Se me dão licença, vou fazer uma divagação aqui sobre as convocações para a manifestação golpista, partindo da reação do Arnaldo Antunes ao uso de sua música (e de Marcelo Fromer e Tony Belloto) O Pulso em uma delas, e chegando lá adiante no Jimi Hendrix. Se ficou curioso, venha.
Arnaldo avisou que vai entrar com processo contra Olavo de Carvalho, o mentor pseudointelectual do neonazismo tupiniquim, que compartilhou a convocação que usa O Pulso. Em sua manifestação, Arnaldo disse considerar Congresso e STF como preservadores da democracia e instituições que precisam ser defendidas.
O Pulso é de 1989, do álbum dos Titãs Õ Blesq Blom. Três anos antes, os Titãs fizeram o álbum que lhes granjeou maior popularidade, Cabeça Dinossauro. E é daqui que gostaria de partir, porque Cabeça Dinossauro é um álbum que se dedica, metodicamente, a demolir uma por uma de nossas instituições. Igreja, Polícia, Família, Estado violência, desde o título direto e letras idem, todos têm direito a críticas avassaladoras. Lembrei disso e pensei como seria fácil a um reacionário hoje criticar Arnaldo e chamá-lo de hipócrita por defender hoje o que já atacou com tanta fúria. Só que esta crítica simplesmente não aconteceu. E então fiquei pensando na reviravolta conservadora que o rock tomou e em como o uso de O Pulso se enquadra nela.
Isto porque, numa visão imediata, parece mesmo que quem ficou conservador foi Arnaldo. É claro que ele mudou de ideia em relação a várias coisa na vida, espera-se. Ocorre que uma crítica a uma instituição não necessariamente se dedica a destruí-la. Polícia para quem precisa não é um refrão contra a polícia. Cantar Família não impediu os Titãs de constituírem famílias, embora provavelmente tenham se esforçado para não tornarem as suas no retrato sarcástico pintado na canção. E mesmo na época e por muito tempo, Arnaldo não participou nem da gravação nem das performances ao vivo de Igreja, por ser católico praticante.
Ou seja, há não apenas nuances nas posturas, como também amadurecimentos nas posturas. Porém, o público que ouviu Cabeça Dinossauro não necessariamente avançou junto com seus autores, e não necessariamente faz a mesma leitura deles. Até aí tudo bem. O problema surge quando tenta-se apossar de uma visão corrompida destas obras – que efetivamente iam ao limite da expressividade e da ação política conjugadas – com finalidades espúrias, e quando elas são usadas para induzir ações criminosas.
O que me leva ao outro vídeo convocatório da manifestação, eles divulgado pelo próprio presidente. Ele consiste basicamente em frases soltas como O Brasil só pode contar com você e Juntos somos mais fortes, sobre fotos de manifestações, de Bolsonaro e muitas bandeiras brasileiras. Parece tosco, e é, mas obedece a uma estratégia muito clara de não afirmar nada claramente enquanto diz tudo sub-repticiamente. Como quando descobriu-se que os cafés da manhã de Bolsonaro em campanha, com pão e leite condensado e congêneres, eram minuciosamente posados, preparados pela equipe para apresenta-lo como homem comum. (Peço desculpas por ter que colocar este vídeo aqui, para facilitar o entendimento)
E há dois detalhes interessantes neste vídeo. Um é a mensagem “Somos capazes SIM!”, entre tantas estampadas no vídeo, num plágio evidente e descarado do “Yes, we can” de Barack Obama. E a outra, musical, é o uso de uma versão do Hino Nacional tocada numa guitarra. Ambas são parte da apropriação de símbolos da esquerda, uma muito evidente, a outra um pouco menos, mas quem foi o primeiro a tocar um hino nacional numa guitarra? Ele mesmo.
Segundo Eric Clapton em sua autobiografia, Jimi Hendrix nem era uma pessoa muito politizada inicialmente, mas na época de Woodstock estava tentado se aproximar dos Panteras Negras. O fato é que sua versão distorcida e incendiária – literalmente, já que termina com ele ateando fogo à guitarra – tornou-se um exemplo da apropriação de um símbolo patriótico para criticar ações do governo – no caso, a guerra do Vietnan. Contra-cultura, protesto, demolição das instituições – ou uma crítica ao que estavam fazendo delas. E então um vídeo convocando para uma manifestação que prega a destruição de instituições traz… uma guitarra tocando o hino nacional.
Ah, mas o sujeito que recebe o vídeo talvez nem saiba quem foi o Hendrix. Verdade. Mas Hendrix estabeleceu que o hino na guitarra tem uma significação específica de protesto e não é preciso sequer conhecer sua versão para ser influenciado por ela. Ah, mas a versão do hino nacional no vídeo é totalmente comportada. Mas é claro, trata-se da apropriação reversa, de amansar e domesticar o protesto, de retirar dele a autonomia, de coloca-lo a serviço de determinadas forças políticas. O hino nacional na guitarra do vídeo convocando a manifestação é como o café da manhã de Bolsonaro, um mero truque publicitário- mas bastante efetivo.
O que nos leva de volta a O Pulso. A letra de Arnaldo entremeia inúmeras doenças do corpo com alguns distúrbios psíquicos e outros, digamos, de caráter: culpa, rancor, hipocrisia, estão lado a lado com febre tifoide, sarampo, úlcera. Doenças que precisam ser erradicadas. O jogo de palavras e dignificados de Arnaldo há trinta anos equiparando corpo e alma e sugerindo as relações entre ambos hoje dá espaço a que um vídeo atribua a seus inimigos políticos a pecha de doenças como câncer, devido à sua hipocrisia, e defendam sua erradicação.
Este é o processo de distorção simbólica subliminar feito pela propaganda fascista, e foi a percepção desta distorção que moveu Arnaldo, bem mais que a reivindicação de direitos autorais. Arnaldo posicionou-se para defender sua obra e trajetória, esta em especial contra a visão simplista de quem a pretende usar para a destruição pura e simples. De certa forma, foi como se ele precisasse vir explicar seus versos. Mais de trinta anos atrás, um refrão como Policia para quem precisa continua sofrendo com entendimentos seletivos, o que mostra mais que nunca sua atualidade.