João Bosco explica neste vídeo o acorde em que se baseou para a composição de O ronco da Cuíca:
Um acorde aberto consiste num acorde em que, afora o baixo, as outras notas se distribuem em intervalos grandes, maiores que uma oitava. Habitualmente, um acorde de acompanhamento como os usados na Bossa Nova e na harmonia funcional tradicional tem todas as suas notas em intervalos de terça, quarta ou quinta, no máximo. Porém, se o acorde é aberto, a nota que estaria a uma pequena distância é tocada uma oitava acima, e o resultado de sonoridade é muito diferente. Um acorde fechado com dissonâncias tende a ser muito tenso, enquanto que se uma ou mais notas constituintes forem abertas, os intervalos diluem esta tensão. A importância de este acorde de ré menor que João descreve ser aberto é que ele vai servir de base para toda a canção O ronco da cuíca, e é isto também que permite que ele seja usado como base para praticamente todo o pout-pourri Genesis – O ronco da cuíca – Tiro de misericórdia – Escadas da Penha, do álbum 100ª apresentação, de 1983.
O acorde em questão tem um baixo em ré, que vai se deslocar depois pela sétima, dó, e pela quinta, lá. Uma oitava acima, a nota lá, quinta do acorde, e um sol, que pelas regras normais de harmonia funcional deveria ter a função de 11ª, mas que aqui, ainda na região grave, desestabiliza o acorde. Em seguida, sobe-se uma oitava para a terça do acorde, fá, e logo em seguida tem-se um mi, a nona do acorde, que está em seu lugar tradicional, porém batendo com a terça, que deveria estar oitava abaixo… Em suma, a reorganização das notas internas de um acorde menor com nona e décima primeira (mas sem a sétima) acaba formando um acorde disfuncional (no sentido de fora da harmonia funcional, mas também no estrito), em que quatro notas seguidas descendentes, lá, sol, fá, mi, se fazem ouvir, mas com uma espécie de buraco entre as duas primeiras e as duas últimas, o que, digamos, abre espaço para o desenho melódico se alojar, como o João aponta. Este acorde, apontando para múltiplas direções ao mesmo tempo, é dedilhado e explorado ritmicamente de forma quase didática por João na abertura da música, e será o basso continuo sobre o qual a saga do menino do corpo fechado será contada.
Que se inicia com uma Genesis inteiramente transformada em relação à gravação em estúdio de João (trato destas gravações na primeira parte deste texto.) A harmonia original é deixada de lado, e João conta a história do nascimento do menino como um preto velho a contaria. A interpretação contida investe a narrativa de um bocado de mistério, pari passu com a participação dos orixás e à predição de Oxum. A exaltação na repetição do verso Promete, Oxum falou cada vez mais aguda abre caminho para O ronco da cuíca, que será cantada com o mesmo acompanhamento, além de adicionar um suspense que só será desvendado mais tarde.
O ronco da cuíca interrompe a narrativa, para situá-la de forma objetiva: a sequência de associações de ideias da letra funciona como uma ambientação da vida do menino, uma descrição precisa de seu mundo, passando do aspecto externo para o interno, da interferência externa para a fome e a raiva, gerando uma empatia direta com o ouvinte. O que era um menino algo distanciado pela narração mítica de Genesis agora está plenamente identificado. Em determinado momento, João literalmente interrompe bruscamente o violão para cantar uma estrofe à capela, salientando a divisão rítmica da canção. Então fica clara outra função do acorde aberto: ao tocá-lo ora sem a primeira corda, na nota mi aguda, ora com ela, o violão de João Bosco faz às vezes de cuíca, seguindo seus padrões melódico e rítmico. Isto dá à interrupção mais um elemento a mais de dramaticidade.
Em seguida, João, reforça ainda mais esta identificação da platéia ao chamá-la para cantar junto o refrão, trazendo-a para dentro da interpretação. Se João será daqui a pouco um bardo contando o capítulo seguinte de um poema épico, a platéia assume o papel do coro da tragédia grega, mas ainda de forma inconsciente. Sobre o coro, João faz uma vocalização a partir da primeira estrofe da canção seguinte, Tiro de misericórdia. O vocalise, puramente rítmico, tem a aparência de uma língua africana, o que acrescenta a ele um mistério, como um babalorixá deitando um feitiço que não se compreende. Estamos novamente nos preparando para penetrar no lugar do sagrado, onde se desenrolará boa parte da terceira parte da história.
O dedilhado retomado para Tiro de misericórdia nos leva de volta a Genesis, de onde a narrativa será retomada. A infância do menino é contada em tons realistas em seu início, para em seguida fazer uma transição perfeita para o que nos espera, traçando seu retrato de forma impressionista:
Ídolo de poeira, marafo e farelo,
Um Deus de bermuda e pé-de-chinelo,
Imperador dos morros, reizinho nagô,
O corpo fechado por babalaôs.
Então, a partir desta menção ao sobrenatural, novamente a ação para, mas agora para a introdução dos combatentes de uma batalha em dois mundos. Se o menino é extremamente poderoso em algo que parece ser um mundo paralelo, aqueles que num outro plano parecem lhe dar seu poder são apresentados, um a um, novamente da forma mais didática possível. João, que na gravação em estúdio praticamente grita os chamamentos aos orixás, aqui fala pausadamente. Não se trata tanto de uma invocação como antes, mas sim da narrativa de uma tradição oral típica africana, em que o narrador fala com tanta propriedade como se ele próprio tivesse estado presente e testemunhado tudo. E esteve, na forma de seus antepassados, que foram os que lhe passaram a história, palavra por palavra, cada palavra dotada de um encantamento e de propriedades particulares, como cada símbolo de cada orixá traz consigo uma força particular. O desfile de deuses, suas respectivas armas e poderes tem um efeito impressionante, dito na voz mansa de João. Cria-se a expectativa de um embate tremendo entre o menino de corpo fechado por todos estes protetores e uma força ainda desconhecida.
O padrão do violão a seguir é ainda uma variante do acorde inicial, porém carregado nos graves e com um indisfarçável tempero funk. Nele o fio narrativo é retomado anunciando a batalha iminente. A partir daí o menino é tratado pelo nome de mártires da liberdade, como destaquei na primeira parte. Seus assassinos não chegam sequer a ser nomeados. São as falanges do mal / arcanjos velhos, coveiros do carnaval. A escolha de uma categoria angélica para os designar, enquanto os exus, vistos pelas religiões européias como demoníacos, são defensores do menino, é sintomática de uma hipocrisia secular, um massacre antigo que é cultural e também literal.
A narração da morte do menino é feita em alta velocidade. O menino morreu, ninguém chora por ele. O verso seguinte, último da canção, já trata da aposta do jogo do bicho no dia seguinte, e serve de gancho para a última canção seguinte. Mas antes, João faz, com diversas adaptações rítmicas e melódicas, um vocalise muito semelhante ao da introdução da gravação de estúdio de Genesis. E faz um breque no violão, como já fizera nO ronco da cuíca, para preparar a entrada das Escadas da Penha, agora, finalmente, no samba rasgado.
Esta é uma história diferente. À primeira vista, não faz sentido colocá-la no epílogo desta canção quatro-feita-uma. Num comentário ao primeiro post, foi dito que De frente pro crime, outra parceria Bosco / Blanc, seria muito mais direta, e concordo. Mas é justamente por falar de outro crime, outra história, que esta se torna mais cruel. Pois o menino já foi esquecido. Escadas da Penha poderia ser a notícia do jornal do dia seguinte, sobre um crime passional, em vez do assassinato do menino pela polícia. Ela encerra a epopeia com como que um expurgar de tensão no samba desabalado na mão rapidíssima de João Bosco. E, assim como o Ronco da cuíca descrevia o universo simbólico em que o menino cresce, Escadas da Penha descreve aquele em que ele morre. Como uma câmera que vai se distanciando aos poucos enquanto o entorno vai sendo enquadrado e lentamente perdendo o foco.
João se converte nesta tetralogia em bardo da Idade Média, em que cantar e declamar uma história não eram coisas muito diferentes. Mas a tradição que segue também – ou principalmente – é africana, dos narradores das tradições orais. A narrativa tem em si um poder mágico – dizer é fazer. João é o narrador de uma história que sempre se repete desde tempos imemoriais, com a intervenção de seres sem tempo. Como se a história tivesse acontecido antes dos tempos, e se repetisse hoje um simulacro encantado – o menino morreu e continua interminavelmente, perpetuamente a morrer, como Prometeu acorrentado, como Ganga Zumba, Patrice Lumumba, Federico Garcia Lorca, Jesus, e sempre renasce novamente.