preciso que o Deus venha. Venha antes que seja tarde demais. Corro perigo como toda pessoa que vive. E a única coisa que me espera é exatamente o inesperado. Mas sei que terei paz antes da morte e que experimentarei um dia o delicado da vida. Perceberei – assim como se come e vive o gosto da comida.

Cazuza, além de passar o eu lírico para o masculino, muda muito pouco no texto – a alteração mais impactante provavelmente está na parte final, em que ele troca o verbo perceberei pela expressão Vou aprender, e retira a palavra assim. Este verso acaba ganhando uma conotação ligeiramente diferente, e menos sutil, tornando-se “Vou entender como se come e vive o gosto da comida”. Mas mesmo esta modificação, nitidamente com o intuito de simplificar a frase de modo a torná-la mais compreensível ao ser cantada, não chega a ser prejudicial. O fundamental aqui, antes de tudo, é encontrar a regularidade do texto – sua pulsação, a batida de seu coração – que abra caminho para a melodia. E Cazuza consegue isso com o blues.

Evidentemente, o blues está inteiramente dentro do estilo do Barão Vermelho, e é uma escolha natural para muitos temas tratados pelo grupo e por Cazuza em sua carreira solo. Mas particularmente para este trecho de Clarice, ou para Clarice de forma mais geral, o blues se presta à perfeição, tanto tecnicamente quanto em espírito. Sua pulsação lenta e marcada como um coração, com uma base harmônica bastante simples (no caso, não a clássica sequência de acordes, mas uma em tom menor, mas ainda assim capaz de dar muita liberdade para o improviso vocal) permitem à voz de Frejat passear dando a cada frase a entonação de que ela precisa, sem a amarra de uma melodia que se repita, já que a harmonia já concede esta regularidade. Mas mais que isso, a própria ideia do blues como descendente direto dos spirituais, os cantos entoados para que o Deus venha, ajusta-se à noção do texto tornando-o uma espécie de prece torta – não à toa Frejat espantou-se que ele não fosse de autoria do próprio Cazuza.

O pesquisador Rafael Julião, em um excelente artigo sobre a relação entre Cazuza e Clarice, aponta:

O fragmento específico que dá origem a “Que o Deus venha” toca em um ponto de constante inquietude na obra de Cazuza: a incapacidade de amar, que se apresenta como o grande pathos do compositor. A recorrente afirmação do não saber amar (em tensão com seu intenso desejo de transitividade amorosa) atravessa várias de suas composições e se faz notória nos versos “embora amor dentro de mim eu tenha/ só que eu não sei usar amor”.

Formulações semelhantes aparecem nas letras de “Malandragem” (“eu sou poeta e não aprendi a amar”), “Rock’n’geral” (“ou de um coração meio surdo que não sabe amar”), (“não amo ninguém e é só amor que eu respiro”) “Não amo ninguém”, “Filho único” (“estou na mais completa solidão/ do ser que é amado e não ama”), “Nunca sofri por amor” (“será que nunca amei de verdade/ ou o verdadeiro amor é assim”), “Carente profissional” (“levando em frente/ um coração deprimente/ viciado em amar errado/ crente que o que ele sente/ é sagrado/ e é tudo piada”) e “Fracasso” (“mas eu tenho a impressão/ que todos nós somos fracassados/ eu, por exemplo: não amo…”).

Assim três pontos chave da letra estão posicionados exatamente sobre os mesmos acordes: os versos “Só que eu não sei usar amor” e “É que eu preciso que o Deus venha” são cantados sobre os acordes deslizantes de F para E7 – este a dominante, que conduziria à tonalidade e ao repouso, mas não conduz, pois a cadência é quebrada e vai em seguida em outra direção, deixando em suspenso o desejo, o amor, a espera da vinda de Deus. O terceiro ponto em que esta mesma harmonia é usada é, já na última estrofe (a canção ganha o formato clássico AABA), sob o verso “O delicado da vida”, em que a melodia desce para o grave e se suaviza acompanhando a letra, mas novamente ilustrando uma suspensão, já que a letra afirma esperar um dia experimentar esta delicadeza, antes da morte.

Assim, Cazuza e Frejat conseguem encontrar um delicado equilíbrio entre o ritmo livre do texto em prosa e a estruturação estrófica da canção, concedendo liberdade à melodia ao mesmo tempo que esta organiza o texto, a ponto de conseguirem uma única rima, em versos diferentes de cada estrofe, tenha/venha. Menos que uma rima, um eco distante entre a falta de amor e a espera de Deus.

E então, em seu álbum de estreia em 1990, Cassia Eller apresentou sua versão de Que o Deus venha.

Afora Cássia ter trazido o eu lírico da canção de volta ao feminino, sua gravação mantém, é claro, a atmosfera bluesly da canção, mas acrescentando-lhe algo de jazzy, devido à formação: Jorge Helder no contrabaixo acústico, Écio Cafaro tocando a bateria com vassourinhas, Nelson Faria ao violão e Zé Marcos no piano. O arranjo acústico tira bastante da agressividade da gravação original, mas a aspereza mencionada logo no primeiro verso permanece na voz de Cássia. Mas além disso, a mudança de timbres traz à canção uma certa sensação de desamparo. A solidão que na gravação do Barão era quase orgulhosa, em certa medida desafiando Deus a aparecer, aqui ganha em suavidade e um tom mais próximo da desesperança também mencionada na letra.

E no mesmo álbum, Cássia canta uma canção de um companheiro de geração de Cazuza, que aborda, por outro viés, um sentimento parecido: Por enquanto, de Renato Russo, gravada inicialmente pela Legião Urbana em seu primeiro álbum, de 1984.

De alguma forma, Que o Deus venha e Por enquanto têm temáticas comuns, mas Cazuza (apud Clarice) fala em termos individuais, Renato em termos coletivos – o eu lírico de Por enquanto varia entre a primeira pessoa do singular e a do plural. A possível resolução do dilema existencial proposto por cada uma se resolve no aprendizado dos sentidos (Experimentar o delicado da vida), ou no compartilhamento da experiência (Quando penso em alguém, só penso em você / e aí então estamos bem). Mas trata-se fundamentalmente, não apenas de impasses similares, mas também do mesmo desafio de expressar esta subjetividade em palavras.

A gravação de Cássia para Por Enquanto faz a canção seguir um trajeto comparável ao de Que o Deus venha: se esta vai do blues rasgado e elétrico para algo mais próximo do jazz acústico, a de Renato passa de uma sonoridade eletrônica (que causou espanto ao fechar o álbum da banda) que pode ser relacionada à passagem da banda pós-punk Joy Division para sua nova formação de New Order após a morte do seu vocalista Ian Curtis – o que era fúria desesperada se converte em melancolia -, para um blues assumido e também acústico (aqui apenas o violão de Cássia), em que esta melancolia pode se derramar. Esta adaptação similar de ambas também as aproxima no álbum.

E mais uma decisão interessantíssima de Cássia faz a aproximação, não entre Renato e Cazuza, mas entre Por Enquanto e Clarice: a inclusão, como música incidental, de I’ve got a feeling, de Lennon e McCartney, do álbum Let it be dos Beatles, como introdução para Por Enquanto. I’ve got a feeling, a feeling deep inside, a feeling that I can’t hide. Um blues, um sentimento que não posso esconder, que preciso colocar em palavras. E este é o desafio, colocar em palavras. Já sabia Clarice.

O voo da mosca de Luís Capucho

Há muitos anos os engenheiros aeroespaciais estudam as moscas domésticas. O voo aparentemente descontrolado mas incrivelmente preciso delas, capaz de se desviar de obstáculos com extrema agilidade (experimente atingir uma no ar) se deve a um órgão chamado balancim, que os engenheiros tentam reproduzir em aviões, dois pequenos bastões embaixo das asas que se movimentam de forma a contrabalançar forças externas como rajadas de vento e aumentar o equilíbrio nas curvas. Com eles, o voo da mosca traça com perfeita segurança linhas sinuosas as mais imprevisíveis.

Guardemos esta informação e passemos ao tema da canção. O compositor e pesquisador Luiz Tatit é defensor da tese de que a melodia da canção popular se origina das variações naturais da fala, estilizadas em notas musicais, e que uma canção será tão mais bem sucedida artisticamente quanto mais conseguir conciliar esta origem na fala com a estruturação formal estrófica. Tatit demonstra sua tese tanto em termos teóricos, organizando um método de análise melódica e aplicando-o a numerosas peças do nosso cancioneiro, quanto práticos, em seu trabalho de compositor desde o Grupo Rumo, caracterizado por estar sempre no limiar entre canto e fala, sem que suas canções deixem de ter refrões e repetições.

Guardemos mais esta informação para nos aproximarmos do tema deste artigo, Luís Capucho. Para isso, torna-se indispensável uma curta informação biográfica. Capucho despontou junto a uma turma de músicos cariocas na década de 1990, como Pedro Luis, Mathilda Kovak, Arícia Mess e Suely Mesquita. Porém, antes mesmo de gravar seu primeiro álbum, Luís teve um sério problema de saúde. Esteve em coma devido a uma neurotoxoplasmose e, ao se recuperar, permaneceu com dificuldades motoras que afetaram tanto seus movimentos quanto sua fala. Capucho foi obrigado a reinventar sua forma de tocar o violão que lhe acompanhava e também seu canto.

E guardemos esta última informação para enfim tratarmos do tema real deste artigo, a música de Luís Capucho e seu formato cancional muito particular. As canções de Capucho não seguem à risca a teoria (e prática) de Tatit, antes se relacionam com a voz falada de uma outra forma igualmente forte, mas talvez mais sutil. Se Tatit pensa na relação fala/melodia fonema a fonema, com as variações naturais da voz se desdobrando nas notas, Capucho faz esta passagem de forma mais ampla, com curvas mais suaves, no desenvolvimento das frases e articulações ente elas. Se em Tatit (e na canção tradicional que ele analisa) a irregularidades da fala se convertem em curvas regulares na melodia, em Capucho a regularidade é a do voo da mosca, inesperada, imprevisível, mas equilibrada por um sistema de contrapesos internos invisível ao ouvinte. A forma melódica de Capucho não acompanha a voz, mas o divagar.

Como resultado, as canções de Capucho mal têm repetições de melodia – que dirá refrões. Têm, sim, motivos melódicos – um motivo é uma sequência de poucas notas, três, quatro, a ser desenvolvida (o exemplo mais famoso provavelmente são as quatro notas iniciais da Quinta Sinfonia de Beethoven), diferentemente de um tema composto por mais notas e mais desenvolvido (e frequentemente contendo um ou mais motivos em si). Capucho usa motivos diversos em suas canções, o que dá a elas suas faces particulares, mas dificilmente encontraremos nelas estrofes com a mesma melodia e letras diferentes, assim como numa conversa não se usa a mesma entonação para dizer coisas diferentes. A melodia de Capucho desenvolve o assunto tanto quanto a letra, com a reiteração mínima necessária.

Praticamente todas as composições do Capucho poderiam servir de exemplo aqui. Tomemos a que possivelmente é a mais conhecida de sua autoria, Maluca. Ela foi gravada em 2003 em seu primeiro álbum, Lua Singela. Entretanto, alguns anos depois Capucho lançou o álbum Antigo, que é o registro de um show feito em 1995 no Café Laranjeiras, no Rio de Janeiro, ainda antes de suas questões de saúde. Neste caso, comecemos por este.

E na escuta se percebe um outro procedimento que, além da melodia sem repetição, dá às canções de Capucho esta feição irregular da fala: a quebra da quadratura de compassos.

Explico. Embora o tempo musical possa ter diversas contagens – de dois em dois, três em três, quatro, e mesmo compassos compostos como de três tempos repetidos, ou os chamados irregulares como de cinco ou sete tempos, a contagem de compassos é surpreendentemente mais rígida, especialmente na canção popular. Uma frase musical será composta com enorme frequência por um número par ou, mais precisamente, por quatro compassos ou um múltiplo dele. Uma estrofe terá oito ou dezesseis compassos, e assim por diante, e portanto toda a composição será dividida nestes subgrupos, cada um com sua própria sensação de completude. O desenvolvimento harmônico-melódico se dá dentro desta perspectiva, obedecendo a esta estrutura de quatro em quatro que seguimos quase instintivamente na escuta, acostumados que estamos com séculos desta regragem.

Ocorre que a língua falada não se importa nem um pouco com os múltiplos de quatro. E, se a canção tradicional, ao fazer a passagem da fala para o canto a cada som, faz também sua transposição para os ciclos de quatro, Capucho por sua vez, ao fazer esta passagem pela via do discurso, se permite quebrar a quadratura inúmeras vezes. Não se trata de compassos compostos ou de tamanhos diferentes (às vezes também, mas não é o recurso principal). Em vez disso, seu ciclo de discurso, que seria correspondente a uma estrofe, poderá ter três, cinco, sete compassos, à vontade, conforme seja necessário para completar a sentença e a ideia. Isto dará a suas composições feições irregulares, tornando-as mesmo desafiadoras para cantores e acompanhantes, que precisam procurar ou mesmo criar alguma regularidade para poder interpretá-las.

Foi isso que fez Cassia Eller ao incluir Maluca no repertório de seu álbum Com você.. meu mundo estaria completo, em 1999.

Cassia, para sua versão, baseou-se na gravação da apresentação de Capucho em uma fita cassete que lhe chegou às mãos. É nítido o seu empenho em explicitar em Maluca uma forma próxima da tradição cancional, ainda que Cassia fosse uma intérprete pouco afeita a convenções – ou não teria escolhido esta canção. As pausas entre as frases se tornam mais regulares que na voz de Capucho, assim como as divisões rítmicas da voz são mais marcadas. Além disso, Cassia torna o encerramento da música em uma espécie de refrão, mesmo que iniciado a partir da repetição do fim de uma frase. O verso começa com Era grande o barulho da chuva, e em seguida:

…da chuva
Eu fiquei maluca
Eu fiquei maluca

A repetição deste trecho, que Capucho não fizera, cria um ciclo de 16 tempos que se repete para encerrar a canção. Com isto, e também com as diferenças sutis de tratamento vocal da melodia, Cassia consegue tornar a escuta de Maluca mais familiar ao ouvinte, sem deixar de lado suas características essenciais. Ademais, ela segue o sentido interpretativo suave de Capucho e que é também o tom geral do álbum Com você…, em que ela surpreendeu o público trocando sua performance rascante e mesmo gritada de roqueira por interpretações mais tranquilas – e um repertório adequado à mudança.

E só em 2003, Capucho apresenta sua versão da música (uma vez que o álbum Antigo foi lançado mais tarde).

No álbum Poema Maldito, de 2014, antes de cantar a canção Formigueiro, Capucho diz:

Essa é uma música que eu fiz muito antigamente. Então cantar essas músicas que eu fiz muito antigamente com essa voz de agora é muito estranho para mim. Mas eu quis fazer isso.

Na comparação com a versão de 1995 de Maluca, é possível perceber algumas das adaptações que Capucho foi obrigado a fazer em seu estilo de tocar tanto quanto em sua voz. Esta se tornou mais gutural. As dificuldades de coordenação o levaram a trocar o dedilhado pelo rasgueio na mão direita, e passou a ser necessário um esforço para pronunciar as palavras de forma inteligível. Isto não deixa de transparecer na interpretação, mas, curiosamente, não a prejudica. É claro, tudo se afasta do padrão de beleza e suavidade, mas ao mesmo tempo acrescenta como que um colorido novo à canção. Por outro lado, tanto a mudança vocal quanto o ritmo mais marcado no violão passam a contrastar mais fortemente com a fluidez estrutural da composição, e Capucho adota a repetição dos últimos versos feita por Cassia, com a volta da quadratura.

No comentário que faz ao álbum Lua Singela em sua página, Luís Capucho diz:

De meu ponto de vista, tudo continua delicado e tradicional, mas porque, com os dois ou três acordes que “espanco” no violão e com minha voz meio de lava com que faço a melodia, ficou a ideia de um Luís Capucho grunge, underground, maldito e tudo. Mas repito que sou um bom rapaz e continuo a fazer MPB.

Depois de toda a análise feita acima, afirmar que o que Capucho faz está na tradição da MPB se torna um pouco mais difícil. Mas isto não significa que também não traga nela algo do gesto cancional desenvolvido por tantos anos. Assim, ao enumerar os lugares onde distribui os botões de rosa, a divisão rítmica de Maluca se acelera em notas de tessitura média, caracterizando a ação repetida pela repetição de notas próximas. E ao final da frase, o verso Da chuva se lança para o ponto mais agudo da canção, passando da figurativização para a passionalidade em notas estendidas. E funciona: a sucessão rápida entre estas duas funções semióticas pega o ouvinte de surpresa (ainda mais com a quebra de quadratura da estrofe) e traz a emoção à tona. Quase é possível enxergar o eu lírico da canção girando na chuva entre botões de rosa, a própria imagem da felicidade.

A música de Luís Capucho tem um nível enorme de originalidade, tanto em termos estruturais, como tratamos, quanto pelo tratamento dado a temas aparentemente banais como o de Maluca – a passagem de um caminhão levando flores – ou o de Atitudes Burras – a descrição de pessoas numa sala de espera – ou Antigamente – o ato de pedir um cigarro a um desconhecido na rua. Em todas, Capucho consegue que destes pequenos acontecimentos extraia-se algo que os transcende – ou no dizer de outro compositor pouco convencional, o paulista Maurício Pereira, que uma banalidade gere uma canção gigante. Luís Capucho compartilha a deriva de seu pensamento em uma dicção própria e refinada, uma poética crua e delicada. Um voo de mosca que, antieuclidianamente, ultrapassa o espaço.

Um épico mouro-nordestino

Entre 1984 e 1986 Djavan sofreu um bocado na mão da crítica. Depois de lançar o álbum Lilás, o segundo gravado em Los Angeles, sob a produção de Ronnie Foster (o primeiro, Luz, recebera elogios rasgados), embora várias das canções tivessem estourado nas paradas, inclusive a música título, muitos estranharam que ele tivesse feito um álbum de música pop, cheio de teclados, com pouquíssimo das características regionais que haviam alavancado sua popularidade e justamente haviam possibilitado este início de carreira internacional.

A reação dele foi radical: Meu Lado, o álbum seguinte, tirava quase todas as sonoridades sintéticas e colocava o violão em primeiríssimo plano, dialogando diretamente com a voz. E, para que não ficassem dúvidas sobre qual era o lado dele, fechou o disco com o Hino de Congresso Nacional Africano e com o Hino da Juventude Negra da África do Sul. Já não apontava só para o Nordeste, mas mais atrás e além.

A partir daí, ele tem conseguido, de formas diferentes, promover este encontro sem tantos choques, de forma mais homogênea, e o álbum seguinte, Não é azul mas é mar, novamente gravado nos EUA e talvez o trabalho de Djavan de maior êxito no exterior, é prova disso. Em alguns momentos ele parece pender mais para o pop, como na fase Bicho Solto (1998); em outros, volta a beber nas fontes das Alagoas, como em Novena (1994). E acrescente-se que, ao lado destas duas vertentes, foi somando outras escutas como o jazz, que possibilitam leituras diversas de suas primeiras influências.

Em 2001 Djavan gravou Milagreiro, em que faz mais uma dessas voltas para casa. A canção-título foi gravada com Cássia Eller e é um exemplo acabado destas possibilidades de amálgama. Milagreiro tem um compasso chamado binário composto, o que já é uma sutileza rítmica. A levada da percussão de João Viana ressalta ora o caráter binário, ora o ternário do compasso, num ritmo que não é especificamente nenhum, mas que remete a música regional, do interior. Ao mesmo tempo, a harmonia da introdução, que continua por toda a primeira parte, tem um colorido flamenco, que aqui é levado mais a efeito que em Oceano, primeira experiência de Djavan neste sentido, onde só havia a participação de Paco de Lucia sobre uma harmonia mais convencional.

A música já se inicia numa tessitura muito aguda para a Cássia – na repetição Djavan tem que apelar para o falsete (e a Cássia é que faz a segunda voz mais grave). Com isto, cria-se uma atmosfera de tensão para acompanhar a letra, que apresenta o personagem do santeiro ao mesmo tempo que o associa desde logo a dor e sofrimento, sem explicar por quê.

A segunda parte vem em contraste, ainda aguda, mas de melodia quase retilínea. É nela que acontece a narrativa cinematográfica da história do santeiro anônimo. Na frase ele aluou, o piano anuncia a frase ascendente que será explorada na terceira parte, contrastando por sua vez com a melodia atual, e simbolizando a dor da loucura do personagem. A frase passou pela vida e foi cair na solidão, obviamente, vai descendente até o ponto mais baixo da canção inteira – o único momento em que a voz de Djavan soa absolutamente confortável.

E então, na terceira parte, composta por apenas duas frases que arrematam a história e a comentam, a melodia volta ao agudo e a harmonia volta ao flamenco, agora com mais força. A característica harmônica do flamenco é a de se resolver num acorde suspenso, o que dá ao ouvinte exatamente a sensação de suspensão, de não terminação. Isto ocorre na primeira parte na frase e diz que a vida é feita de ilusão, que termina numa nota ascendente (ou seja, não afirmativa) e de que é a base do acorde de dominante, o que também dá a impressão de suspensão. E na terceira parte, a harmonia se sustenta toda neste acorde dominante, no caso de mi maior, e a melodia também termina ascendente. Isto tudo para fixar a impressão no ouvinte de uma incompletude que é a do santeiro, louco pela lembrança da mulher amada que se foi e que não voltará, o simbolismo do amor que nunca se realiza.

Milagreiro é uma canção de arcabouço sofisticado sem perder um pé firme no universo regional, uma música que não poderia ter sido feita em nenhum lugar do mundo – um épico mouro-nordestino, como o próprio Djavan o definiu e eu gostei tanto que botei no título. Uma canção de maturidade, de quem passou a vida burilando o próprio estilo e procurando o equilíbrio entre diversas possibilidades que cresceram no correr dos anos. Tenho a impressão de que o Djavan também não poderia ter feito esta canção antes. E me consolo com ela quando ele insiste em fazer outras só para dar xaveco em mulher. Bonitas também, mas não chegam aos pés. Pessoalmente (e sem duplo sentido), prefiro Djavan quando ele volta para casa.

Cassia Eller e a diferença entre regravação e releitura

Cássia Eller tinha um monte de qualidades, mas a que mais me chamou a atenção desde sempre foi a sua escolha de repertório. Para um intérprete, saber escolher o que vai cantar é meio caminho andado. A Cássia tinha um estilo e uma sonoridade muito específicos e identificados com o rock, e tinha a capacidade de escolher canções de lá de dentro da tradição da MPB, canções muitas vezes quase desconhecidas – as chamadas “lado B” – que se adaptavam à maravilha a ela, ao mesmo tempo que ela sabia fazer com que suas características pessoais se somassem à música cantada. Em suma, ela nunca gravou uma música só porque a achou linda, e este era seu maior trunfo.

Um grande exemplo disso é exatamente seu primeiro sucesso, a regravação de Por Enquanto, de Renato Russo, faixa que fechava o primeiro álbum da Legião Urbana. Por Enquanto foi composta e gravada dentro de uma atmosfera de desencanto pós-punk que tinha influências fortes de grupos como o Joy Division e sua reencarnação eletrônica, o New Order. Pois Cássia teve a idéia genial de dar-lhe um tratamento bluesly que a deslocou no tempo e no espaço, e a recontextualizou totalmente. A tristeza que era geracional assumiu um referencial mais de um século mais antigo, e cada uma de suas frases ganhou novas possibilidades de significado. Mas o mais interessante é a capacidade de Cássia de cantar a canção como um blues sem soar forçado, já que o blues tem fraseados e harmonizações específicos (e aí a o timbre vocal da Cássia ajudou muito). Enxergar esta possibilidade de releitura real, mais do que regravação, é algo que separa intérpretes de cantores.

Por Enquanto – Legião Urbana

Por Enquanto – Cássia Eller

Cássia abriu seu segundo álbum, O Marginal, de 1992, com uma música de Beto Guedes e Márcio Borges que nada lembra as canções suaves dele que tocaram em rádios, como Sol de Primavera:

Caso você queira saber – Beto Guedes (1973)

A primeira gravação de Caso você queira saber é de um obscuro álbum gravado por Beto Guedes, Toninho Horta, Danilo Caymmi e Novelli. Como quase todos os álbuns do Clube da Esquina desta época (o primeiro de Lô Borges é outro exemplo), foi feito de forma cooperativa, como os amigos se revezando nos instrumentos, de forma que quase todos tocavam tudo. Basta dar uma olhada em quem tocou o que nesta faixa:

Beto Guedes: Voz, violão e bateria
Flávio Venturini: acordeon
Frederiko: guitarra
Lô Borges: baixo elétrico
Maurício Maestro (líder do grupo vocal Boca Livre): percussão
Novelli (notável baixista): percussão
Toninho Horta: percussão
Vermelho (integrante do 14 Bis): órgão

Dois anos depois, com a participação do próprio Beto Guedes, Milton Nascimento fechou seu álbum Minas com esta faixa.

Caso você queira saber – Milton Nascimento e Beto Guedes (1975)

É de se notar como a gravação de Milton radicaliza a sonoridade de rock progressivo que a primeira trazia, desde a introdução com guitarra, enquanto que na de Beto Guedes o violão é preponderante, com fraseados típicos de viola caipira, numa levada ternária que vai entre um congado e uma moda de viola.

(por sinal que recomendo o excepcional estudo sobre o Clube da Esquina como movimento feito por Ivan Vilela, violeiro e pesquisador, aqui).

E então Cássia Eller se apossou da música.

Caso você queira saber – Cássia Eller

À primeira audição, parece óbvio o que Cássia fez: tomou uma canção de temática feroz passando-a para o universo do rock, ou melhor, escancarando esta relação que já havia. É isto, mas é mais, por um detalhe: Cássia passou a canção do universo do progressivo para Jimi Hendrix (e ela gravou duas músicas do Hendrix no mesmo álbum). Esta escolha não é casual, pois assim ela pôde capitalizar esta fúria na interpretação. explicitando-a de maneira muito mais clara. Ou seja, em que pesem as qualidades instrumentais de cada um, o arranjo da gravação dela, em tese, é o mais “adequado” em sua relação com a canção. Por outro lado, grande parte do interesse que as duas outras gravações despertam vem justamente do estranhamento que fica entre a levada próxima da música regional e a temática terrível. Ou seja, ao trazer a canção para um elemento mais familiar, Cássia corre também o risco de torná-la mais comum.

Cassia compensa este possível perda de densidade com sua interpretação. A melodia angulosa de Beto Guedes é muito ressaltada nas duas primeiras gravações pelo fato de ser cantada em ritmos bem marcados. Cassia segue o caminho oposto. Por cima da marcação firme do trio guitarra/baixo/bateria, ela se permite cantar a melodia com variações no tempo que a aproximam da entonação falada. A densidade que havia no contraste arranjo/canção passa para a voz – é como se ela chamasse a responsabilidade para si, e a aproximação de sua interpretação com a voz falada, sem perder nada do desenho da melodia, mas transformando-o em ênfase em frases como eu não quero nada com seu riso indecente!, impede que a canção caia numa zona de conforto que a tornaria insípida.

Estes são dois exemplos de como Cássia Eller sabia como trazer uma canção para o seu universo, o que implica, necessariamente, numa compreensão profunda da canção em si. Atributo raro. Com tantas cantoras por aí, esta é um exemplo de como fazer um repertório de canções alheias não apenas com coerência, mas com uma vivência pessoal (quem ouviu Cássia abrindo seu Acústico MTV com Je ne regrette rien, do repertório de Edith Piaf, sabe do que estou falando) que se soma a cada canção e dá ao todo uma cara, uma personalidade, que é maior que cada um de seus elementos.