Back to Black, um anti-réquiem

Todos já lamentaram a morte tão anunciada de Amy Winwhouse. Também lamento, torcendo para que, agora que ela está longe da Roda Viva do show business, possa encontrar um pouco da paz que não teve sempre por aqui. E agora que a poeira já baixou um pouco, é possível parar para reouvir. (O que aliás deixa no ar uma pergunta: ouvimos de maneira diferente a música dela depois que aconteceu o que muitas das canções já faziam prever?) Da minha parte, confesso que só ouvi Amy com atenção graças a minha mulher, que inclusive me carregou para o segundo show dela no Rio de Janeiro. De início fiz muxoxo, colocando-a no longo rol dos artistas brancos em estilos negros – puro preconceito, claro, e não só com ela, mas com Beatles, Rolling Stones, Janis Joplin, Elvis… só para falar dos antigos (mas este fenômeno recorrente é outro ótimo mote para análise). Mas aos poucos fui entendendo do que realmente se tratava, mais do que simplesmente um revival da Motown ou uma carreira que se estraçalhava em escândalos. Havia música ali.

Lembro que no final do show, o sentimento principal da platéia era de alívio, quase mais que felicidade – ela havia conseguido! Já durante, havia uma tensão no ar, muito palpável, de que a qualquer momento algo desse errado – ela brincou com isso, fingindo que caia, e se jogando nos braços do vocalista. Quando ela saiu do palco então, era mais que tensão, era apreensão, perceptível inclusive nos integrantes da banda, de que ela não voltasse. E realmente eles tiveram de fazer um número a mais, para dar tempo a ela. O público foi extremamente carinhoso com ela, como se percebesse o sacrifício que ela fazia vindo cantar aquelas mesmas canções de novo, quando já estava em outra. E ela correspondeu ao carinho com a boa vontade possível.

Mas aquelas canções (pelo menos enquanto não lançam os caça-níqueis póstumos) são s que temos, afinal. Rehab acabou se tornando quase caricatural de tanto tocar, e para muitos passou a ser a chave para compreender a personalidade complexa de Amy: ora, ela disse não para a reabilitação, portanto, morreu. Ponto. Santa psicologia, Batman! E santa interpretação lítero-musical também. Mas a canção que percebo como a de mais profundidade no trabalho de Amy não é esta, e sim a que ficou como título de seu álbum:

Back to Black, nas traduções de internet, virou De volta ao luto ou ao poço, ignorando o óbvio trocadilho com a black music. E, de fato, os dois significados são inseparáveis. Um alimenta o outro o tempo todo nesta gravação. Fiquei intrigado logo de saída com o piano martelado que abre e sustenta o arranjo, no quadrado nos agudos, sincopado nos baixos, e lembrei do ragtime, estilo pré-jazz específico para piano. O interessante é que o nome ragtime – ou ragged time, tempo quebrado – tem parentesto com outro ritmo negro, o reggae, cujo nome quer dizer fundamentalmente a mesma coisa. Dois ritmos negros. E aí lembro que as últimas gravações de Amy, deixadas de lado pela gravadora (que agora provavelmente vai lançá-las em edição de luxo) eram reggaes, e que foram vetadas por serem depressivas demais.

Ora, mas tanto o ragtime quanto o reggae são ritmos festivos! Ora, como se existisse isto de ritmo festivo. Pois se a música festiva de New Orleans (que sucedeu o ragtime) não servisse também para acompanhar enterros. (E no clip desta música, em que acontece um enterro, passam músicos carregando seus instrumentos de sopro, numa referência direta a isto). Cantar um verso que afirma Eu amo fumar (maconha), você ama aspirar (cocaína) com a suavidade com que ela o faz mostra mais que um domínio de interpretação, uma percepção, empírica que seja, da contradição implícita nestes estilos da música negra, de celebração e sofrimento, e Amy soube aproveitar estas características polares ao narrar seus dramas pessoais.

Quanto à música propriamente dita: outro espanto meu foi ao perceber que a primeira parte da canção é baseada em apenas três notas – e se formos radicalizar, em apenas uma, que avança em linha reta, com uma pequena variação no fim das frases. O Luiz Tatit, em sua teoria de análise da canção, diz que a tradução mais natural da voz falada para uma melodia não é a linha reta, mas a pequena mas constante variação, como dó-ré-dó-ré-dó, por exemplo, porque a voz falada não é linear, ao contrário, está cheia de pequenas variações de entonação. Por isso, a melodia reta na canção soa forçada, antinatural. Pode soar como algúem tentando manter a naturalidade para disfarçar, por exemplo.

Só que com a Amy esta regra, sem deixar de ser válida, é subvertida. Isto porque a voz da Amy faz o caminho contrário, e parte desta melodia reta para reconstruir a voz falada. Amy cantando esta linha reta que ela mesma compôs parece querer provar que a linha reta não é o menor caminho entre dois pontos – ou ao menos não o melhor. Amy cambaleia a melodia, e em alguns momentos sua voz finge desfalecer, como ela fez no palco do show. Como no poema de Pessoa, a interpretação de Amy finge que é dor a dor que deveras sente.

A segunda parte de Back to Black é, digamos, mais convencional – pelo menos à primeira vista. As melodias de Amy são sempre interessantes, mas com a indispensável pitada pop – são fáceis de aprender e cantar. (Tenho curiosidade de saber como Amy cantaria standards, que tem melodias mais trabalhadas).

Acontece que esta primeira impressão é algo enganosa. A melodia da segunda parte plana uma terça acima da primeira, e mostra uma variação maior de notas, contrastando com ela – bem no feitio pop. Só que esta segunda parte tem exatamente a mesma amplitude da primeira: três notas. E também é baseada firmemente em uma nota apenas, variando uma para cima, uma para baixo, e apenas no final toma um caminho descendente, de que já vou falar. Ou seja, exatamente como Luiz Tatit afirma que a melodia se aproxima da voz falada. Se a primeira parte é uma falsa linha reta, a segunda é uma falsa linha curva. Se a primeira parte pode soar um tanto cínica ou desencantada, como quem disfarça os sentimentos, agora, no agudo e com as variações naturais da voz, é possível externar o sofrimento: Eu morri cem vezes. Você volta para ela, e eu volto… à escuridão, ao negro, ao luto, ao fundo do poço.

Há outras sutilezas. As harmonias sempre terminam na dominante, em suspensão, e as melodias sempre terminam na descendente. Quando ela finalmente termina a frase com a palavra black, é no acorde da tônica (que repousa), mas na nota da dominante – continua sem apoio. Tudo permanece um pouco no ar, inconcluso, suspenso. Como no clip, que afinal se revela o enterro de uma caixa (o que contém? cartas? fotos? é o enterro das ilusões perdidas). Como Amy, que parecia não encontrar apoio em parte alguma.

Amy morreu cem vezes antes de morrer. Artur Dapieve, quando ela lançou este álbum, em 2006, assinalou que não era cedo para afirmar que ela já tinha uma obra. Quando morreu, repetiu trechos de artigos antigos, afirmando que tanto já fora dito de sua morte antes de acontecer, que só restava repetir textos agora. Faz sentido então que eu o repita um pouco:

Impossível dizer quais eram as dores que afligiam Amy Winehouse, impossível dizer quais são as dores que afligem em variadas medidas cada um de nós, nós que nos sentamos quietos nos botequins. Toda dor é indizível, inclusive a dor de amor, lembrai-vos de Roland Barthes. A arte é a tentativa de dizer o indizível, rolando a mesma pedra morro acima, eternamente. Albert Camus, outro compatriota de Artaud, pedia-nos, num livro sobre o suicídio, que imaginássemos Sísifo feliz para podermos seguir vivendo.

Agora, talvez seja a hora de ouvir o que ela tinha a cantar, sem o último escândalo na memória. Ouvir os modos pelos quais Amy tentou nos dizer o indizível. E às vezes chegou bem perto de conseguir.

P.S. Este post vai dedicado ao veterano e sempre novo blog Duas Fridas.

P.P.S. E vai mais dedicado ainda à Paula, minha mulher, que me apresentou a Amy, e ouviu e cantou Amy em altos brados sábados a fio, até que eu finalmente percebesse, ao menos em parte, do que as duas estavam falando.

Inferno e Paraiso da voz humana

Já se disse que a música instrumental é a música por excelência, por não estar aliada a outra forma artística, a linguagem falada (para não dizer poesia, que não é exatamente a mesma coisa). Porém, a música cantada sempre, desde o início, foi mais popular, pois a palavra dá a impressão de inteligibilidade, concordando ou contrastando com a música. É por isso, no fim das contas, que este blog existe – por causa desta junção vitoriosa que é a canção.

Mas há também algo que também contribui muito para o sucesso desta junção. Sem a maravilhosa variedade e versatilidade da voz humana, reduz-se muito também as possibilidades de escuta do formato canção. Se dois saxofonistas tocam o mesmo tema, as possibilidades de variação são infinitas, especialmente se pensarmos em improviso. Mas se dois cantores cantam a mesma canção, temos o infinito ao quadrado, pois àquelas se somam o fato de que, na verdade, cada garganta é um instrumento diferente e absolutamente único. É esta multiplicidade que permite que um formato tão simples quanto a canção tenha se tornado o formato musical hegemônico na música popular.

E da voz humana, a voz feminina. No encarte do álbum Tropicália 2, Caetano e Gil comentam:

Caruso, Celestino, Lanza, Pavarotti, Domingo – ao escutá-los, soam-me como galos: bons de cacarejar, duros de cozinhar. É necessário pouco de Sumac ou Callas para amaciá-los.

Concordo. A voz feminina, capaz de nos levar a qualquer lugar. Como a mulher, aliás, capaz de nos levar ao Inferno ou Céu. E às vezes ao mesmo tempo…

Amy Winehouse – You know I’m no good

Madredeus – O Paraiso