Existe música para crianças?

Outro dia botei aqui um texto sobre músicas de duplo sentido (aqui) que começava com o relato de uma festa infantil, e a maioria dos comentários, inclusive no Facebook, foi sobre música para crianças, e não sobre o tema do texto.

Ouço música pra crianças… desde criança. Nunca deixei de ouvir, e quando minha filha nasceu já encontrou alguns CDs à sua espera, tanto da minha época quando posteriores, que comprei porque gostava, e pronto. Aliás, lembro que uma vez encontrei um amigo que para mim é referência musical (me apresentou Kate Bush e Elvis Costello, há anos), perguntei o que havia de bom, e ele me indicou o então recém-lançado Canções de Brincar, primeiro álbum da dupla Palavra Cantada, que nem tinha ainda este nome.

Vem bem a calhar o fato de Paulo Tatit, metade do Palavra Cantada, ser oriundo de um grupo de música de tendência experimental como foi o Rumo (que aliás já fizera um disco infantil, o Quero Passear). O repertório do Palavra Cantada é pautado por assuntos que dizem respeito à criança, como não poderia deixar de ser: a boneca que fica de lado quando a menina cresce, o jogo de futebol, a sopa do neném. Mas o tratamento musical dado é absolutamente normal, mesmo quando instrumentos de brinquedo são usados ou crianças se incorporam ao coro. Parece óbvio que deve ser assim. No entanto, quando Arnaldo Antunes e Edgard Scandurra foram apresentar o show de seu projeto infantil Pequeno Cidadão, a revista Bravo! afirmou que eles tinham a proposta de fazer “música de verdade” para crianças.

Por outro lado, o Pato Fu, grupo de quem sempre gostei, lançou um álbum chamado Música de Brinquedo, que não é de música para crianças, e sim uma seleção de canções tocadas exclusivamente com instrumentos de brinquedo. O resultado é surpreendentemente… comum. A preocupação em replicar com exatidão os arranjos originais transforma uma banda ela própria muito original em uma banda de covers, e a dificuldade técnica auto-imposta não adianta nada no sentido de tornar o resultado mais interessante. Usar instrumentos de brinquedo não acrescenta nada à música, e muito menos torna a música infantil. Ao contrário, em seus primeiros álbuns o Pato Fu gravou o tema de abertura dos Flintstones e do Sítio do Picapau Amarelo, sem a preocupação de fazerem música para crianças, e conseguiram resultados muito melhores, inclusive misturando clichês de rock pesado.

Mas o será possível delimitar com segurança o que é um conteúdo para crianças, ou este critério será apenas excludente? O segundo álbum de Adriana Partimpim, do qual já comentei aqui no blog a gravação de Bim Bom, de João Giberto, traz também Alexandre, de Caetano Veloso, já gravada por este no álbum Livro. Caetano brinca em sua gravação de fazer uma espécie de Olodum-enredo, contando a vida de Alexandre, o Grande, e como que musicando um livro de História Antiga. Enquanto o jogo de Caetano é trazer para o universo da música baiana um texto alheio, Partimpim faz o movimento oposto, e leva a música baiana para o universo escolar, pois o contexto infantil óbvio para este conteúdo é o de uma aula de História. (e pessoalmente considero que o resultado da primeira idéia é bem melhor, e não por acaso.)

Alexandre – Caetano Veloso

Alexandre – Adriana Partimpim (ao vivo)

Minha filha escuta a música que eu escuto, de jazz a rock. Eu escuto a música que ela escuta, embora não goste de tudo o que ela gosta – e vice-versa. A escola dela pediu para que escolhesse uma música para a entrada dela no dia da formatura do pré-CA (ai, o ensino muderno e cumtempurâneo…). Sugeri Bonequinha do Papai, do Pequeno Cidadão. Ela preferiu a folclórica A Barata, muito mais velha que ela e eu juntos. Ela adora a que eu queria, eu adoro a que ela escolheu.

Bonequinha do Papai – clip do DVD do Pequeno Cidadão, cheio de objetos que minha filha nunca viu.

A Barata – com o Palavra Cantada

Todos os grupos e artistas que citei aqui fazem ou fizeram “música para adulto”. Claro que há os que a fazem exclusivamente para crianças, como Bia Bedran e Zé Zuca, e são igualmente respeitáveis, representando talvez uma outra vertente, com o foco numa linguagem mais diretamente voltada para o pensamento da criança, mesmo sem descuidar da questão musical. Não por acaso, quase todos estes atuam também em outras vertentes artísticas, especialmente contação de histórias, o que torna a música eventalmente assessória, embora importante.

Mas não posso esconder que sempre preferi música feita para ser música, sem classificações, muitas vezes sem a intenção de ser infantil. Cresci ao som dos Saltimbancos, álbum de Chico Buarque adaptado da história alemã dos Músicos de Bremen, em que quatro animais maltratados pelos donos fogem, se unem, e ao reencontrá-los, os botam para correr. Em 1977, as possibilidades de leitura política desta história eram inúmeras, e só fui me dando conta delas bem mais tarde. Mesmo assim, aprendi que um dia o bicho chia, e que todos juntos somos fortes. Meus pais pensaram que eu estava ouvindo música para crianças. Mal sabiam eles.

Em suma: não creio que haja outra diferença entre música para crianças e para adultos que a temática da letra, e nunca questões efetivamente musicais. E creio que há canções com temas que interessam somente a crianças, outras somente a adultos, e outras a ambos. E estas últimas são especiais, pois podem crescer junto conosco em entendimento e se tornarem amigas de infância, companheiras para toda a vida.

João, o radical – parte 2

João Gilberto é compositor bissexto. Não é a parte mais importante de sua obra, sem dúvida. Mas exatamente por sua escassa produção, cada composição sua ganha muito maior relevância, por se revestir de múltiplos possíveis significados. E assim comentaristas e exegetas tentam decifrar se Um Abraço no Bonfá é uma homenagem, uma ironia por citar um grande trecho de O Barbinha Branca, do próprio Bonfá e Tom Jobim, uma brincadeira pelo fato de a peça instrumental ser tão cheia de pestanas que os dedos do violonista ficam doendo. E vai por aí afora.

Mas há duas composição de João que podem ser consideradas sínteses de seu trabalho, pela correlação que tem com seu estilo: Bim Bom e Hoba-lá-lá são canções praticamente gêmeas, embora de estilos diferentes à primeira vista: uma, um baião; outra, bolero. Ambos gêneros aparentemente alheios à Bossa-Nova, e até contraditórios a ela. Os bolerões grandiloquêntes eram a tônica das rádios pré-Bossa, com vozeirões e exageros interpretativos que às vezes chegavam às raias do absurdo, e que a Bossa ajudou a eliminar. E o baião era, na época (Bim Bom é de 1956) outra aintítese da Bossa (se é que ela pode ter duas antíteses). Ruy Castro, em Chega de Saudade – História e Histórias da Bossa-Nova, se refere ao baião da forma mais pejorativa possível, tratando-o por “aquele ritmo que, para alguns, só servia como coreografia para se matar uma barata no canto da sala”, além de chamar abertamente a sanfona de Luiz Gonzaga de “cafona” (claro que as idiossincrazias do Ruy Castro também tem lugar aí). Onde é que a Bossa-Nova acha um lugar aí? E principalmente, por que é que João Gilberto escolheu exatamente estes rítmos para compor?

Talvez exatamente por isso, para mostrar que, embora a Bossa-Nova seja fundamentalmente samba, não é o samba. Para mostrar que ela é, muito mais que um estilo musical, uma visão específica do fazer musical, da relação com a música. Muito mais que é-sal-é-sol-é-sul. Quando Nara Leão rompe com o movimento que adorava seus joelhos e vai gravar Zé Kéti, ela está fazendo Bossa-Nova, mais do que os que continuaram cantando os barquinhos. João faz a mesma coisa, mas à sua maneira, ao gravar Pra que discutir com madame?, ou Preconceito.

As duas canções em pauta são minúsculas. As letras, à primeira vista, não dizem nada. A estrutura de ambas é a mesma, e pode ser resumida assim: uma onomatopéia, uma auto-referencia, uma referência ao coração, e acabou.

E amor, o hó-bá-lá-lá, hó-bá-lá-lá uma canção,
Quem ouvir o hó-bá-lá-lá, terra feliz o coração
O amor encontrará ouvindo esta canção alguém compreenderá seu coração
Vem ouvir, o hó-bá-lá-lá, hó-bá-lá-lá esta canção

e

É só isso o meu baião
E nao tem mais nada não
O meu coração pediu assim, só… Bim bom.

Tom Zé, numa entrevista no Programa do Jô, (lá vou eu falar disso de novo. O vídeo está aqui no blog, no post Funk, Freud, Feitiço, as Foguentas e as fogueiras da Santa Inquisição) classifica o refrão de Atoladinha como um metarefrão microtonal e polisemiótico. Esqueçamos o microtonal. Estas duas canções são metarefrões – referem-se a si próprias – e polissemióticas. São refrões que resumem todos os refrões, canções que resumem todas as canções. Hoba-la-la e Bim Bom, de certa forma, são a mesma canção, sob formas pouco diversas, próximas de uma canção primordial, platônica. Estarem inseridas no contexto da Bossa-Nova, sendo de ritmos tão diversos , só reforça esta universalidade. Por serem, não exatamente tão simples, mas sim tão sintéticas, prestam-se a experiências como as que derivam de Bim Bom, que apresento aqui: Adriana Partimpim a mescla com Olodum para crianças; Caetano e José Miguel Wisnik a metabolizam em abstrações para um espetáculo de dança. São vestimentas belas e diferentes para a canção radical que João criou.

Faz sentido que João tenha composto tão pouco, depois de criar estas duas canções. Ele passou e passa o resto da vida a pegar outras canções e aproximá-las o mais possível da canção ideal que passou tão perto de alcançar com estas.  De fato, quando perguntado porque não compõe mais, ele responde: “Mas há tanta coisa bonita a ser consertada!” E ele, coerente com suas composições, não escolhe gênero. Atualmente, sua magistral gravação do bolero Estate toca na novela. É João tentando novamente alcançar a canção por excelência, ou desvelar a nós a diversidade que esta canção pode tomar. Se Bim Bom e Hoba-la-la são formas da mesma canção, segundo João, todas as canções são um pouco Hoba-la-la e Bim Bão: um pouco onomatopéia, um pouco auto-referência, um pouco (ou muito) coração.

Hoba-la-la – João Gilberto

Bim bom  – João Gilberto

Bim Bom – Adriana Partimpim & Olodum

É só isso – Caetano Veloso e José Miguel Wisnik