Adriana Calcanhotto contava em seus shows duas histórias sobre Inverno, parceria sua com Antônio Cícero cantada por ela em seu álbum A fábrica do poema, de 1994. A primeira é sobre o estranho processo composicional necessário à realização da parceria. Adriana afirma só saber musicar letras e poemas já prontos, e Cícero, embora poeta, prefere letrar melodias já prontas por sua vez. O estratagema encontrado foi Adriana escrever uma letra, musicá-la, e em seguida descartar a letra e enviar apenas a melodia para Cícero, que então põe uma letra nova e definitiva. Foi assim com a estréia de ambos, Água Perrier, e prosseguiu em Inverno.
A segunda história é sobre o arranjo, tocado em estúdio por apenas três músicos, Dunga no baixo elétrico, Marcelo Costa na bateria e Sacha Amback no piano. Diz ela que chegou ao estúdio entusiasmada com a canção recém-pronta – havia acabado de receber a letra de Cícero – e tocou-a ao violão para os músicos, que então foram aos poucos incorporando seus instrumentos e definindo suas linhas. Até que finalmente, com o arranjo estabelecido, decidiram expurgar o violão. Ao contar a história em suas apresentações de violão e voz, Adriana se mostrava inconformada, e dizia que ia tocar a canção então com o objetivo de provar que o violão tinha lugar sim, que os músicos estavam errados.
Claro que se trata de um chiste, esta última parte ao menos. Por outro lado, se é verdade que a condução de um violão no arranjo que se estabeleceu afinal soaria redundante diante da levada da bateria e da harmonia estabelecida sub-repticiamente pelo piano, também é verdade que, após a gravação dos três instrumentos, foi acrescentada uma discreta cama de teclados reforçando a harmonia ao fundo, e que vai aumentando gradativamente de volume.
Porém, antes de tratar do arranjo, tratemos da composição em si.
Inverno é um ode à melancolia, uma espécie de saborear da melancolia – um sentimento que já foi considerado, da Renascença, à Belle Epoque, algo de bom tom e mesmo uma experiência enriquecedora. E há, efetivamente, um mal disfarçado prazer, uma fruição da melancolia presente aqui, no perambular pelo Leblon – flanar, mas aqui não despreocupadamente e apreciando a paisagem, e sim mergulhado em si mesmo. Ou diria melhor, mergulhado na paisagem que espelha seu próprio estado de espírito. Inverno é uma canção romântica, não apenas no sentido imediato, mas no literário, nas características típicas como esta identificação entre a natureza e o sentimento interno, a subjetivização, a… melancolia. Um exemplo, mais de um século depois, do que o escritor francês Chateaubriand intitulou Mal do Século.
O processo composicional acidentado de Inverno acabou gerando uma situação interessante, em que uma letra irregular, musicada e descartada, foi substituída por outra letra irregular, mas esta moldada de acordo com a melodia irregular remanescente. A melodia de Inverno tem a particularidade de, a cada estrofe, tomar diferentes caminhos para, ao final, terminar sempre na mesma nota, no mesmo intervalo de terça menor descendente em direção à tônica do acorde – com exceção da primeira estrofe, que termina numa quarta descendente e numa nota ainda mais grave, a quinta. Acresce-se a isto que, ao contrário da melodia sempre variada, a harmonia é sempre a mesma, iniciada em tom maior e terminada na relativa menor. o mesmo caminho repetindo-se estrofe após estrofe. Como se não importasse o caminho tomado nas deambulações ou mesmo pelo barco perdido no mar, ele sempre retornasse ao mesmo ponto, à mesma lembrança.
Pois Inverno é sobre uma lembrança, a lembrança de um dia feliz que se foi. E na imagem poética de Antônio Cícero o fugidio deste acontecimento é descrito implicitamente em sua própria descrição: No dia em que fui mais feliz / Eu vi um avião / Se espelhar no seu olhar até sumir. A imagem da felicidade espelhada nos olhos do ser amado se vai no ato mesmo de existir, como sua característica intrínseca. O destino à solidão, explicitado mais adiante na letra, vem em contraste com este momento feliz e a noção de uma comunhão fugaz das coisas, da reunião instantânea de céu e terra no reflexo de um olhar, por alguns segundos. Depois do momento em que o Universo esteve em perfeita harmonia, tudo o mais é anti-clímax.
Mas antes desta descrição da lembrança que, de tão perfeita torna-se dolorosa, Inverno abre com um ruído. Os seis primeiros segundos da gravação compõem-se de um som algo inclassificável, que arranha os ouvidos em volume crescente até ser substituído pelo alívio do primeiro acorde perfeito maior, que torna-se proporcionalmente mais prazeroso ao suceder a dissonância total. Longe de procurar significações primárias e imediatas, note-se no entanto que desde a partida, repete-se o jogo entre aquilo que se quer e não quer lembrar, que é simultaneamente incômodo e gozo.
A partir daí, segue-se o arranjo que extirpou a obviedade de uma condução central do violão, mas aqui conduzido mais sutilmente pelo piano, que inicia apenas estabelecendo os acordes, para ao longo da gravação ir tomando mais liberdades (em parte pela repetição da harmonia circular, em parte pela presença do teclado ao fundo sustentando a harmonia), desenhando contracantos liricamente, outra vez num contraste com baixo-percussão, aplicados ritmicamente. E a interpretação de Adriana, com uma nota imutável de tristeza na voz, ressalta a contradição. De certa forma, o piano é mesmo o alter-ego da canção, tanto ou mais que a própria intérprete vocal: a maior parte da melancolia da gravação de Inverno é destilada por ele. E não por acaso é ele quem termina solitário após o fade-out dos demais instrumentos, num acorde algo inconcluso, uma melodia que, após o que seria o arpejo final, ameaça se elevar de novo, apenas para ficar pairando no ar. Assim como Adriana encerra a canção repetindo novamente o início da primeira estrofe, mas deixando-a incompleta. A reiteração na memória do momento feliz que se foi e a constatação da incompletude decorrente da impermanência. Este é o âmago de Inverno: um dia bom e o feliz sofrimento de sua lembrança, um dia que não termina na memória.
O último verso de Cícero – Pouco antes do Ocidente se assombrar – permanece enigmático em seu significado objetivo: a que acontecimento ele se refere? O maior assombro do Ocidente na história recente, o atentado contra as Torres Gêmeas em Nova Iorque, ocorreu em 2001, sete anos após Inverno. Os anos imediatamente anteriores a 1994 não assinalam nenhum evento classificável desta magnitude. Por outro lado, Antônio Cícero é nascido em 1945, ano em que terminava a guerra que assombrou e assolou o Ocidente. Se tomarmos sua idade adulta como base, não faltam acontecimentos que assombraram o Ocidente, como o assassinato de Kennedy. Porém, a esta altura, a investigação vai se mostrando inútil. A falta ou a profusão de acontecimentos assombrosos diluem igualmente. Todo dia o Ocidente se assombra, e todo dia ele se acostuma.
O ano seguinte a Inverno, Cícero lançou o livro de ensaios filosóficos O mundo desde o fim, em que investiga a modernidade e afirma para ela um fundamento ontológico absoluto e negativo. E explica, em entrevista ao filósofo Alex Varella:
Ao contrário do que se pensa vulgarmente, a modernidade não é um fenômeno histórico, algo que pode haver ou não haver. Sempre e necessariamente há modernidade, pois ele é a essência do agora, algo que poderíamos chamas de “agoralidade”. Com efeito, não é errado dizer que a modernidade é o absoluto. Ela constitui o fundamento ontológico negativo e subjetivo do mundo. Por outro lado, o que pode haver é o conceito da modernidade. A modernidade enquanto tal pode não aparecer para nós. A nossa época não é a época em que surge a modernidade, mas a época que se chama de moderna, a época que se dá conta da modernidade e a tematiza, isto é, a época em que a modernidade deixa de ser simplesmente em si e passa a ser também para si, a época que se dá conta do fundamento negativo e subjetivo do mundo. A descoberta da modernidade é a descoberta do absoluto. Este se encontrava alienado em diferentes objetividades ou positividades.
Não é difícil encontrar nesta descrição reflexos do tom de voz de Inverno e sua temática, composta durante o período em que ele escrevia o livro. Longe de arriscar uma exegese instantânea de um livro complexo como O mundo desse o fim, arrisco que o próprio jogo de palavras do título, um fim do mundo em que o mundo subsiste, de certa forma reflete-se na letra, em que um momento mágico de conciliação completa termina sem nunca se encerrar, como um agora absoluto. Inverno estabelece uma sutil ligação entre a negatividade subjetiva do ser moderno e os ecos do mal du siècle. Que também se repete, melancolicamente, pela História, numa compulsão ao gozo que é sofrimento e prazer, do Montmartre ao Leblon. O inverno sempre termina, e sempre volta.