Subterrâneos e com saudades de casa

Subterranean Homesick Blues é uma canção de Bob Dylan lançada em 1965. Mais de 30 anos depois, em 1997, a banda Radiohead Radiohead gravou o álbum OK Computer, onde se ouvia a faixa Subterranean Homesick Alien. Não podiam ser mais diferentes, e mesmo assim tem muito em comum.

Subterranean Homesick Blues – Bob Dylan. Se o clip no YouTube já tiver sido desativado pela sanha dos direitos autorais, pode ser assistido no próprio sítio do Bob Dylan, aqui (letra aqui).

O clip de Subterranean Homesick Blues ficou famoso. Dylan basicamente fica mostrando cartazes em que pretensas palavras-chave de sua letra são destacadas – pretensas porque os próprios cartazes vão ironizando esta idéia, ao destacar trechos como bed, but – o destaque dado às palavras complica em vez de esclarecer, e o último, que não faz parte da letra, diz apenas What????? Mas o que mais se sobressai no clip é a expressão completamente blasé de Dylan, que age o tempo todo como se estivesse cumprindo uma obrigação entediante. Sua interpretação parece apontar também nessa direção. Dylan canta monocordicamente a melodia de poucas notas, como se discursasse para uma platéia que não o entende, chega a entrar meio compasso atrasado na última estrofe e continua cantando atrasado até o fim, levando os músicos a tropeçarem na passagem entre a primeira parte da estrofe e a segunda, onde a harmonia muda. E a gravação ficou assim mesmo.

Esta postura blasé também aparece em Thom Yorke, cantor do Radiohead – como também, convenhamos, em muitos outros de muitas outras bandas. Mas uma coisa é a postura não-me-importista do popstar que sabe que pode quebrar o quarto do hotel, e outra, bem diferente, é a do que não dá importância à própria posição de popstar. Os integrantes de grupos como o Oasis parecem não se importar pelo fato de fazerem sucesso. Já os do Radiohead parecem não se importar com o fato de fazerem sucesso, ou pelo menos um certo tipo de sucesso.

Subterranean Homesick Alien – Radiohead (letra aqui).

Vejo dois pontos de contato entre estas duas canções. O primeiro, mais musical, é referente à trajetória de cada um dos artistas. OK Computer é um ponto fora da curva da trajetória do Radiohead, um álbum em que eles deixaram de lado propositalmente a sonoridade mista com eletrônica que caracteriza a banda para trazer as guitarras para primeiro plano. O próprio título do álbum é uma ironia, especialmente se levarmos em conta que o Thom Yorke já afirmou que prefere computadores a elas.

Já para Bob Dylan, o compacto de Subterranean Homesick Blues é um ponto dentro da curva da trajetória que o levou também a por a guitarra em primeiro plano, mas vindo no sentido inverso – o Radiohead da eletrônica e do experimentalismo, Dylan do acústico e do folk. Em comum, a decisão pela guitarra, que não é casual. O instrumento carrega consigo uma significação em si, como o instrumento do rock por excelência, este gênero que começou com negros, passou por rapazes de penteados comportados e depois passou a simbolizar uma – ou várias maneiras de ver a vida, que Dylan ajudou, e muito, a consolidar (sendo chamado de traidor primeiro), e da qual o Radiohead se aproveita.

E esta escolha e este uso da guitarra e da significação que ela carrega tem relação direta com a temática de ambas as canções, ambas as Subterraneam Homesick. O Blues de Dylan já é um pouco irônico no título, brincando com títulos tradicionais de blues como Stop breaking down blues, de Robert Johnson, mas não é de fato um blues. Por outro lado, se o blues traz em si uma significação de tristeza e de distância de casa, o nome não poderia ser mais apropriado. Dylan apresenta um rapaz chamado Johnny que est�� no porão “misturando medicamentos” – istó é, se drogando, e passa a lhe dar conselhos: não ande com perdedores, mantenha o nariz limpo, use as roupas da moda, não use sandálias, não siga líderes, tente escapar de escândalos, preste atenção aos parquímetros, faça uma tatuagem legal, ande na ponta dos pés, acenda uma vela para você, e se tudo falhar, entre para o exército.

O pobre Johnny tem algo de muito parecido com o personagem do Alien do Radiohead, que suspira pelo dia em que será abduzido e poderá escapar deste mundo com todas essas criaturas estranhas que trancam seus espíritos, perfuram buracos em si mesmos e vivem para seus segredos, e que depois de voltar contará para seus amigos o sentido da vida, que não acreditarão e o trancarão num hospício. A pose blasé dos cantores contrasta com o desespero dos personagens das canções, mas não chega a esconder uma solidariedade com o inadaptado e uma inadaptação, uma inadequação própria, um estranhamento com o mundo, o mundo que os fez popstars e não sabe o que fazer com os garotos que gostam de suas canções, e que um dia eles mesmos foram – garotos que um dia ganharam uma guitarra e a usaram para expressar as suas inadequações, os seus estranhamentos.

Os olhos de Bob Dylan são o de um velho, já viu tudo na vida, desde quando ele é criança, e isto é visível no clip de Subterranean Homesick Blues. Já Thom Yorke é praticamente cego de um olho, que nasceu paralisado. Mas as visões de mundo de cada um deles, incluindo aspectos políticos, é muito sofisticada e nada inocente, ao contrário dos personagens que eles pintam nestas canções – Radiohead na primeira pessoa, Dylan na terceira. Dylan e Yorke podem não ter a ilusão ou esperança de um dia chegarem a um lugar onde se sintam totalmente em casa. Mas me parece que também não tem a menor intenção de se adaptarem a este mundo, a começar por suas canções. Agradeço a ambos por isso.

(Não trato com frequência de música estrangeira aqui, por dois motivos: porque não é exatamente minha especialidade, e porque sempre tenho a sensação de que algúem já deve ter falado o que tenho a dizer, ou pelo menos a possibilidade é muito maior. Ainda assim, de vez em quando acho que dá para acrescentar algo que não seja tão óbvio. É o caso.)

Flores ao vento, pedras rolando

Bob Dylan foi chamado de traidor pela platéia ao abandonar o que chamavam de canções protesto. Reagiu ironicamente. Se antes negava que suas canções eram de protesto, passou a dizer que continuava a fazê-las, agora mais que nunca.

O que se dizia de Dylan é que ele fora capaz de  captar em sua música o espírito de uma época, aquilo que todos queriam dizer e não sabiam como. Ele próprio reconhece isto no magnífico documentário de Martin Scorcese No direction home. Os EUA se apaixonaram por Dylan, e canções como Blowin’ in the wind causavam comoção – ainda causam – ao tratar de tempos de mudança que chegavam.

Lembrei de Bob Dylan ao assistir a entrevista dada por Geraldo Vandré àquele que é hoje o melhor reporter do Brasil (não confundir com jornalista), Geneton Moraes Neto, a primeira em décadas para a TV. Vandré fez canções memoráveis, que foram igualmente capazes de ser crônicas exatas de momentos históricos do Brasil, como Disparada e Canção da Despedida, parcerias com Théo de Barros e com o xará Geraldo Azevedo.

Mas foi com Pra não dizer que não falei das flores que Vandré mobilizou todo um país em torno de si, o que talvez tenha sido ao mesmo tempo sua glória e sua ruína. Caminhando, como ela foi chamada, tornou-se um hino antimilitarista. Vandré afirma categoricamente a Geneton: Não sou militarista. Também não sou anti. E também: Não faço canção de protesto. Fazia música brasileira.

Caminhando foi levada ao público no Festival da Canção de 1968. Bob Dylan já havia aderido à guitarra três anos antes, ao lançar o álbum Highway 61 Revisited, que continha, entre outras, a revolucionária Like a Rolling Stone. Dylan fora vaiado, mas aqui quem eram vaiados eram os concorrentes de Vandré, Chico Buarque e Tom Jobim, autores de Sabiá, que Vandré faz questão de defender: Pra vocês que continuam pensando que me apóiam vaiando… (…) A vida não se resume em festivais. Seu incômodo com a oposição que se criava era visível. Como Caetano já berrara no ano anterior, a platéia não estava entendendo, ou melhor, só entendia o que queria entender.

Vandré fez Pra não dizer que não falei das flores com uma característica singular: a canção tem o ritmo ternário, o mais improvável para um hino. Hinos tem em geral ritmos quaternários, apropriados para marchar. Caminhando, apesar do nome, não é uma marcha. A letra, revista imparcialmente,  dá razão a ele, em versos como Pelas ruas marchando indecisos cordões. O andamento da canção é andante (desculpem o trocadilho involuntário, mas é isso mesmo), mas caminhar não é marchar, o ritmo não é igual para todos. Apesar disso, no festival Vandré martela o violão (errando acordes inclusive) a ponto de transformar compasso ternário em unário. A canção muda seu sentido, torna-se apta à marcha. Depois Vandré a gravaria no ritmo ternário mais claro, mas era tarde.

Em dezembro daquele ano, Vandré sumiu. Na verdade, fugiu do país no carnaval do ano seguinte. Continuou sua carreira do exílio gravando em 1970 Das terras de Benvirá, que só foi lançado alguns anos depois. E quase só. Voltou do exílio em 1973, dizendo: Quero agora só fazer canções de amor e paz. Há desconfianças sérias de que tenha sido coagido pelos militares a dizer isso. Ele nega. Hoje vive num indecifrável mundo particular.

Geneton: Em que país vive Geraldo Vandré?

Vandré: “Vive num Brasil que não está aqui. Geraldo Vandré vive no Brasil. Eu até me atreveria a dizer que quem não vive no Brasil é a maioria dos brasileiros. A quase totalidade dos brasileiros não vive mais no Brasil. Vive num amontoado”.

Geneton: Você se considera, então, uma espécie de exilado que vive dentro do Brasil ?

Vandré: “Estou exilado até hoje. Ainda não voltei. Eu estou exilado e afastado das atividades que eu tinha até 1968 no Brasil. Eu me afastei. Não retornei”.

Bob Dylan, acuado pela imposição de um público subitamente imenso, recusou-se a caber no rótulo do cantor de protesto, e reinventou-se, enfrentando a ira de seguidores fanáticos, e soube novamente fazer a síntese de seu tempo. Vandré passou pela mesma cobrança de todo um país, e igualmente recusou-se a cumprir o papel que lhe era imposto.

Mas Vandré não se reinventou, ao menos para o público. Deixou de ser o que era, e não se tornou outra coisa. Sua canção captou tempos de mudança, mas ele preferiu não mudar. Não fez a hora, e decidiu esperar acontecer, mas suas Terras de Benvirá não vieram. Tem o direito. Mas o Brasil que está aqui, embora ele ache que não, tem saudade do Vandré que disse à platéia furiosa: a nossa função é fazer canções. Mesmo que seja para nunca entendê-las completamente. São as melhores.

Pra não dizer que não falei das flores – Geraldo Vandré ao vivo em 1968

Like a Rolling Stone – Bob Dylan ao vivo em 1966