Assisti a um show ao ar livre, gratuito, de Arto Lindsay logo antes do Carnaval, no Porto Musical 2013, em Recife. Um dos shows mais surpreendentes e impactantes da minha vida. Não porque não conhecesse Arto – ao contrário, fui um dos que na platéia reconheceu no setlist mais que Maneiras, do repertório do Zeca Pagodinho (se eu quiser fumar eu fumo…). E sim porque, munido em mais da metade do tempo apenas de sua guitarra (de 11 cordas, como ele próprio esclarece), em que absolutamente nenhum som emitido pode ser classificado como nota musical (na segunda parte do show Siba assumiu uma reverente guitarra base e um rapaz cujo nome miseravelmente não anotei pilotou a percussão eletrônica), Arto me deu, e aos presentes com ouvidos de ouvir, uma incrível aula de compreensão e interpretação.
(O show não foi gravado. Deixo aqui a apresentação mais próxima do que assisti que consegui encontrar, inclusive com Maneiras no repertório, mas com uma canção de Nelson Cavaquinho diferente da que ele cantou em Recife. Ouça lendo, ou vice-versa.)
Desenvolvendo: Arto rompe uma fronteira de interpretação. Uma vez li a comparação entre Titãs e João Gilberto neste sentido. Uns com o grito, outro com o sussurro, estabelecem uma relação visceral com a canção, em que a voz se incorpora a ela de forma indissolúvel. Depois da interpretação de João ou dos Titãs (os dos bons tempos, incluindo a voz rascante de Arnaldo Antunes e sua leitura neoconcreta da canção), outras interpretações arriscam-se à redundância, por meramente ecoarem um aspecto interpretativo que já havia em semente na leitura deles. E isto se dá exatamente porque João e Titãs, de modos radicalmente opostos, extrapolam a mera leitura da canção indo ao âmago da forma, furando a canção e cantando algo inefável que paira por trás dela. João e Titãs, ao cantarem a canção com tal propriedade, deixam de cantá-la sem deixarem de cantá-la, e passam a cantar seu canto por meio da canção.
Pode haver um estranhamento na união destes extremos opostos indo na mesma direção. Mas Arto faz isso exatamente, e, tendo bebido das duas fontes em partes praticamente iguais (nascido americano, parcialmente criado em Garanhuns, Pernambuco), consegue a proeza de fazê-lo das duas maneiras inversas ao mesmo tempo. Sua voz suave e algo desbalanceada, sem ter nem de longe a precisão da voz de João, é de alguma forma joãogilbertiana, e sua guitarra feroz é ela própria o grito que sua voz quase não se atreve a dar (mas às vezes dá). Três declarações que esmiuçam esta dicotomia e a solução de Arto:
O Nirvana, por exemplo, é um Beatles vestido de zoeira. O que a gente fazia (no DNA, um de seus primeiros grupos) era bem mais sofisticado do que isso. A técnica era mais primitiva mas a ambição artística era muito maior.
Às vezes você pode separar os sons entre transparentes e opacos. Algo muito harmonioso soa transparente e algo muito dissonante é opaco, quase escultural, quase palpável.
Eu uso um bocado de contrastes, entre texturas lisas e rugosas, por exemplo. Eu gosto de tentar criar uma equivalência entre extremos. Porque as pessoas tendem a separar o modo como escutam estas coisas diferentes, e eu acho isto simplório.
Particularmente interessante é a menção ao Nirvana da primeira citação, tirada de uma interessantíssima entrevista que pode ser lida aqui. O formato utilizado pelo Nirvana na grande maioria de suas gravações e que se tornou sua marca registrada, em que as primeiras partes são apresentadas em intensidade média a baixa, para terem como contraste uma explosão de violência e fúria no refrão, encontra não apenas sua correspondência em Arto, mas frequentemente é elevado à enésima potência, pois o grupo de Kurt Cobain dialogava primordialmente apenas com a linguagem do rock, enquanto o trabalho de Arto se permite ir buscar referência bem mais longe. O som de sua guitarra é o extremo radical da opacidade e da aspereza, enquanto seu canto vai na direção oposta, a ponto de, acompanhado por um grupo, ele pouco tocar e cantar ao mesmo tempo. Porém, ao se apresentar apenas com a guitarra, como assisti, os dois extremos são colocados impiedosamente lado a lado, sem meio termo.
Vale a pena ainda decupar estes extremos separadamente. Primeiro a guitarra. Seu som sem notas reconhecíveis é uma chave para o processo de descomposição/recomposição da canção feito por Arto. Pois, ao se acompanhar apenas com ela, ele circunda a canção com ruído, unicamente, porém um barulho com uma estruturação e um direcionamento estritamente musical, no sentido de reforçar versos, estabelecer células rítmicas e contrastes, enfim, tudo o que um arranjo detalhado faria, com a espontaneidade característica do autoacompanhamento, com música, pois é instrumento, mas sem música, pois não há notas, mas com música, pois é efetivamente um acompanhamento musical. Esta presença/ausência da música em torno da canção tem o duplo efeito, graças à inteligência musical de Arto que impede que o barulho simplesmente encubra a canção de destacá-la pela sua solidão (pois não há música a vesti-la) e destacá-la também pela sua vestimenta (pois ela ainda assim está vestida, e bem). Obviamente, este efeito duplo/uno só é possível, a despeito da sua autoalegada deficiência técnica no instrumento, pela sua compreensão exata do que quer da canção que interpreta.
E a voz. Arto, tanto quanto em relação à guitarra, não é um grande cantor, e não parece fazer questão disso. Sua preocupação é outra:
Gosto de canções com letras que soam naturais como a fala. Às vezes certas frases musicais soam artificiais, mas eu gosto das canções que ressoam como fala. Talvez, se você escutar atentamente, elas não façam sentido ou sejam muito complicadas de entender, mas elas soam naturalmente, fluem naturalmente.
Esta preocupação com a sintaxe está na base de construção da canção. Mas a voz semifalada de Arto, que parece estar sempre em algum lugar próximo da melodia exata, suavemente a respeita em essência ao desrespeitá-la, mantendo suas curvas e inflexões intactas. A pouca precisão da voz lhe dá liberdade interpretativa, usando a deficiência técnica a seu favor – suas imperfeições são rigorosas. Se pela guitarra furiosa ele abre caminho para a escuta da canção por um filtro absolutamente inesperado, tirando-a do seu lugar de conforto, é pela voz – e como poderia deixar de ser? – que o jogo de ressignificação se completa, e só poderia ser pela delicadeza, pois do contrário teríamos apenas barulho e destruição. A voz de Arto recompõe a canção decomposta pelas machadadas dos riffs de sua mão direita, e ela ressurge nova, inédita a nossos ouvidos.
Falta uma coisa, o efetivamente fundamental: a interação entre estas duas coisas, o amálgama entre elas. Seria motivo para me estender muito, mas limito-me a deixar novamente Arto explicar. No vídeo abaixo (um documentário sobre ele feito pela francesa Sarah Teper. É falado em inglês e tem legendas em francês. Deixo aqui a primeira parte de oito, a partir desta é fácil encontrar as demais no YouTube. Foi de onde saiu a maioria das citações desde artigo) Arto em dado momento diz, em conversa com Caetano Veloso:
Agora, eu fiquei louco com aquela divisão dele do ritmo: regular, irregular, não-regular e regular. Que o regular é qualquer coisa repetida, o irregular é ritmo, quer dizer, bate nos acentos, acentua o ritmo, mas não se repete como no jazz, e o não-regular – cara eu tô há vinte anos tentando comunicar isso pro Melvin (Melvin Gibbs, baixista da banda de Arto. Caetano completa: a diferença do irregular para o não-regular…), uma coisa entre nós dois, para ele, pelo menos, me entender. De todos os músicos americanos que tocam tem que algum realmente sacar o que é o lance, que eu escuto, eu não sei tocar, mas eu sei fazer, entendeu?
Arto nesta descrição refere-se à música de Caetano, e mais genericamente à música brasileira. Poderia estar falando, e de fato, no fundo estava, da bossa-nova que impregna sua música. Poderia, e estava, falando de João Gilberto. Sua entusiasmada descrição da divisão da música de Caetano, joãogilbertiano de carteirinha segundo ele próprio, da música baiana (no documentário, este trecho se segue a Arto assistindo Caetano se apresentar no Pelourinho, Salvador, com o Olodum) da música brasileira, da bossa-nova. De João. Da relação intrínseca entre a voz e o instrumento, do intrincado jogo de ritmo/significação entre o violão e a voz, e entre estes e a canção. Esta descrição se aplica a todos estes, mas se aplica também, e não à toa, à própria música de Arto. Seu jogo de chiaroscuro voz/guitarra silêncios/esporros desestrutura/reestrutura a canção como João fez toda sua vida, como os Titãs souberam fazer por um bom período (que saudade dos Titãs!). Com o entendimento basilar da canção como discurso, com o entrosamento mais absoluto instrumentos/voz para aprofundar a significação deste discurso até ultrapassá-lo. E assim novamente e mais profundamente afirmá-lo.
Arto Lindsay: Simply are… (parte 1 de 8)
P.S. Este post vale como uma segunda parte do balanço do Porto Musical 2013, de que tive a sorte de participar. No próximo post pretendo terminar este balanço.