Um palimpsesto sertanejo

Makely Ka é um artista em movimento. Embora cada um dos seus trabalhos e álbuns seja um todo autônomo, faz mais sentido avaliarmos cada um como parte de um caminho que ele percorre, um caminho que não é exatamente linear, mas antes de ampliação de horizonte, como círculos concêntricos. Assim, depois de um primeiro álbum coletivo (com Pablo Castro e Krystoff Silva, mas também com boa parte da cena musical de Belo Horizonte), A outra cidade, em 2004 e um álbum de rock em 2007, Autófago, Makely mergulhou no sertão em 2014 com o Cavalo Motor, e agora, em Triste Entrópico, ele segue sertanejo, mas amplia e consolida sua visão, assim como, ao visitar pela segunda vez um lugar, nosso olhar consegue alcançar detalhes que passaram despercebidos e nossa visão de conjunto se torna mais nítida.

Cavalo Motor teve sua ignição na viagem empreendida por Makely, reconstituindo de bicicleta o Itinerário Tartarana (uma das canções do álbum) percorrido em Grande Sertão: Veredas. O álbum não seguia à risca este itinerário e nem era um álbum conceitual. Mas agora em Triste Entrópico o roteiro da viagem é inteiramente planejado por Makely. E se em Cavalo Motor a sonoridade de violas e percussões sofre interferências eletrônicas diversas e a guitarra particularíssima de Arto Lindsay, desta vez estes recursos são dispensados em favor de uma sonoridade mais direta (mas com exceções, a serem tratadas adiante). Em compensação, a poética de Makely segue afiada e cumpre por sua vez a função de atualizar o sertão, ultrapassando os limites alcançados no álbum anterior – ou antes, partindo do ponto em que este nos deixara.

A escrita de Makely, mesmo desde Autófago e quando referenciada à cidade e ao mundo urbano, já trazia em si estruturas formais típicas do interior e do Nordeste – e quando digo escrita, me refiro tanto à literária quanto à musical. Por um lado, a organização estrófica e de rimas e escolha das metrificações dialoga com tradições brasileiras diversas, assim como a poética de Siba (mas este com um maior rigor de uso das metrificações tradicionais e Makely sem o compromisso da forma estrita); já as melodias e acompanhamentos de violão de Makely passeiam livremente por modalismos, num estilo particular desenvolvido lentamente e que se mostra ainda mais desenvolto aqui, a ponto de, permitir que, na faixa título, o movimento do arranjo (em compasso quinário!) se sobreponha a uma melodia quase estática, mostrando uma visão composicional que vai bem além do trinômio letra/melodia/acordes.

E por outro lado, a escrita de Makely se atualiza dentro da tradição de duas formas: uma, na narração de um sertão não idealizado, mas atual e real, em que o agro não é pop, mas destruidor, – Vou me contaminando desse estado / Do agronegócio e tanto fertilizante, canta ele na faixa título – e muito menos óbvio, em que o já cantado e consagrado pode ser um pouco deixado de lado em favor de locações e visões diversas; e além disso, sua poética dialoga não apenas com o sertão, mas com diversos outros cantos, sejam do sertão ou não – ou ampliações do sertão por parte de seus autores ou por parte da apropriação deles feira por Makely.

A primeira canção, Vento Vivo, referencia o Vento Bravo de Edu Lobo e Paulo Cesar Pinheiro, inclusive na divisão rítmica das primeiras estrofes. Já Suburbiando, a segunda, ressoa A Violeira, de Tom Jobim e Chico Buarque e interpretada por Elba Ramalho no filme Para viver um grande amor, com a diferença em que ela termina sua epopeia no Rio de Janeiro e nem trator nem alavanca a arrancam de lá, enquanto ele termina em Salvador e, ao descobrir-se filho de Exu, orixá dos caminhos e encruzilhadas, abre a possibilidade de não parar lá e continuar seu caminho adiante, sem porto nem pousada.

Assim, Makely se deixa levar pelo vento e passeia não apenas pelo Brasil ou pelo sertão, seja de que tamanho for, mas também pelo imaginário do sertão, igualmente expandido. Além das menções mais ou menos sutis mencionadas acima, algumas outras são francas e diretas: A Feira de Araçuaí rebate diretamente as concorrentes já cantadas em busca de sua própria identidade:

Não é Caruaru e nem é Acari / É a feira de Araçuaí
Não é Mangaio, não é São Cristóvão / Não é a Feira Hippie nem a do Açaí

Dois diálogos em particular merecem um olhar mais detalhado. O primeiro (não na ordem das faixas, apenas em nossa atenção) é a Derrubada do Marco Marciano, resposta de Makely à canção O Marco Marciano, de Lenine com Bráulio Tavares, gravada pelo cantor em seu álbum O dia em que faremos contato, de 1997. O Marco Marciano narra a edificação deste monolito kubrickiano na superfície de Marte, com Torreão, levadiça, raio-laser / E um sistema internet de radar. A canção se vangloria da inexpugnabilidade de seu marco, numa auto-louvação típica do repente nordestino – e a forma da canção, em contraste com o tema, é exatamente a de um repente, acompanhado apenas da viola de 10 tocada por Lenine.

Pois esta é a deixa aproveitada por Makely: pois a auto-louvação, no repente, pede um desafio. E a resposta de Makely então segue o mesmo esquema de métrica e rimas escolhido por Bráulio para narrar como este marco seria destruído, e usando das mesmas hipérboles pluriculturais: se Bráulio compara seu marco com com os muros Ciclópicos de Tebas / E as fatais cordilheiras da Espanha e o diz esculpido Pelos rudes martelos de Vulcano, Makely responde na mesma moeda, comparando sua nave com a Carruagem de Arjuna no deserto / A quadriga de Apolo, sol dos gregos e ataca o marco Com um martelo forjado em Urano, feito de liga de aço unobtanium.

A disputa sertaneja/estelar, no entanto, além de fazer o sertão estender não apenas aos confins do mundo mas ainda a outros mundos, mas serve também para situar Makely e o álbum esteticamente, inscrevendo-o em uma linhagem de revisita da tradição projetando-a na na direção do futuro. Uma ideia que tem muitas vertentes: o afrofuturismo, por exemplo, ou o álbum de Thiago Thiago de Mello Amazônia Subterrânea, que em minha análise batizei, entre a blague e a seriedade, de amazônico-futurismo. Makely não chega a estabelecer aqui as bases teóricas do sertanejo-futurismo, e nem é esta sua intenção. Mas a ponte (ou o buraco de minhoca) estabelecida com a canção de Lenine serve para abrir esta possibilidade dentro do álbum, como um contraponto à destruição predatória do capital, demarcando um território onde este não alcança; e também para situar Triste entrópico em um lugar não apenas estético, mas até mesmo político, ou reivindicar este lugar. Assim como a Feira de Araçuaí, no Médio Jequitinhonha, ao se diferenciar de suas, digamos, co-irmãs, reivindica um lugar entre elas.

Mas ainda mais complexa e cheia de desdobramentos estéticos e de sentido são as duas menções de Makely à obra de Caetano Veloso. Em Toma tento, ele inclui como música incidental Araçá Azul, última faixa do álbum de mesmo nome de Caetano, e o mais experimental de sua carreira. Araçá Azul, o álbum de 1973, representou uma revisita de Caetano aos princípios mais radicais da Tropicália, mas também ao mesmo tempo ao repertório da cultura popular, discutindo a identidade brasileira com um novo sentido estético. Não por acaso, o álbum é aberto pelo canto de Dona Edith do Prato, conterrânea de Caetano em Santo Amaro da Purificação, na cantiga de domínio público Viola meu bem, cujos primeiros versos são Vou me embora pro sertão.

E a outra menção é mais que uma menção. A canção Triste Entropia é construída a partir da estrutura de Triste Bahia, gravada por Caetano em 1972 no álbum Transa. O diálogo entre ambas é tão próximo que a canção de Makely aproxima-se de uma paráfrase, mantendo não apenas a métrica dos versos mas as próprias rimas em ado e ante, com versos que se aproximam da sintaxe dos originais, apontando em outras direções: de Triste Bahia! Ó quão dessemelhante para Triste entropia resignificante e de Tanto negócio e tanto negociante para Do agronegócio e tanto fertilizante.

Porém, Triste Bahia não é uma composição apenas de Caetano, mas sim sua versão musicada das duas primeiras estrofes de um soneto de Gregório de Matos, o poeta português radicado em Salvador no século XVII. Gregório que, por sinal, é também musicado no Araçá Azul, em Gilberto Misterioso. Isto confere a Triste Entropia uma intertextualidade mais recuada no tempo, pegando carona na relação traçada por Caetano entre a Tropicália e o Barroco e levando-a ao sertão ainda mais decididamente que Caetano o fizera. Pois o lamento da decadência baiana (ou seja, de Salvador) feito pelo conservador Gregório e repaginado por Caetano num contexto ditatorial (mas não apenas) é levado por Makely até o neoliberalismo predatório que exporta as montanhas de Minas Gerais in natura e devasta o bioma do cerrado para plantar soja.

A escolha de Makely do Caetano Veloso de 1972/73 tem também sua significância, em especial por Transa ser o segundo álbum gravado por ele quando exilado pela ditadura na Inglaterra (o primeiro, de 1971, se encerra com uma lancinante gravação de Asa Branca. de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, tornada de canto do migrante sertanejo para canção de exílio). Outra vez os significados se sobrepõem, num movimento que pode ser visto de várias formas dependendo do ponto de vista, como na experiência da relatividade restrita: é o sertão que se expande ao Atlântico Norte? Ou é Makely que é um exilado do/no sertão, estranho e refratário a suas transformações deletérias?

A letra de Triste Entropia mereceria ela própria uma análise mais detalhada, sendo a que deu a partida para o projeto do álbum e estabeleceu seus parâmetros. Menções ao Guesa Errante, poema de Sousândrade, e o vaqueiro Grivo, personagem de Guimarães Rosa, incluem-se na rede de relações tecida por ela. O Guesa, adolescente que seria sacrificado aos deuses por seu povo andino, escapa e se vê subitamente em Wall Street, com seus perseguidores sacerdotes convertidos em capitalistas. Já o Grivo é enviado por seu patrão, o vaqueiro Cara de Bronze, em missão de viagem para… para quê? Para lhe trazer o porquê de tudo nessa vida. Grivo é comparado a Prometeu por Makely, ávido de saber os segredos dos deuses. Makely canta a perda de sentido do sertão traçando-lhe paralelos metalinguísticos e interculturais, e enquanto isso viaja na direção contrária da entropia, buscando na linguagem sua contínua reconstrução.

Como música incidental em Triste Entropia, Makely repete o canto de capoeira entoado por Caetano na gravação de Triste Bahia, porém não como Caetano o canta, e sim remetendo à gravação original de Mestre Pastinha. Pastinha é mencionado por Caetano na letra (Pastinha já foi à África / pra levar capoeira do Brasil, canta Caetano, e mesmo estes versos são de Pastinha, gravados no álbum Capoeira Angola – Mestre Pastinha e sua Academia, de 1969). Os versos cantados por Makely são:

Eu já vivo enjoado
De viver aqui na terra,
Oh mamãe eu vou pra lua,
Falei com minha mulher,
Ela então me respondeu,
Nós vamos se Deus quiser.

Esta é, portanto, a segunda menção interplanetária de Triste Entrópico. E não deixa de ser interessante notar seu contraste com o canto de Dona Edith do Prato no início de Araçá Azul – ela voltando para o sertão – e Makely também, conforme canta em Regresso ao Agreste – e Pastinha indo à Lua – e Makely a Marte. O sertão de Makely parece sempre apontar para fora, um sertão em movimento – em Cavalo Motor Makely se movia pelo sertão, agora ele retorna ao sertão, mas também é o sertão que se move.

Mas se Triste Entropia referencia Triste Bahia, Triste Entrópico, apenas com a ligeira mudança de sufixo, passa a referenciar o clássico livro do antropólogo Claude Levi-Strauss em que, entre idas à India e reflexões sobre o budismo e o islamismo, trata em quatro capítulos dos povos guaicurus, bororos, nambiquaras e tupi-kawahib – nenhum dos quatro é mencionado, mas poderiam estar, na letra de Ex-extintos, em que Makely lista povos originários que desapareceram, estão em vias de, ou, em casos raros, conseguiram se reestruturar e sobreviver contra todas as possibilidades, já que as forças que devastam o sertão também se voltam contra eles.

Porém, mais que o assunto tratado no livro, o título Tristes Trópicos tornou-se um epíteto grudado à pele do Brasil tanto quanto outro título célebre, o de Stephan Zweig – Brasil, país do futuro. A referência a esta tristeza, já vista no soneto de Olavo Bilac Música Brasileira (no verso flor amorosa de três raças tristes), assim como a previsão de Zweig, torna-se algo que é simultaneamente uma bênção e uma praga, uma característica da qual parece não ser possível se livrar. E com a passagem de trópico para entrópico esta tristeza se torna ainda mais patente, diante de um desastre anunciado, como um futuro que se esfacela. O sertão se dissolve e se recria, em Makely balança entre o pessimismo e o futurismo.

Mas se tanto falamos das intertextualidades deste trabalho, e ainda surgirão outras, é preciso voltar ao que as embala, pois não se trata de uma obra literária e muito menos um tratado acadêmico, mas um álbum de música popular, e é nela que ele se escora para tudo isso. Falar por exemplo, da voz de Makely, que com seu tom algo gutural é uma espécie de Arnaldo Antunes sertanejo. A voz de Makely, sem se a de um cantor consumado, acrescenta um tom de credibilidade ao que é cantado para além da autoralidade. Makely, em Triste Entrópico, mostra uma sutil evolução técnica ao revelar os desenhos de melodias mais sinuosas como a de Desanuvio – em que ele tem o desafio de cantar com Ná Ozzetti. É preciso destacar também os arranjos de metais em algumas faixas feitos por Maurício Ribeiro, músico mineiro da geração de Makely e falecido precocemente em abril, antes do lançamento do álbum.

O núcleo instrumental do álbum está no violão de Makely, frequentemente secundado por outro nas mãos de Tabajara Belo ou Gustavo Souza, o baixo de Paulim Sartori e as percussões múltiplas de Yuri Vellasco, na maioria das faixas. Sobre esta base vão sopros e outras participações e interferências. Chico Neves acrescenta efeitos sutis em Vento vivo e Acho é pouco, e André Cabelo na Derrubada do Marco Marciano, aqui acompanhando apenas a viola de 10 de Makely – neste caso muito a propósito, estabelecendo no contraste de sonoridades a dialética do sertão marciano.

O roteiro de canções de Triste Entrópico não deixa de sugerir uma viagem, mas o Vento vivo conduz o ouvinte por um itinerário menos geográfico (ou astronáutico) e mais – difícil fugir da palavra – conceitual, no sentido de várias vertentes de país se fazerem presentes. Assim, além dos povos indígenas listados em Ex-extintos, Makely reconta em Chachá a história de Francisco Félix de Souza, maior traficante de escravos brasileiro e praticamente um rei no Daomé na virada dos 1800, indo ao passado como contraponto ao futurismo de outras canções. E em Ajayô, canção-saudação à cultura afrobrasileira, entre orixás e autoridades religiosas como o babalaô, Makely inclui na letra uma saudação ao Metá-metá, trio formado por Juçara Marçal, Kiko Dinucci e Thiago França cujo trabalho é fortemente estribado nas raízes africanas da música brasileira, mas com uma sonoridade contemporânea e mesmo jazzistica ou roqueira em alguns momentos. Sua presença na letra é como que uma gota de futuro temperando a tradição.

A viagem de Makely termina, e tenho a impressão de que não poderia ser de outro modo, em Canudos. Os Sertões, última faixa do álbum, toma emprestado o título do clássico de Euclides da Cunha, aproveitando para lembrar que o sertão não é só um, são muitos. E mais uma vez não perde a oportunidade de trazer o passado para o presente, com referências a Stalingrado, bastião da resistência contra os nazistas na Segunda Guerra Mundial, e à Guerra do Vietnã, com jagunços vietcongs e a menção a Võ Nguyên Giáp, o general que derrotou os EUA. Se Stalingrado e Hanói sobreviveram de fato, Canudos persiste na memória. Do leito do Vaza-Barris, último verso do álbum e córrego em cujas margens Canudos foi fundada, ele segue em movimento como um rio faz, e nunca nos banhamos no mesmo. Contra o pacto caduco / Do agro gorando espaço (versos de Eu acho é pouco) Makely estende mais uma vez o sertão, ou os sertões, para além do alcance de seus predadores, traçando uma teia de relações que o expande para muito além de seus limites geográficos. O sertão é do tamanho da ideia.

________________________________________________________________

Triste Entrópico está disponível para escuta em todas as plataformas com exceção do Spotify, e em especial no Bandcamp, plataforma gratuita de streaming – uma das muitas militâncias de Makely no sentido da democratização da cultura e contra os abusos cometidos pelas plataformas pagas contra os artistas.

Clarice e Cazuza: “Como reproduzir em palavras o gosto?”

Há muitas maneiras de escrever uma canção. Há quem pense primeiro na melodia – alguns só pensam nela, e deixam outros colocarem a letra; outros, ao contrário, pensam primeiros nos versos, e para alguns os elementos vêm juntos à mente. Mas, no segundo caso, de uma letra que recebe melodia, provavelmente a situação mais desafiadora é a de musicar um texto em prosa. Um poema tem quase sempre algum tipo de regularidade que permite a divisão estrófica, a repetição melódica em versos do mesmo tamanho, sem falar das rimas. Nada disso está presente em um texto em prosa, e é preciso como que inventar meios de suprir estas ausências. Alguns compositores se aventuraram nesta seara. Um deles, numa parceria inesperada. Em algum momento da década de 1980, Cazuza, com o discreto auxílio de Frejat, musicou ninguém menos que Clarice Lispector. A canção Que o Deus venha só foi gravada pelo Barão Vermelho após saída do vocalista, no álbum de 1986, Declare Guerra.

Frejat conta que Cazuza o procurou para fazer ajustes na canção e ele se espantou, pois ao ler a letra achou-a perfeitamente dentro do estilo do parceiro. O trecho musicado por eles vem do livro Água Viva, de 1973. Água Viva é, possivelmente, o texto mais ambicioso de Clarice, embora curto, cerca de 50 páginas apenas. Água Viva não chega a ter uma história a ser contada: sabe-se parcamente que a narração em primeira pessoa é feita por uma pintora, e é dirigida a um homem com quem, em algum momento, teve um relacionamento. E é só. O livro é feito de divagações da protagonista sobre seu mundo interno, suas sensações, e o desafio que é colocar em palavras estas coisas inefáveis. Água Viva é simultaneamente uma tentativa direta, sem rodeios, da descrição das subjetividades mais íntimas de um ser humano, e a descrição, igualmente subjetiva e metalinguística, do processo de fazê-lo.

Ao longo do texto, a narradora de Água Viva faz frequentes comparações entre a pintura, com a qual tem intimidade, com o uso da palavra para o mesmo fim de expressão, com a qual, segundo ela, não tem, e diz se atrapalhar. E em alguns outros momentos, ocorre também a comparação com a música. “Não se compreende música: ouve-se”, afirma ela. E mais adiante: “Minha pintura não tem palavras: fica atrás do pensamento” (…) Estou sendo antimelódica. Comprazo-me com a harmonia difícil dos ásperos contrários”. E finalmente, ainda mais adiante:

Como reproduzir em palavras o gosto? O gosto é uno e as palavras são muitas. Quanto à música, depois de tocada para onde ela vai? Música só tem de concreto o instrumento. Bem atrás do pensamento tenho um fundo musical. Mas ainda mais atrás há o coração batendo. Assim o mais profundo pensamento é um coração batendo.

Como se vê, Clarice é pessimista quanto à possibilidade de converter em linguagem o que vai dentro, no entanto não cansa de tentar. E, se considera que no mais profundo do pensamento há uma pulsação, admite implicitamente a possibilidade de a música expressar o que busca.

Passemos então ao trecho escolhido por Cazuza, que teve pouquíssimos ajustes para receber música. A parte efetivamente incluída por Cazuza na canção vai frisada.

(Estou) precisando mais que a força humana. Sou forte mas também destrutiva. O Deus tem de vir a mim já que não tenho ido a Ele. Que o Deus venha: por favor. Mesmo que eu não mereça. Venha. Ou talvez o que menos merecem mais precisem. Sou inquieta áspera e desesperançada. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor. Ás vezes me arranha como sem fossem farpas. Se tanto amor dentro de mim recebi e no entanto continuo inquieta é porque preciso que o Deus venha. Venha antes que seja tarde demais. Corro perigo como toda pessoa que vive. E a única coisa que me espera é exatamente o inesperado. Mas sei que terei paz antes da morte e que experimentarei um dia o delicado da vida. Perceberei – assim como se come e vive o gosto da comida.

Cazuza, além de passar o eu lírico para o masculino, muda muito pouco no texto – a alteração mais impactante provavelmente está na parte final, em que ele troca o verbo perceberei pela expressão Vou aprender, e retira a palavra assim. Este verso acaba ganhando uma conotação ligeiramente diferente, e menos sutil, tornando-se “Vou entender como se come e vive o gosto da comida”. Mas mesmo esta modificação, nitidamente com o intuito de simplificar a frase de modo a torná-la mais compreensível ao ser cantada, não chega a ser prejudicial. O fundamental aqui, antes de tudo, é encontrar a regularidade do texto – sua pulsação, a batida de seu coração – que abra caminho para a melodia. E Cazuza consegue isso com o blues.

Evidentemente, o blues está inteiramente dentro do estilo do Barão Vermelho, e é uma escolha natural para muitos temas tratados pelo grupo e por Cazuza em sua carreira solo. Mas particularmente para este trecho de Clarice, ou para Clarice de forma mais geral, o blues se presta à perfeição, tanto tecnicamente quanto em espírito. Sua pulsação lenta e marcada como um coração, com uma base harmônica bastante simples (no caso, não a clássica sequência de acordes, mas uma em tom menor, mas ainda assim capaz de dar muita liberdade para o improviso vocal) permitem à voz de Frejat passear dando a cada frase a entonação de que ela precisa, sem a amarra de uma melodia que se repita, já que a harmonia já concede esta regularidade. Mas mais que isso, a própria ideia do blues como descendente direto dos spirituais, os cantos entoados para que o Deus venha, ajusta-se à noção do texto tornando-o uma espécie de prece torta – não à toa Frejat espantou-se que ele não fosse de autoria do próprio Cazuza.

O pesquisador Rafael Julião, em um excelente artigo sobre a relação entre Cazuza e Clarice, aponta:

O fragmento específico que dá origem a “Que o Deus venha” toca em um ponto de constante inquietude na obra de Cazuza: a incapacidade de amar, que se apresenta como o grande pathos do compositor. A recorrente afirmação do não saber amar (em tensão com seu intenso desejo de transitividade amorosa) atravessa várias de suas composições e se faz notória nos versos “embora amor dentro de mim eu tenha/ só que eu não sei usar amor”.

Formulações semelhantes aparecem nas letras de “Malandragem” (“eu sou poeta e não aprendi a amar”), “Rock’n’geral” (“ou de um coração meio surdo que não sabe amar”), (“não amo ninguém e é só amor que eu respiro”) “Não amo ninguém”, “Filho único” (“estou na mais completa solidão/ do ser que é amado e não ama”), “Nunca sofri por amor” (“será que nunca amei de verdade/ ou o verdadeiro amor é assim”), “Carente profissional” (“levando em frente/ um coração deprimente/ viciado em amar errado/ crente que o que ele sente/ é sagrado/ e é tudo piada”) e “Fracasso” (“mas eu tenho a impressão/ que todos nós somos fracassados/ eu, por exemplo: não amo…”).

Assim três pontos chave da letra estão posicionados exatamente sobre os mesmos acordes: os versos “Só que eu não sei usar amor” e “É que eu preciso que o Deus venha” são cantados sobre os acordes deslizantes de F para E7 – este a dominante, que conduziria à tonalidade e ao repouso, mas não conduz, pois a cadência é quebrada e vai em seguida em outra direção, deixando em suspenso o desejo, o amor, a espera da vinda de Deus. O terceiro ponto em que esta mesma harmonia é usada é, já na última estrofe (a canção ganha o formato clássico AABA), sob o verso “O delicado da vida”, em que a melodia desce para o grave e se suaviza acompanhando a letra, mas novamente ilustrando uma suspensão, já que a letra afirma esperar um dia experimentar esta delicadeza, antes da morte.

Assim, Cazuza e Frejat conseguem encontrar um delicado equilíbrio entre o ritmo livre do texto em prosa e a estruturação estrófica da canção, concedendo liberdade à melodia ao mesmo tempo que esta organiza o texto, a ponto de conseguirem uma única rima, em versos diferentes de cada estrofe, tenha/venha. Menos que uma rima, um eco distante entre a falta de amor e a espera de Deus.

E então, em seu álbum de estreia em 1990, Cassia Eller apresentou sua versão de Que o Deus venha.

Afora Cássia ter trazido o eu lírico da canção de volta ao feminino, sua gravação mantém, é claro, a atmosfera bluesly da canção, mas acrescentando-lhe algo de jazzy, devido à formação: Jorge Helder no contrabaixo acústico, Écio Cafaro tocando a bateria com vassourinhas, Nelson Faria ao violão e Zé Marcos no piano. O arranjo acústico tira bastante da agressividade da gravação original, mas a aspereza mencionada logo no primeiro verso permanece na voz de Cássia. Mas além disso, a mudança de timbres traz à canção uma certa sensação de desamparo. A solidão que na gravação do Barão era quase orgulhosa, em certa medida desafiando Deus a aparecer, aqui ganha em suavidade e um tom mais próximo da desesperança também mencionada na letra.

E no mesmo álbum, Cássia canta uma canção de um companheiro de geração de Cazuza, que aborda, por outro viés, um sentimento parecido: Por enquanto, de Renato Russo, gravada inicialmente pela Legião Urbana em seu primeiro álbum, de 1984.

De alguma forma, Que o Deus venha e Por enquanto têm temáticas comuns, mas Cazuza (apud Clarice) fala em termos individuais, Renato em termos coletivos – o eu lírico de Por enquanto varia entre a primeira pessoa do singular e a do plural. A possível resolução do dilema existencial proposto por cada uma se resolve no aprendizado dos sentidos (Experimentar o delicado da vida), ou no compartilhamento da experiência (Quando penso em alguém, só penso em você / e aí então estamos bem). Mas trata-se fundamentalmente, não apenas de impasses similares, mas também do mesmo desafio de expressar esta subjetividade em palavras.

A gravação de Cássia para Por Enquanto faz a canção seguir um trajeto comparável ao de Que o Deus venha: se esta vai do blues rasgado e elétrico para algo mais próximo do jazz acústico, a de Renato passa de uma sonoridade eletrônica (que causou espanto ao fechar o álbum da banda) que pode ser relacionada à passagem da banda pós-punk Joy Division para sua nova formação de New Order após a morte do seu vocalista Ian Curtis – o que era fúria desesperada se converte em melancolia -, para um blues assumido e também acústico (aqui apenas o violão de Cássia), em que esta melancolia pode se derramar. Esta adaptação similar de ambas também as aproxima no álbum.

E mais uma decisão interessantíssima de Cássia faz a aproximação, não entre Renato e Cazuza, mas entre Por Enquanto e Clarice: a inclusão, como música incidental, de I’ve got a feeling, de Lennon e McCartney, do álbum Let it be dos Beatles, como introdução para Por Enquanto. I’ve got a feeling, a feeling deep inside, a feeling that I can’t hide. Um blues, um sentimento que não posso esconder, que preciso colocar em palavras. E este é o desafio, colocar em palavras. Já sabia Clarice.

A volta do Almirante Negro

Nos dias de hoje, certamente a forma musical mais complexa de toda a música popular brasileira atende pelo nome de samba-enredo. Uma forma que evoluiu por quase um século desde os primeiros desfiles, em que o samba sequer precisava ter relação com o enredo. Atualmente, um samba-enredo precisa satisfazer uma enorme série de exigências. Para começar, ele deve não apenas tratar do enredo da escola, mas ter em si uma série de tópicos específicos deste enredo, que são fornecidos pelo carnavalesco e serão desenvolvidas nas fantasias e alegorias do desfile. Além disso, diante do tamanho das escolas e da extensão do desfile, ele precisa ter mais de um momento de ritmo mais marcado, em que o coro da escola e a bateria possam se alinhar, impedindo que o samba atravesse. Por isso, sambas-enredo atuais têm dois ou mesmo três refrões. Além disso, se o samba for composto já pensando nos momentos em que a bateria poderá fazer viradas e paradinhas, ajuda muito.

Todas estas exigências técnicas, por outro lado, não podem impedir o samba de ser cantável e empolgante. Muitas vezes a necessidade de mencionar diversos assuntos acaba burocratizando a composição, que se torna uma mera lista de temas e acontecimentos. Conseguir coadunar todas estas necessidades – que não são fabricadas, mas realmente indispensáveis para o sucesso do desfile – com uma melodia inspirada, uma letra não apenas compreensível como emocionante (às vezes tratando de um assunto muito distante da realidade dos componentes da escola) é uma tarefa hercúlea, por isso mesmo muitas vezes tomada a oito, dez ou mais mãos.

Já escrever um samba com o formato de samba-enredo, mas sem a responsabilidade de conduzir uma escola pela avenida, é algo que muitos compositores da MPB se dispuseram a fazer (e em alguns casos, com a responsabilidade, como veremos). E destes, provavelmente poucos se aproximaram mais da forma exata para um desfile que O Mestre-sala dos Mares, de João Bosco e Aldir Blanc.

O Mestre-sala dos mares abre o álbum de João Caça à raposa, de 1975, e conta a história de João Cândido, o marinheiro que se tornou líder da Revolta da Chibata. A história é conhecida: mesmo mais de 20 anos após a Abolição da Escravatura, na Marinha brasileira persistiam castigos corporais pesados como as chibatadas, que recebiam vista grossa do Estado, já que a maioria absoluta do contingente era composto por negros e pobres, em contraste com os oficiais brancos de elite. Vários anos antes de 1910, quando a revolta eclodiu, esta já era planejada pelos tripulantes do encouraçado Minas Geraes, que ao lado do São Paulo eram os dois navios de guerra mais poderosos da América do Sul, a ponto de sua aquisição pelo Brasil ter iniciado uma corrida armamentista no continente. O plano, desde o início, era se apoderar dos navios por meio de motins, e então negociar com o governo federal o fim oficial dos castigos físicos e a anistia aos revoltosos.

A revolta foi iniciada na noite de 22 de novembro de 1910, e à meia noite, além do Minas Geraes e do São Paulo, os revoltosos tinham controlado alguns outros navios fundeados na Baía de Guanabara e escolhido João Cândido como seu líder. Avisaram o governo de suas exigências e ameaçaram bombardear a cidade do Rio de Janeiro se não fossem atendidos. De fato, chegaram a bombardear fortes militares da costa e das Ilhas das Cobras e Villegagnon. Após um período de impasse, o presidente Hermes da Fonseca concordou com as exigências, a anistia foi aprovada no Congresso com a defesa de Ruy Barbosa, e a revolta cessou no dia 26 de novembro.

Porém, o governo não cumpriu a promessa da anistia. Nos dias seguintes, mais de 1.300 revoltosos foram desligados da Marinha, tantos que, para manter suas operações, foi necessário contratar marinheiros portugueses. Mais de trinta prisões foram feitas e, quando os marinheiros ameaçaram se amotinar novamente pelo não cumprimento do acordo, o governo declarou Estado de Sítio na capital.

João Cândido foi expulso da Marinha e preso, sob a acusação de ter favorecido as novas revoltas. Foi posto numa masmorra com outros 16 revoltosos, e foi o único a sobreviver – todos morreram asfixiados pelas condições da prisão. No ano seguinte foi levado ao Hospital dos Alienados, como louco, mas recebeu alta e finalmente em 1912 teve a absolvição das acusações – mas não a readmissão na Marinha. Sobreviveu precariamente a partir daí, como estivador e com trabalhos temporários, mais os traumas físicos e mentais do que passou.

Esta é a historia contada por João e Aldir. Ou melhor, não exatamente, porque eles não se propõem a contar a história, e sim lembrá-la e relê-la sob um prisma épico, colocando-o no contexto da luta contra o racismo e pela liberdade e igualdade. Já os primeiros versos, Há muito tempo nas águas da Guanabara / o Dragão do Mar reapareceu, relacionam a história de João Cândido com a de outra figura ilustre, mas não ligada diretamente à sua, a de Francisco José do Nascimento, líder dos jangadeiros cearenses e ativista do abolicionismo, que em seu estado aconteceu quatro anos antes do restante do país, em 1884. João e Aldir estabelecem uma linhagem entre eles. Todo o restante dos fatos é narrado de forma quase alegórica, com versos que ao mesmo tempo parecem tentar suavizar os acontecimentos embelezando-os, e exaltar a figura de João Cândido, pintando-o com uma dignidade que paira acima de todos.

Assim, as mocinhas francesas, jovens polacas e batalhões de mulatas que o saúdam no porto são as prostitutas, descritas de forma edulcorada, assim como as rubras cascatas que jorravam das costas dos santos são cantadas com um entusiasmo que mal disfarça sua verdadeira natureza. Elis Regina, em sua gravação no álbum do mesmo ano de 1974, usou de estratégia semelhante à aplicada em outro samba-enredo de João e Aldir, O bêbado e a equilibrista: reduziu seu andamento e estilizou a batucada, de forma a realçar tanto os contornos melódicos da composição quanto a sua imensa dramaticidade.

Porém, assim como João Cândido, a canção que narra sua história também teve, a seu modo, de lutar por sua liberdade. Aldir conta, em depoimento ao Museu da Imagem e do Som:

Tivemos diversos problemas com a censura. Ouvimos ameaças veladas de que o CENIMAR (Centro de Inteligência da Marinha) não toleraria loas a um marinheiro que quebrou a hierarquia e matou oficiais, etc. Fomos várias vezes censurados, apesar das mudanças que fazíamos, tentando não mutilar o que considerávamos as ideias principais da letra.

Assim, João e Aldir trataram de ir modificando a letra a cada ida à censura. O bravo marinheiro dos primeiros versos tornou-se feiticeiro; o Almirante negro tornou-se apenas navegante; e as rubras cascatas que jorravam das costas dos negros passaram a jorrar das costas dos santos, entre outras mudanças, sendo que estas últimas se devem à revelação final feita a Aldir:

Minha última ida ao Departamento de Censura, então funcionando no Palácio do Catete, me marcou profundamente. Um sujeito, bancando o durão, (…) mãos na cintura, eu sentado numa cadeira e ele de pé, com a coronha da arma no coldre há uns três centímetros do meu nariz. Aí, um outro, bancando o “bonzinho”, disse mais ou menos o seguinte:

 – Vocês não então entendendo… Estão trocando as palavras como revolta, sangue, etc. e não é aí que a coisa tá pegando…

– Eu, claro, perguntei educadamente se ele poderia me esclarecer melhor. E, como se tivesse levado um “telefone” nos tímpanos, ouvi, estarrecido a resposta, em voz mais baixa, gutural, cheia de mistério, como quem dá uma dica perigosa:

– O problema é essa história de negro, negro, negro…

Só então Aldir e João se deram conta do que deveriam fazer. Foi quando a canção teve o nome mudado de O almirante negro para O mestre-sala dos mares.. E passou.

Embora O mestre-sala dos mares seja sem dúvida um samba-enredo, guarda diferenças importantes com os que efetivamente são criados com a intenção de desfilar. O principal deles trazer em si um arco crescente que não é comum nos sambas das escolas. Estes precisam manter o entusiasmo constante dos integrantes, e por isso as curtas estrofes mais tranquilas são logo entremeadas por refrões e trechos mais marcados e em regiões mais agudas, de forma a manter um impulso constante e o mais homogêneo possível.

Já João e Aldir não têm este compromisso. Por isso, seu samba-enredo se dá o direito de ter toda a parte inicial na região mais grave, sendo cantado, mesmo na gravação animada de João, de forma mais comedida. Somente a partir da segunda parte, com o verso Rubras cascatas é que a melodia começa a buscar o agudo, para enfim, em seu final, as glorificações acontecerem num crescendo que traz as notas mais agudas da melodia. O arco dramático de O mestre-sala dos mares tem início, meio e fim, e é sintomático que nem a gravação de João nem a de Elis o cantem duas vezes- João repete apenas a parte final, e Elis nem isso. O samba-enredo produzido pela MPB se permite ser híbrido da forma tradicional da canção.

Mas então como seria um samba-enredo tradicional que tratasse do mesmo tema? João Cândido já foi homenageado mais de uma vez em desfiles – A União da Ilha do Governador, em 1985, trouxe o enredo Um herói, um enredo, uma canção, que justamente tanto o homenageava quanto referenciava o samba de João e Aldir – a escola não desfilou bem e amargou um 12º lugar. Mas como no mundo do samba muitos temas retornam – e é bom que retornem -, a Paraíso de Tuiuti em 2024 veio com o enredo Glória ao Almirante Negro.

O samba de Cláudio Russo, Moacyr Luz, Gustavo Clarão, Júlio Alves, Alessandro Falcão, W. Correa e Píer (14 mãos!) segue à risca diversos dos itens necessários ao desfile na avenida: O refrão inicial apresenta a escola já em alta voltagem, quatro versos fortes e bem ritmados, alinhando o canto e a bateria e prometendo empolgar – tudo ao contrário do samba de João e Aldir. Entretanto, à menção direta a eles segue-se a adaptação do primeiro verso dO mestre-sala dos mares abrindo aqui também a narrativa: Nas águas da Guanabara.

Apesar do início auspicioso, seria de temer aqui que o samba-enredo se convertesse em uma mera paráfrase e tentasse estabelecer sua força às custas do anterior. Felizmente, não é isso que acontece. Em vez disso, Glória ao almirante negro constrói sua narrativa a partir de sua própria pesquisa, inclusive narrando a traição por parte do governo federal, ausente em O mestre-sala dos mares (e que provavelmente também não teria passado na censura, mas no caso de um enredo de escola de samba se torna indispensável). Os dois sambas não se perdem de vista, mas correm com personalidades particulares e imagens próximas, mas distintas. O samba de Moacyr Luz e seus companheiros faz também de forma mais direta a ligação dos castigos físicos com a escravidão já abolida, traçando o paralelo com a casa-grande e os contratadores, que arrematavam ao Império Português do direito de exploração das terras com o uso extensivo de escravos.

Por sinal que chama a atenção a presença de Moacyr, um músico que, embora com os pés fincados no universo do samba, transita com desenvoltura pela composição relida pela MPB, entre os compositores do samba da Tuiuti. Não que isto seja novidade: Moacyr é useiro e vezeiro da autoria de sambas-enredo por mais de uma escola, ganhou mais de um Estandarte de ouro – incluindo em 2023 pela Tuiuti com o enredo Mogangueiro da Cara Preta. Também é um dos autores do samba de 2018, Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?, com que a escola foi vice-campeã do carnaval. Assim como Martinho da Vila, Moacyr é um compositor que domina a técnica de composição de sambas-enredo tanto quanto da canção popular, e passa de um à outra com desenvoltura. Para grau de comparação, basta analisarmos seu samba mais conhecido, Saudades da Guanabara, todo composto a partir de um tema melódico único que vai se desdobrando pelas estrofes – algo impossível num samba-enredo, que precisa, ao contrário, de vários motivos musicais diferentes que se sucedam para evitar a monotonia de sua repetição por 50 minutos.

E, se O mestre-sala dos mares delicadamente estabelece João Cândido em uma linhagem de abolicionistas, Glória ao almirante negro traz também um outro estratagema que lhe serve, simultaneamente, para manter o interesse do ouvinte e da escola e situar a si próprio, por sua vez, em uma linhagem de sambas e canções que narram esta luta por liberdade. Pois não é apenas ao samba de João e Aldir que ele se referencia – a este muito claramente, a outros de forma mais sutil. Assim, nos versos:

Ôô, a casa grande não sustenta temporais
Ôô, veio dos Pampas pra salvar Minas Geraes

A melodia do Ôô se inicia muito semelhante (para logo se diferenciar) a um dos refrões de Kizomba, festa da raça, samba vencedor do carnaval pela Unidos de Vila Isabel em 1988 (de autoria de Martinho, por sinal), nos versos:

Ôô nega mina, Anastácia não se deixou escravizar
Ôô Clementina, o pagode é o partido popular

Por mais que coros como este sejam comuns em sambas enredos e a menção seja sutil, é suficiente para sugestionar o ouvinte na ligação temática. Da mesma forma, logo em seguida surgem os versos:

Lerê, lerê, mais um preto lutando pelo irmão
Lerê, lerê, e dizer: Nunca mais escravidão

Aqui nem mesmo é necessário o paralelismo melódico: o coro Lerê, lerê é a marca registrada da introdução da canção de Dorival Caymmi Retirantes (Vida de negro), quase uma trilha sonora da escravidão no imaginário popular desde que foi apresentada como tema da novela Escrava Isaura, em 1976.

E para completar, a mais sutil e mais recente alusão: a última estrofe se inicia com a expressão Meu nego. Uma forma carinhosa de tratamento, sem dúvida, e que no samba da Tuiuti pode soar como uma repentina mudança na letra: se até aí ela contava a história de João Cândido na terceira pessoa, neste final, com o uso de um vocativo, estaria passando à segunda e falando diretamente com ele. Uma guinada talvez excessivamente brusca e de difícil compreensão à primeira escuta.

Mas esta impressão só dura até lembrarmos do já célebre samba da Mangueira vitorioso em 2019, Histórias para ninar gente grande. Nele, a letra é toda na segunda pessoa e, de forma bastante arrojada, conversa diretamente com o Brasil – e usando com ele exatamente a forma de tratamento carinhosa e cheia de significados: Brasil, meu nego, deixa eu te contar.

E então a escolha de Moacyr e seus parceiros se ilumina. Não se trata de uma guinada, mas apenas da revelação tardia de que era o próprio país o interlocutor do samba desde seu início. E assim, Glória ao Almirante negro se alinha a Histórias de ninar gente grande, como que continuando a conversa iniciada pelo samba anterior, contando uma das histórias que a História não conta (no samba da mangueira, João Cândido não chega a ser citado, mas o Dragão do Mar Francisco José do Nascimento sim).

E finalmente, chegamos aos versos finais

Salve o Almirante Negro
Que faz de um samba-enredo imortal

Onde se realiza a promessa feita desde o título do enredo: de devolver a João Cândido o título honorário concedido por João e Aldir e retirado pela ditadura antes mesmo de vir a público. O navegante negro tem finalmente reconhecida sua condição de líder da frota que enfrentou a República para torná-la efetivamente a res pública, aquilo que pertence ao povo. João Cândido torna-se almirante de fato e de direito, e Glória ao almirante negro reclama para si um pouco desta glória também. Se esta virá e o samba da Tuiuti se tornará um daqueles sempre lembrados pelos anos seguintes, o tempo dirá. Mas o almirantado de João Cândido será o marco da escola este ano, um marco a não ser esquecido. Em 1985, em pleno desmantelar da ditadura, a União da Ilha foi chamada ao 1º Distrito Naval para prestar esclarecimentos sobre seu enredo, e teve de convencer os militares que não se tratava de nada subversivo. Que hoje a Tuiuti possa contar esta história sem receios é um sinal de que a luta de homens como João Cândido não foi em vão.

Um anti-repente de Djavan

Na segunda metade da década de 1950, dois fenômenos influenciaram decisivamente a difusão da poesia de repente no Brasil: o êxodo rural, que levou boa parte da população rural do Nordeste para as capitais e para a Região Sul, em especial o Rio de Janeiro; e a difusão do rádio, este já muito popular, mas agora progressivamente acessível aos repentistas. Estes então começam a trocar as apresentaç��es públicas passando o chapéu por cachês fixos em programas radiofônicos de maior alcance – até devido à chegada da eletricidade a regiões mais afastadas.

Quem conta isso é o pesquisador Sandino Patriota no livro em que biografa seu avô, o cantador Otacílio Batista. E Sandino conta também que, tendo a atenção chamada para a crescente popularidade destes artistas, o Jornal do Brasil em 1959 promoveu um encontro de cantadores na capital federal, uma disputa de duplas de improvisadores com um juri ilustre de escritores e poetas: Manuel Bandeira, Orígenes Lessa, Eneida, Cavalcanti Proença. Os competidores concorreram a um prêmio de 20 mil cruzeiros e a disputa aconteceu no Teatro de Arena da Faculdade Nacional de Arquitetura (hoje da UFRJ), na Praia Vermelha. Os vencedores foram a dupla de Otacílio e seu irmão Dimas Batista com Zé Gonçalves e Cícero Batista (que não era parente dos vencedores) em segundo lugar. Nos dias seguintes, evidentemente, o Jornal do Brasil, que já anunciara o evento com pompa, anunciou também os vencedores em sua edição. E publicou também um poema de Manuel Bandeira, feito especialmente para o jornal, chamado Saudação aos violeiros:

Anteontem, minha gente,
Fui juiz numa função
De violeiros do Nordeste
Cantando em competição
Vi cantar Dimas Batista
E Otacílio, seu irmão
Ouvi um tal de Ferreira,
Ouvi um tal de João. (…)

O poema completo pode ser lido aqui. Os versos de Bandeira não saíram em livro antes de 1965, quando o volume com as obras completas de Bandeira foi publicado, chamado Estrela da Vida Inteira – agora com o título Cantadores do Nordeste. Nele, além de todos os livros do poeta, estão também os poemas de circunstância criados aqui e ali e não incluídos em livro. E provavelmente foi nesta poesia reunida que Djavan conheceu o poema de Bandeira e o tomou como ponto de partida para sua canção Violeiros.

Violeiros é a quinta faixa do álbum Coisa de acender, de 1992. Desde então, a co-autoria de Manuel Bandeira é citada eventualmente, mas nem sempre. Fato é que dos 26 versos da canção, os primeiros 11 são de autoria de Bandeira e aludem à competição que realmente aconteceu, inclusive mencionando os vencedores e mais alguns nomes. Porém, a partir daí, Djavan toma o leme e leva a canção em um outro rumo, começando pela nova direção dada aos versos de Bandeira. Este escreveu:

Um, a quem faltava um braço
Tocava cuma só mão
Mas, como ele mesmo disse,
Cantando com perfeição,
Para cantar afinado,
Para cantar com paixão,
A força não está no braço:
Ela está no coração.

Já Djavan toma a frase pelo meio e a completa de outro modo:

Um, a quem faltava um braço,
Tocava com uma só mão.
Mas, como ele mesmo disse,
Com veia de emoção:
“Eu canto a desesperança,
Vou na alma e dou um nó.”
Quem me ouvir vai ter lembrança
De Tomás de um braço só.

Deste ponto em diante, Djavan continua a narrativa, e o resultado é não apenas surpreendentemente divergente da louvação de Bandeira, como também do próprio espírito de um repente, por vários motivos, mas principalmente no que move seu canto. Um desafio de repentistas tem uma característica festiva: feito originalmente nas praças, precisa chamar a atenção do público. Por isso, seu canto é sempre feito na região aguda, segundo certas fórmulas melódicas que variam de cantador para cantador, tendo alguns deles marcas registradas facilmente reconhecíveis – mas a melodia não é o que realmente importa, sendo apenas um veículo para as rimas de improviso, tanto que a própria viola de acompanhamento em geral dá apenas acordes de marcação, sem desenvolvimento rítmico. Além disso, a construção dos improvisos, especialmente nos desafios, é em geral irreverente e tem o foco em cada um dos disputantes se vangloriar e enaltecer, enquanto faz críticas ao adversário.

Mas em Violeiros, tudo é invertido: Djavan explora sua região mais grave – coisa que gostou muito de fazer, conforme afirmou em entrevistas. Sua letra, ao dar continuidade ao poema de Bandeira, passa a criar diversos personagens não constantes na disputa real de 1959, apresentando seus dramas pessoais, mas dando poucos detalhes sobre seus cantos – ao contrário, menciona alguns que sequer chegaram a se apresentar. Se o Tomás sem um braço da versão de Bandeira fala de cantar com paixão e força, o de Djavan canta a desesperança. E ao final, com os versos:

Mal começou Zé de Tonha,
Todos caíram vencidos:
Cantando suas vergonhas,
Foi ele o mais aplaudido.

Djavan inverte a lógica do desafio de repentistas: o grande vitorioso não é o que mais soube elogiar a si mesmo ou ridicularizar o oponente, e sim o que apresentou suas misérias ao público. Uma inversão nunca vista neste universo de improvisadores.

No entanto, Bandeira – e também Djavan – seguem na métrica o estilo mais usado no repente, a redondilha, verso de sete sílabas métricas. Mas que no improviso geralmente é dividido em sextilhas, ou estrofes de seis versos. Bandeira prefere não fazer nenhuma divisão de estrofes em seu poema, mas deixou algo implícita uma divisão de quatro em quatro, pela organização das frases, especialmente no início que Djavan aproveitou. E com isso Djavan então construiu estrofes de oito versos cada – ou quatro, se colocarmos os versos dois a dois em cada linha.

Todas estas liberdades tomadas com relação às regras muito estritas do repente mostram que Djavan não tinha interesse em emular-se um deles. Seu olhar, assim como o de Bandeira, é de fora, mesmo sendo ambos de origem nordestina – mas ambos nascidos em capitais, Recife e Maceió, respectivamente. Djavan aproveita algumas características vagas do canto daqueles que quer retratar, mas seu olhar está menos voltado para os cantos, e mais para quem está por trás deles: os homens e suas histórias. Assim, Djavan consegue inverter alguns efeitos comuns no fazer da canção. Se usualmente a ida de um verso a uma região aguda aumenta a tensão dramática, aqui acontece o contrário: quando a voz vai ao grave, beirando o sussurro em alguns momentos à maneira de João Gilberto, é que o drama se mostra mais vivo.

Na construção harmônica de Violeiros, outra vez o que temos é uma emulação parcial: o objetivo nunca é seguir as regras do estilo, e sim ambientar o ouvinte naquele universo apenas para que a vista ultrapasse o canto e se fixe no drama humano. Assim, o violão de cordas de aço de Torquato Mariano faz às vezes de viola na introdução, mas logo após o de Djavan assume a condução com acordes que aproveitam as cordas soltas, como numa viola. O acorde inicial é particularmente interessante por omitir a terça: não é possível dizer portanto se trata-se de um mi maior ou menor – mas a melodia, na maior parte das vezes, opta pela terça menor. Trata-se de uma sutileza que, em parecendo simplificar a harmonia aproximando-a da afinação de acompanhamento dos cantadores, na verdade a complexifica. Da mesma forma, os acordes seguintes aproveitam as cordas soltas do violão para introduzir dissonâncias (aqui lembrando o arranjo de Edu Lobo para a sua Viola fora de moda) que certamente não estariam na marcação dos improvisos.

Com tudo isso, Djavan vira o repente pelo avesso, e isso tanto em termos formais quanto literais: como que mostra o avesso do bordado, derrubando o cenário e mostrando um pouco da dura vida daqueles artistas. No caso de Otacílio, por exemplo, seu pai Raimundo Patriota saiu de um sertão dominado por coronéis (como no caso da Revolta de Princesa, que enfrentou o então governador João Pessoa – este acabou assassinado, gerando comoção nacional) e ainda sob a sombra do cangaço, percorrendo 350 quilômetros a pé com esposa e filhos pequenos (Otacílio tinha 10 anos) até Recife, onde passou a sustentar a numerosa família vendendo cuscus no centro da cidade. Otacílio e seus irmão, então tiveram direito a um ensino formal que não haveria no interior – Dimas tornou-se mais tarde professor universitário, sem deixar de ser cantador e o mais velho, Lourival, também foi repentista afamado.

Este é apenas um exemplo, vindo de alguns nomes que participaram do momento em que seus cantos alcançaram novos públicos. O momento de maior glória de Otacílio ainda viria: em 1982, Zé Ramalho musicou um martelo agalopado de autoria do violeiro, e Amelinha, na época sua esposa, gravou. Mulher nova, bonita e carinhosa faz o homem gemer sem sentir dor fez um sucesso estrondoso em todo o país, com sua letra que ia de Helena de Tróia a Maria Bonita, demonstração de erudição típica dos cantadores. Otacílio é então convidado para programas de televisão, mas fica pouco à vontade: é instado a cantar novamente versos já feitos e recusa-se, já que a alma do repente é o improviso e quem repete versos é malvisto pelos pares. Logo está de volta para casa e seu sossego.

A pequena saga de Otacílio, vencedor do concurso em 1959 que deu origem ao poema de Manuel Bandeira e à canção de Djavan, é muito particular. O que houve e ainda há são centenas e centenas de cantadores anônimos, e na verdade são estes que Djavan canta – Euclides, Joca de Carminha, Zé Jacinto, João Braúna, são todos nomes fictícios – mas neles se concentra uma multidão. Ao final da letra, Djavan chega a mudar o local da disputa (que na vida real aconteceu no Rio de Janeiro), cantando Cá no desvão do Nordeste / A vida não vale o nome. Mas, assim como Otacílio nos programas de TV, aqueles homens estavam e estão no Nordeste, onde quer que estejam. Djavan faz um anti-repente, grave em vez de agudo, trágico em vez de festivo, quebrando suas regras rígidas para que ouçamos as vozes por trás dos improvisos, o tormento no olhar – como ele diz no refrão – de quem canta e ri. Um repente invertido, que o ultrapassa e olha através dele para ver o que tem atrás – a vida.

Dois sambas sobre o fim do mundo

Dia 4 de julho deste ano (2023), o planeta Terra bateu o recorde de temperatura média – foi o dia mais quente da história considerada a medição global. O recorde batido era recente, na verdade do dia anterior, 3 de julho. O ano de 2023, antes mesmo de terminar, já é o mais quente em 125 mil anos, segundo pesquisadores do clima. A média do mês de outubro foi 0,85º acima da média do mesmo mês entre 1991 e 2020 e 0,4º acima de 2019.

As causas para isso remontam à Revolução Industrial, quando motores a explosão passaram e liberar uma quantidade crescente de calor, aliada o desmatamento e à poluição. Às emissões de carbono e criação do efeito estufa somou-se em 2023 os fenômenos do El Niño e da La Niña, de aquecimento ainda maior do Oceano Pacífico. Mas o fato é que o aquecimento global se tornou inegável até mesmo para muitos de seus detratores e negacionistas ao longo do ano.

Não é de hoje que ambientalistas e pesquisadores apontam para o que está acontecendo e alertam que podemos estar tomando um caminho sem volta. Porém, ainda antes deles, profecias e tradições religiosas listavam eventos de fim do mundo, em geral cataclismas violentos (muitos dos quais, se olharmos com atenção, podem estar acontecendo atualmente, apenas em câmera lenta), incluindo a tradição cristã. O último livro da Bíblia, o Apocalipse de João, é a descrição do Fim dos Tempos, em que a Terra é destruída para renascer, os ímpios são castigados e os justos recompensados.

Mas e o nosso tema canção? Ora, não faltam os que cantaram tanto a questão ecológica quanto a escatológica, às vezes simultaneamente, e não falo aqui das vertentes confessionais. Dois sambas da melhor cepa da música brasileira são dedicados a estes eventos, e até certo ponto um deles pode ser considerado um desenvolvimento do outro, tanto tematica quanto musicalmente. Vamos a eles.

Nelson Cavaquinho gravou seu clássico Juízo Final no álbum com seu próprio nome, em 1973. Dois anos depois, Clara Nunes o regravou em seu álbum Claridade.

A abertura de Juízo Final é uma das mais retumbantes da música brasileira e provavelmente universal. A carga de dramaticidade contida em suas duas primeiras palavras, duas primeiras notas e dois primeiros acordes é difícil de ser superada. O verso O Sol é cantado com um salto oitava acima, com a nota aguda estendida amplificando seu brilho e poder o máximo possível. E então, do acorde menor inicial da tonalidade, se passa bruscamente ao acorde do segundo tom bemol maior com sétima, totalmente fora da tonalidade – na verdade uma dominante substituta que, por sua vez, conduzirá à dominante natural do tom. Por exemplo, Am, Bb7, E7.

O surgimento deste segundo acorde é muito inesperado (e normalmente ainda é apresentado com uma convenção sincopada que o antecipa ligeiramente ao tempo forte). A dissonância apresentada de chofre, sem nenhuma preparação, dá ao ouvinte a sensação de algo terrível iminente, em consonância perfeita com a letra. Entretanto, não se trata apenas de um acorde fora da tonalidade ou uma dissonância comum. O efeito tremendo deste segundo acorde se deve ao fato de ele manter, em relação à dominante, o intervalo mais dissonante da música ocidental, a quarta aumentada.

O intervalo de quarta aumentada (ou trítono) foi chamado em tempos medievais de diabolus in musica e terminantemente proibido antes do estabelecimento definitivo da tonalidade como a conhecemos hoje. Não por causas religiosas, mas sonoras mesmo: Os comprimentos de onda de sons separados por este intervalo quase nunca coincidem, o que causa enorme estranheza ao ouvido. No caso de Juízo Final, um acorde “natural” para a condução harmônica teria como baixo a nota Si, nunca a de Si Bemol. O acorde de Bb, meio tom abaixo, é exatamente o mais dissonante possível em relação ao caminho esperado, já que todas as suas notas estão igualmente deslocadas. É como se um terremoto tivesse descarrilhado a harmonia logo de saída. É assim que Juízo Final se inicia, com um ovo de Colombo de efeito espetacular.

Nelson assume o discurso de um profeta do Antigo Testamento – ou do apóstolo João, autor do Apocalipse. O que não deixa de estar em consonância com sua obra. Nelson é um dos autores mais trágicos do cancioneiro nacional, ao lado de Lupicínio Rodrigues e Adoniran Barbosa, todos tratando em seus sambas da tragédia do cotidiano. Em Juízo Final, ele apenas amplia sua noção de um destino inexorável, de casos particulares para toda a existência. A letra de Juízo Final é sucinta, mantendo em sua segunda parte a grandiloquência nas notas agudas. Nela, poder-se-ia dizer, está resumida a Lei e os Profetas, e Nelson ainda se permite uma discreta menção a uma expressão usada por Jesus, aquele que tiver olhos de ver, veja nos versos finais quero ter olhos pra ver / a maldade desaparecer.

Passemos agora ao segundo samba sobre o Fim do Mundo: As Forças da Natureza, de João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro. Foi composto e gravado pouco depois de Juízo Final, mas guarda diferenças com ele. Porém, mais impressionantes que as diferenças são as semelhanças. Este foi gravado primeiro por Clara Nunes em 1977 e acabou dando nome ao álbum.

E João, por sua vez, o gravou no álbum Vida Boêmia, em 1978.

As Forças da Natureza é, na prática, um desenvolvimento do tema de Juízo Final. Porém, acrescentando uma perspectiva, digamos, proto-ecológica ao entrar em mais detalhes sobre os acontecimentos, num espírito que é tanto relacionado com o Apocalipse cristão quanto a descrição de uma revolta da natureza contra quem a maltratou tanto. Em relação ao livro bíblico, possível até mesmo traçar algumas correspondências de texto:

Uma chuva de prata do céu vai descer / E as estrelas do céu caíram sobre a terra como figos verdes caem da figueira quando sacudidos por um vento forte. (Ap. 6, 13)

Quando o Sol se derramar em toda a sua essência / O quarto anjo derramou a sua taça no sol, e foi dado poder ao sol para queimar os homens com fogo. (Ap. 17,8)

Assim como tematicamente, As Forças da Natureza também desenvolverá mais os temas harmônicos e melódicos do que o samba de Nelson. Para começar, tem uma forma mais extensa e muito diversa das tradicionais primeira e segunda partes. Ao contrário, pode ser dividido aproximadamente em três partes e uma coda, com poucas repetições melódicas, mesmo quando a harmonia é a mesma. E mesmo esta harmonia vai seguir caminhos e utilizar recursos mais próximos da harmonia funcional, sem quebras radicais como o segundo acorde de Juízo Final, mas se permitindo certas sutilezas como fazer o tom variar entre menor e seu relativo maior (Por exemplo, Lá menor e Dó maior), conseguindo com isso mudanças de clima que vão do mais introspectivo ao mais exaltado.

O músico e pesquisador Luís Filipe de Lima, em seu livro Para Ouvir o Samba, estabelece critérios cuidadosos para descrever cada um de seus subgêneros, do samba amaxixado ao samba-enredo, da Bossa-Nova (sim, está incluída) ao pagode romântico da década de 1990. Ele classifica ambos os sambas em pauta na categoria pós-MPB (capítulo 14.1), que engloba tanto a produção feita por sambistas que se apropriou de algumas conquistas formais da MPB quanto a de sambistas da velha guarda como Cartola e o próprio Nelson, que foram redescobertas e revalorizadas à luz dessas conquistas. Neste sentido, é fundamental perceber que uma eventual maior complexidade de uma das composições não significa absolutamente que haja algum tipo de superioridade estética. Na verdade, o uso das fórmulas tradicionais do samba e da MPB poderia, ao contrário servir para tornar a canção banal e medíocre… Por outro lado, ao colocar ambas lado a lado, por mais que estejam próximas em termos históricos (e efetivamente as separam poucos anos), fica evidente a diferença entre elas: Nelson faz um samba nos moldes da tradição (o que inclui quebrá-la genialmente quando lhe convém), do tipo que alimentou a MPB; João e Paulo César Pinheiro fazem um samba que por sua vez se alimenta da estilização formal da MPB. Há uma continuidade entre eles que não é apenas estética, mas também histórica.

E isto ficará evidente ao analisarmos As Forças da Natureza e notarmos agora as semelhanças entre ele e Juízo Final – semelhanças que são também diferenças na forma de percorrerem os mesmos caminhos. As Forças da Natureza também se inicia com uma referência ao Sol – e com um salto de oitava! As duas primeiras notas de ambas as canções são exatamente as mesmas. Porém, enquanto no samba de Nelson a segunda nota se estende causticante na palavra Sol, no de João o Sol só surge na terceira nota, que desce suavemente um tom: Quan-do_o Sol… Assim, o Sol tem sua potência matizada – ao menos inicialmente. Até pode-se dizer que o movimento melódico vai reforçar o efeito da palavra derramar, logo adiante, fazendo com o que a luz solar se propague de forma menos direta.

Mas há um detalhe mais difícil de detectar que une as duas composições, justamente o uso do trítono, o intervalo de quarta aumentada, o diabolus in musica, na cadência harmônica. Assim como Juízo Final, As Forças da Natureza também tem dois acordes encadeados com esta distância entre eles. Mas outra vez, assim como no caso da melodia inicial, este encadeamento acontece de uma forma mais suave, tendo seu impacto reduzido. Aqui, trata-se da passagem que acompanha o verso Desafiando o poder da ciência (e de novo no verso Levar consigo o pó dos nossos dias). O que ocorre é que, quando oscila entre os tons de lá menor e dó maior, há acordes comuns que servem para fazer a passagem entre eles. Mas há também acordes de empréstimo que são úteis. Assim, a sequência harmônica C / F7 / B7 / E7 / Am faz a passagem de uma tonalidade para outra, mas a distância entre o Fá e o Si é justamente a que causa estranhamento no ouvido (se o leitor não tem conhecimento de harmonia, basta ouvir a passagem para perceber do que falo).

Isso se dá porque na verdade o acorde de B7 não é de nenhuma das duas tonalidades, e sim um empréstimo – a dominante da dominante do tom menor. Mas sua presença aí torna a melodia muito mais interessante – a curva na palavra ciência e depois em os dias chama imediatamente a atenção do ouvido, porém sem causar o choque do início de Juízo Final. Trata-se do mesmo intervalo, com função similar, porém usado de forma lateral na sequência da harmonia, de modo a reduzir seu impacto e torn��-lo de um verdadeiro cataclisma, em uma coloração a mais, um diabolus domado afinal, ao menos in musica.

As Forças da Natureza reconta Juízo Final a seu modo, seguindo seus passos mas acrescentando em seu enredo uma visão do samba que já passara pela MPB – a mesma que escutava avidamente e reverenciava Nelson, assim como João Nogueira também fazia, é claro. Quando compostas e gravadas na década de 1970, a humanidade se considerava longe de qualquer consequência de suas ações destrutivas no planeta: aquecimento global, pandemias, elevação do nível do mar, tudo isso era matéria de ficção científica ou fanáticos religiosos. Hoje são realidade, e não dá para não pensar que Nelson Cavaquinho, João Nogueira e Paulo César Pinheiro avisaram. Para nosso consolo, seus sambas proféticos, ao final, descrevem um mundo onde o mal terá sido banido. Se Nelson não menciona a sobrevivência humana (ou o faz, sutilmente – ao menos a dele próprio), João e Paulo o fazem, relatando o desaparecimento das armas e dos homens de mal – possivelmente os que se denominam de bem. Só nos resta dizer amém.

A última faixa do último álbum dos Racionais

Pouco antes da virada do milênio, o rap lançou um repto à música popular brasileira. Desafiou-a a incluir em si as manifestações urbanas da periferia como fizera há décadas com as rurais, mas desta vez sem falar por elas, sem tomá-las e estilizá-las como a MPB clássica fez. Ou talvez seja mais apropriado dizer que o rap significou esta periferia desistindo de esperar por esta representação feita por outrem e tomando para si a tarefa de fazê-lo (se é que algum dia ela esperou por isso, desde a casa da Tia Ciata). Um terremoto que era tanto estético quanto ético – tanto na quebra radical da forma canção quanto na emersão do discurso do marginalizado pela sua própria voz, consubstanciado em seu exemplo máximo, o Diário de um Detento, de autoria de Mano Brown a partir dos escritos autobiográficos do presidiário Josemir Santos, o Jocemir. E no epicentro desta revolução, os Racionais MCs, com sua gigantesca carga de representatividade aliada a uma visão clara do que queriam: mostrar ao mundo a sua realidade, à sua maneira.

E então 15 anos se passaram, ou mais. E em 2014 os Racionais lançam seu último álbum (até o dia em que este artigo é escrito), Cores e Valores. E o mundo é outro, e o rap e a música brasileira são outros também. A sigla MPB faz cada vez menos sentido ou é aplicável a um nicho cada vez mais específico; a sintaxe do rap vai sendo assimilada aos poucos dentro do formato da canção, e vice-versa: aproximações do rap com o samba e outros estilos musicais se tornam frequentes.

Mas não só: as mudanças econômicas de um Brasil que sediava Olimpíada e Copa do Mundo enquanto distribuía renda e decolava na capa da revista The Economist também implicavam em mudanças no discurso da periferia. A linha de metrô chegara no Capão Redondo, comunidade de onde os Racionais se originaram. E paralelamente a isso, o sucesso chegou para muitos rappers, com apoio de gravadoras, dinheiro, possibilidade de se mudar para bairros com mais infraestrutura… tudo parecia ir numa nova direção. Mal sabíamos nós… os Racionais também não sabiam. Ao menos racionalmente, se me permitem o trocadilho. Mas sua música talvez já soubesse.

O álbum Cores e valores é um retrato acurado – não uma descrição objetiva – deste momento, e representa uma ruptura na ruptura que foi o rap, ou ao menos no que foi a obra dos Racionais até ali. E, para avaliar estas transformações, podemos partir justamente da mais marcante: Eles abandonam quase totalmente as narrativas lineares (pontuadas por máximas que se tornaram muitas vezes guias éticos para seu público) e de compreensão mais imediata (embora prenhes de segundas e terceiras possibilidades), em prol de um discurso muito mais difuso e que se distancia da espontaneidade típica do improviso. Não se trata de um aumento de elaboração, mas sim de levar esta elaboração num novo sentido.

E isto também se reflete numa enorme condensação deste discurso. Ao invés das faixas de mais de 10 minutos contando a saga pessoal de um habitante da periferia, muitas vezes sem nome, e que provocavam a identificação direta de seu público original (e o espanto e a admiração de outros e outros públicos), reflexões em sua maior parte indiretas, como que partindo do princípio de que o ouvinte, após todos estes anos, já sabe do que eles estão falando. Por outro lado, eles não estão falando das mesmas coisas, e sim dos novos dilemas que se apresentaram. Tudo isso fez com que a recepção ao álbum fosse menos entusiástica do que seria de esperar. Os Racionais se recusaram a apresentar mais do mesmo, e em vez disso dedicaram-se a um balanço sintético não apenas de sua trajetória, mas das perspectivas do rap e – por que não? do Brasil.

O pesquisador Acauam Oliveira, no excelente artigo em que aborda o álbum, defende que o álbum todo é, de algum modo, sobre a questão: o rap venceu. E agora? O discurso da periferia foi aceito (ou se impôs), o sucesso comercial veio para muitos, acompanhado de dinheiro, a possibilidade de sair da periferia, e também as contradições inerentes a esta condição, pois, como eles mesmos afirmam em Negro Drama, O dinheiro tira um homem da miséria, mas não pode arrancar de dentro dele a favela.

Acauam divide em quatro partes seus 32 minutos de duração: as quatro primeiras faixas são praticamente emendadas entre si, nenhuma delas com mais de um minuto e meio, com os versos Somos o que somos / cores e valores promovendo sua unificação ao ser repetido em todas como um leitmotif que se anuncia para o álbum inteiro; a segunda parte, iniciada com Eu te disse, passa das elucubrações apresentadas na primeira para situações mais concretas em que conflitos éticos são decisivos. Acauam analisa:

Nas canções dessa segunda parte, os rappers ora advertem, ora são advertidos por seus parceiros sobre aquilo que aprenderam a partir de um código de ética comum, fundamental para que a ascensão social não se converta em tragédia.

Particularmente, o contraste entre Eu compro e A escolha que eu fiz é simbólica: na primeira, a nova possibilidade de acesso a bens de consumo não impede que o racismo se manifeste; na segunda, fica claro que esta possibilidade vem para alguns escolhidos, enquanto para outros situação mudou pouco. Como lidar com esta disparidade sendo você o beneficiado? Como lidar com isto sendo você o porta-voz dos que não ascenderam com você? Como se manter ligado a suas origens e continuar pleiteando a ascensão da coletividade e não de apenas seus expoentes? Os Racionais expõem estes impasses sem medo de com isso se exporem também – e sem a pretensão de apresentarem respostas fáceis.

A terceira parte se inicia com A Praça e vai constituir uma revisão da história do grupo. Esta faixa se estrutura a partir de uma colagem de noticiários sobre a confusão em um show na Praça da Sé em 2007, em que os Racionais foram acusados de incitar e violência e a polícia cumpriu seu papel tradicional de promover a violência. Em seguida, Mano Brown e Edy Rock rememoram os momentos em que os Racionais se formavam e eles próprios tinham suas formações, entre as décadas de 1980 e 90. Particularmente, Brown acrescenta uma dose de ironia em suas lembranças, de duas formas: no próprio título/refrão Quanto vale o show (que na faixa é sampleado da fala do apresentador Silvio Santos), tornando por tabela os Racionais em uma espécie de calouros de programa de auditório e retratando a mercantilização da música ao mesmo tempo em que conta como chegou a ela; e a base sonora, por sua vez sampleada da trilha sonora do filme Rocky, um lutador, num crescente empolgante que conduziria a um final apoteótico de vencedor; e no entanto, os versos finais, num terrível contraste, são:

Corpo negro semi-nu encontrado no lixão em São Paulo
A última a abolir a escravidão
Dezembro sangrento, SP, mundo cão promete
Nuvens e valas, chuvas de balas em ’87

Com efeito devastador.

E finalmente, chegamos à última parte, formada por Coração Barrabaz e a faixa final, Eu te proponho. E nestas faixas, os Racionais fazem algo inédito em sua carreira, que é tratar do tema amoroso. A primeira, um processo dolorido de separação (como quase todos); a segunda, algo mais complexo.

Eu te proponho é, simultaneamente, uma canção de amor e um resumo do álbum Cores e Valores, da dicotomia essencial do álbum: é possível ser feliz? Não se trata de uma pergunta genérica, mas aplicada às circunstâncias descritas até aqui, pessoais, coletivas, políticas, econômicas, éticas, estéticas. Eu te proponho é a descrição de uma promessa de felicidade – uso propositalmente a expressão escolhida por Lorenzo Mammi para se referir à Bossa-Nova e o projeto de país inerente a ela – que parece se apresentar novamente, e o temor fundado de que esta se mostre uma farsa e seja novamente frustrada.

Eu te proponho é uma música fraturada. Traz duas partes bastante distintas: a primeira tem como base o sampler de Liquid Love do vibrafonista e arranjador de jazz e funk Roy Avers.

Sobre esta base, Mano desfila inúmeras citações de canções clássicas da música brasileira, guiado pelo refrão Vamos fugir desse lugar, baby, emprestado do reaggae de Gilberto Gil de 1984. Além deste, o título da canção traz a lembrança de Proposta, de Roberto e Erasmo Carlos, de seu álbum de 1973 – logo adiante, Brown também citará Além do Horizonte, do de 1975. E mais Na sombra de uma árvore, de Hyldon (o verso Larga de ser boba e vem, que Brown termina com o verbo ver e Hyldon com a palavra comigo), de 1975; Fullgás, de Marina e Antônio Cícero, de 1984; duas de Cazuza: Exagerado, de seu primeiro álbum solo em 1985, e Pro dia nascer feliz, dele com Frejat, do segundo álbum do Barão Vermelho, de 1983. E ainda o verso consagrado do Soneto de Fidelidade, de Vinícius de Morais (eterno enquanto dure).

Esta profusão de menções a canções não é algo trivial – ao contrário, é bastante incomum na obra dos Racionais. Para se ter uma ideia, neste álbum, antes destas há apenas outras três citações do tipo, ambas em canções da segunda metade: Em Quanto vale o show, Brown cita Esquinas, de Djavan (mencionado na letra logo depois: Só eu sei os desertos que eu cruzei), e o verso Malandro é malandro mesmo ressoa Bezerra da Silva, também mencionado logo depois. E em Coração Barrabaz o citado é Lupicinio Rodrigues, de forma impressionante: Esses pobres monstros (em vez de moços), se soubessem o que eu sei. Diante de tudo o que se vê na última faixa, estas citações soam quase como uma preparação. Assim como pode-se dizer que todo o álbum Cores e valores consiste numa preparação para, em seu encerramento, tratar da relação homem/mulher como algo positivo, como nota Acauam Oliveira:

Pela primeira vez em um disco dos Racionais o amor entre homem e mulher aparece explicitamente como lugar de confiança, e não de traição – certamente em decorrência do avanço das conquistas das mulheres por um espaço cada vez maior na cena. A ambiguidade e a incerteza do corpo feminino, antes representado como o lugar de perigo extremo a ser controlado – o espaço inominável do desejo – aparece enquanto aposta positiva (pela primeira vez surgem versos como “Eu acredito em ti”, referindo-se a uma mulher). Pode-se dizer que esse estado de fruição que libera o sujeito do estado de vigilância constante é um dado novo no conjunto da obra dos Racionais.

E aqui coaduna-se a retomada da temática amorosa, a mais básica da canção popular desde os trovadores medievais, com as alusões a tantas canções daquele que foi o corpo principal na nossa música popular – tanto da chamada MPB da década de 1970 quanto do repertório pop/rock dos anos 1980. Sem dúvida as escolhas de Brown se dão por rememoração da juventude, e aí temos a ligação de Eu te proponho com as imediatamente anteriores do álbum. Mas, mais que tudo, todas as citações desta primeira parte têm uma temática em comum: a busca de felicidade, o idílio, a criação de uma alternativa a uma realidade excruciante, de um lugar onde seja possível um homem e uma mulher se amarem integralmente e viverem. A velha promessa de felicidade: abre seus braços e a gente faz um país.

Porém, ai, porém, idílio é cortado, o coito interrompido. Abruptamente, aos dois minutos e três segundos, a base sensual e funkeada é substituída pelo sample do muito mais soturno Nautilus, do tecladista Bob James.

A partir daí, o tom do discurso muda, tornando-se carregado de tensão, como que desenvolvendo os versos da primeira parte E se moiar? / E se o juri ter provas contra nós? O que era a ida a um lugar de repouso e paz ganha contornos de uma perseguição policial (Você no toque e eu com a Glock na mão, já era ou Os Federais dão um zoom na 381 verá): o mundo cão está logo ali, no encalço. Não, a conciliação não é possível. Ainda há uma citação nesta segunda parte, mas de natureza diversa: são os versos de Marvin Gaye There ain’t no mountain high enough / Ain’t no valley low enough traduzidos: Não há morro tão alto, vale tão fundo. Não mais a relação com o corpo principal da música brasileira, mas o retorno a referências da música negra mundial.

Eu te proponho é uma espécie de corolário de Cores e Valores ao resumir em si as contradições da ascensão e consolidação do rap, mas também das mudanças experimentadas pelo Brasil neste período, em que mudanças econômicas não impediram desigualdades e injustiças. Em que as realizações de um período (os governos do PT, Lula em particular) chegaram a dar a impressão de que o país do futuro se tornaria o país do presente. E que parece pressentir o que viria, ou perceber as inconsistências deste cenário. Já em 2018, no último comício da campanha de Fernando Haddad para presidente, Brown fez um discurso duro, que chegou a ser vaiado por antever a possibilidade de derrota – que efetivamente veio. A fala de Brown aponta a insuficiência do que foi feito e a perspectiva do desastre:

Se não está conseguindo falar a língua do povo vai perder mesmo. Falar bem do PT para a torcida do PT é fácil. Tem uma multidão que não está aqui que deveria ser conquistada. (…) O partido do povo tem que entender o que o povo quer. Se não sabe, volta para a base e vai procurar saber.

Se Cores e valores é o retrato de um projeto de país prestes a se esboroar mais uma vez, Eu te proponho reconta esta história sinteticamente. E, por sua vez, o sampler escolhido para encerrar a a canção e o álbum faz a síntese da síntese. Falo de Castiçal, do seu primeiro álbum, de 1973, Apresentamos nosso Cassiano.

Cassiano, o grande mestre do soul brasileiro, na época ainda vivo mas quase esquecido – faleceu em 2021 – é uma escolha novamente muito diversa da feitas na primeira parte da música, uma escolha do mesmo naipe da de Jorge da Capadócia, de Jorge Ben, para abrir o álbum Sobrevivendo no Inferno. Castiçal é uma canção de amor prolixa e de discurso algo desconexo, sofrida mas indubitavelmente otimista. Cassiano canta os versos da primeira estrofe de sua canção:

Algo me diz que amanhã a coisa irá mudar
Só mesmo um grande amor nos faz ter capa-

E então é interrompido no meio de uma palavra, bruscamente, como brusco foi o corte no meio de Eu te proponho. A interrupção é violenta, a previsão de mudança não se concretiza.

Este é o anticlimático e algo desconcertante fim de Cores e valores. E então pode-se compreender melhor a recepção modesta que teve, haja vista a enorme expectativa quanto a seu lançamento. A mensagem do álbum é indigesta: rompe com a fórmula estética dos álbuns anteriores, sem por isso aderir claramente a outra fórmula; percebe as mudanças gigantescas pelo que o país passou, mas sem aderir cegamente a elas, antes enxergando com clareza seus limites e contradições; e finalmente, com a clarividência que as obras de arte antenadas com seu tempo têm, antecipa-se à tempestade que se avizinhava ao mesmo tempo refletindo sobre o papel do rap em tudo isso – nas palavras de Acauam, sobre o que se perdeu e ganhou pelo caminho. E sobre o muito que ainda havia para ganhar e perder. Em 2014, mas também hoje.

O voo da mosca de Luís Capucho

Há muitos anos os engenheiros aeroespaciais estudam as moscas domésticas. O voo aparentemente descontrolado mas incrivelmente preciso delas, capaz de se desviar de obstáculos com extrema agilidade (experimente atingir uma no ar) se deve a um órgão chamado balancim, que os engenheiros tentam reproduzir em aviões, dois pequenos bastões embaixo das asas que se movimentam de forma a contrabalançar forças externas como rajadas de vento e aumentar o equilíbrio nas curvas. Com eles, o voo da mosca traça com perfeita segurança linhas sinuosas as mais imprevisíveis.

Guardemos esta informação e passemos ao tema da canção. O compositor e pesquisador Luiz Tatit é defensor da tese de que a melodia da canção popular se origina das variações naturais da fala, estilizadas em notas musicais, e que uma canção será tão mais bem sucedida artisticamente quanto mais conseguir conciliar esta origem na fala com a estruturação formal estrófica. Tatit demonstra sua tese tanto em termos teóricos, organizando um método de análise melódica e aplicando-o a numerosas peças do nosso cancioneiro, quanto práticos, em seu trabalho de compositor desde o Grupo Rumo, caracterizado por estar sempre no limiar entre canto e fala, sem que suas canções deixem de ter refrões e repetições.

Guardemos mais esta informação para nos aproximarmos do tema deste artigo, Luís Capucho. Para isso, torna-se indispensável uma curta informação biográfica. Capucho despontou junto a uma turma de músicos cariocas na década de 1990, como Pedro Luis, Mathilda Kovak, Arícia Mess e Suely Mesquita. Porém, antes mesmo de gravar seu primeiro álbum, Luís teve um sério problema de saúde. Esteve em coma devido a uma neurotoxoplasmose e, ao se recuperar, permaneceu com dificuldades motoras que afetaram tanto seus movimentos quanto sua fala. Capucho foi obrigado a reinventar sua forma de tocar o violão que lhe acompanhava e também seu canto.

E guardemos esta última informação para enfim tratarmos do tema real deste artigo, a música de Luís Capucho e seu formato cancional muito particular. As canções de Capucho não seguem à risca a teoria (e prática) de Tatit, antes se relacionam com a voz falada de uma outra forma igualmente forte, mas talvez mais sutil. Se Tatit pensa na relação fala/melodia fonema a fonema, com as variações naturais da voz se desdobrando nas notas, Capucho faz esta passagem de forma mais ampla, com curvas mais suaves, no desenvolvimento das frases e articulações ente elas. Se em Tatit (e na canção tradicional que ele analisa) a irregularidades da fala se convertem em curvas regulares na melodia, em Capucho a regularidade é a do voo da mosca, inesperada, imprevisível, mas equilibrada por um sistema de contrapesos internos invisível ao ouvinte. A forma melódica de Capucho não acompanha a voz, mas o divagar.

Como resultado, as canções de Capucho mal têm repetições de melodia – que dirá refrões. Têm, sim, motivos melódicos – um motivo é uma sequência de poucas notas, três, quatro, a ser desenvolvida (o exemplo mais famoso provavelmente são as quatro notas iniciais da Quinta Sinfonia de Beethoven), diferentemente de um tema composto por mais notas e mais desenvolvido (e frequentemente contendo um ou mais motivos em si). Capucho usa motivos diversos em suas canções, o que dá a elas suas faces particulares, mas dificilmente encontraremos nelas estrofes com a mesma melodia e letras diferentes, assim como numa conversa não se usa a mesma entonação para dizer coisas diferentes. A melodia de Capucho desenvolve o assunto tanto quanto a letra, com a reiteração mínima necessária.

Praticamente todas as composições do Capucho poderiam servir de exemplo aqui. Tomemos a que possivelmente é a mais conhecida de sua autoria, Maluca. Ela foi gravada em 2003 em seu primeiro álbum, Lua Singela. Entretanto, alguns anos depois Capucho lançou o álbum Antigo, que é o registro de um show feito em 1995 no Café Laranjeiras, no Rio de Janeiro, ainda antes de suas questões de saúde. Neste caso, comecemos por este.

E na escuta se percebe um outro procedimento que, além da melodia sem repetição, dá às canções de Capucho esta feição irregular da fala: a quebra da quadratura de compassos.

Explico. Embora o tempo musical possa ter diversas contagens – de dois em dois, três em três, quatro, e mesmo compassos compostos como de três tempos repetidos, ou os chamados irregulares como de cinco ou sete tempos, a contagem de compassos é surpreendentemente mais rígida, especialmente na canção popular. Uma frase musical será composta com enorme frequência por um número par ou, mais precisamente, por quatro compassos ou um múltiplo dele. Uma estrofe terá oito ou dezesseis compassos, e assim por diante, e portanto toda a composição será dividida nestes subgrupos, cada um com sua própria sensação de completude. O desenvolvimento harmônico-melódico se dá dentro desta perspectiva, obedecendo a esta estrutura de quatro em quatro que seguimos quase instintivamente na escuta, acostumados que estamos com séculos desta regragem.

Ocorre que a língua falada não se importa nem um pouco com os múltiplos de quatro. E, se a canção tradicional, ao fazer a passagem da fala para o canto a cada som, faz também sua transposição para os ciclos de quatro, Capucho por sua vez, ao fazer esta passagem pela via do discurso, se permite quebrar a quadratura inúmeras vezes. Não se trata de compassos compostos ou de tamanhos diferentes (às vezes também, mas não é o recurso principal). Em vez disso, seu ciclo de discurso, que seria correspondente a uma estrofe, poderá ter três, cinco, sete compassos, à vontade, conforme seja necessário para completar a sentença e a ideia. Isto dará a suas composições feições irregulares, tornando-as mesmo desafiadoras para cantores e acompanhantes, que precisam procurar ou mesmo criar alguma regularidade para poder interpretá-las.

Foi isso que fez Cassia Eller ao incluir Maluca no repertório de seu álbum Com você.. meu mundo estaria completo, em 1999.

Cassia, para sua versão, baseou-se na gravação da apresentação de Capucho em uma fita cassete que lhe chegou às mãos. É nítido o seu empenho em explicitar em Maluca uma forma próxima da tradição cancional, ainda que Cassia fosse uma intérprete pouco afeita a convenções – ou não teria escolhido esta canção. As pausas entre as frases se tornam mais regulares que na voz de Capucho, assim como as divisões rítmicas da voz são mais marcadas. Além disso, Cassia torna o encerramento da música em uma espécie de refrão, mesmo que iniciado a partir da repetição do fim de uma frase. O verso começa com Era grande o barulho da chuva, e em seguida:

…da chuva
Eu fiquei maluca
Eu fiquei maluca

A repetição deste trecho, que Capucho não fizera, cria um ciclo de 16 tempos que se repete para encerrar a canção. Com isto, e também com as diferenças sutis de tratamento vocal da melodia, Cassia consegue tornar a escuta de Maluca mais familiar ao ouvinte, sem deixar de lado suas características essenciais. Ademais, ela segue o sentido interpretativo suave de Capucho e que é também o tom geral do álbum Com você…, em que ela surpreendeu o público trocando sua performance rascante e mesmo gritada de roqueira por interpretações mais tranquilas – e um repertório adequado à mudança.

E só em 2003, Capucho apresenta sua versão da música (uma vez que o álbum Antigo foi lançado mais tarde).

No álbum Poema Maldito, de 2014, antes de cantar a canção Formigueiro, Capucho diz:

Essa é uma música que eu fiz muito antigamente. Então cantar essas músicas que eu fiz muito antigamente com essa voz de agora é muito estranho para mim. Mas eu quis fazer isso.

Na comparação com a versão de 1995 de Maluca, é possível perceber algumas das adaptações que Capucho foi obrigado a fazer em seu estilo de tocar tanto quanto em sua voz. Esta se tornou mais gutural. As dificuldades de coordenação o levaram a trocar o dedilhado pelo rasgueio na mão direita, e passou a ser necessário um esforço para pronunciar as palavras de forma inteligível. Isto não deixa de transparecer na interpretação, mas, curiosamente, não a prejudica. É claro, tudo se afasta do padrão de beleza e suavidade, mas ao mesmo tempo acrescenta como que um colorido novo à canção. Por outro lado, tanto a mudança vocal quanto o ritmo mais marcado no violão passam a contrastar mais fortemente com a fluidez estrutural da composição, e Capucho adota a repetição dos últimos versos feita por Cassia, com a volta da quadratura.

No comentário que faz ao álbum Lua Singela em sua página, Luís Capucho diz:

De meu ponto de vista, tudo continua delicado e tradicional, mas porque, com os dois ou três acordes que “espanco” no violão e com minha voz meio de lava com que faço a melodia, ficou a ideia de um Luís Capucho grunge, underground, maldito e tudo. Mas repito que sou um bom rapaz e continuo a fazer MPB.

Depois de toda a análise feita acima, afirmar que o que Capucho faz está na tradição da MPB se torna um pouco mais difícil. Mas isto não significa que também não traga nela algo do gesto cancional desenvolvido por tantos anos. Assim, ao enumerar os lugares onde distribui os botões de rosa, a divisão rítmica de Maluca se acelera em notas de tessitura média, caracterizando a ação repetida pela repetição de notas próximas. E ao final da frase, o verso Da chuva se lança para o ponto mais agudo da canção, passando da figurativização para a passionalidade em notas estendidas. E funciona: a sucessão rápida entre estas duas funções semióticas pega o ouvinte de surpresa (ainda mais com a quebra de quadratura da estrofe) e traz a emoção à tona. Quase é possível enxergar o eu lírico da canção girando na chuva entre botões de rosa, a própria imagem da felicidade.

A música de Luís Capucho tem um nível enorme de originalidade, tanto em termos estruturais, como tratamos, quanto pelo tratamento dado a temas aparentemente banais como o de Maluca – a passagem de um caminhão levando flores – ou o de Atitudes Burras – a descrição de pessoas numa sala de espera – ou Antigamente – o ato de pedir um cigarro a um desconhecido na rua. Em todas, Capucho consegue que destes pequenos acontecimentos extraia-se algo que os transcende – ou no dizer de outro compositor pouco convencional, o paulista Maurício Pereira, que uma banalidade gere uma canção gigante. Luís Capucho compartilha a deriva de seu pensamento em uma dicção própria e refinada, uma poética crua e delicada. Um voo de mosca que, antieuclidianamente, ultrapassa o espaço.

O Sobre a Canção está no IMMuB

Amigos, aviso e comunico que tornei-me colunista do Instituto Memória Musical Brasileira, e passarei a publicar todo mês por lá a análise de um artista, um álbum, uma canção nova ou antiga, para ser ouvida com ouvidos novos. Ou seja, basicamente o que eu venho fazendo por aqui há anos, mas agora num site respeitável e para um novo público que, espero, inclua o antigo…

Os artigos serão republicados aqui três meses depois de lá, para manter o blog atualizado com todos os meus escritos. Mas evidentemente, ninguém precisa esperar três meses. Aqui você encontra todos os artigos publicados lá. E além disso, estão todos convidados a conhecer o ótimo acervo do IMMuB e os demais conteúdos veiculados por ele. Abraços e vamos nessa.

O círculo do tempo e do sentido

De todos os subgrupos e subclassificações criados dentro da MPB ao longo da segunda metade do século XX, nenhuma faz menos sentido ou é mais arbitrária que a dos Malditos. Um grupo de compositores e cantores unidos por nada além da dificuldade das gravadoras – não deles – em enquadrá-los como produto e vendê-los. Trabalhos fora do padrão de consumo médio, mas sem outras características em comum, nomes tão diversos quanto Jorge Mautner, Luiz Melodia, Jards Macalé, Sérgio Sampaio, Ednardo, e mais Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé e Walter Franco. E no entanto, obras investigativas que influenciaram direta ou indiretamente muitos dos compositores e músicos com mais popularidade que eles.

O caso de Walter é exemplar. Depois de uma aparição surpreendente no VII Festival Internacional da Canção da Rede Globo, em 1972, com a canção Cabeça, ele assinou contrato com a gravadora Continental, com produção de Walter Silva e Rogério Duprat. Cabeça é uma espécie de poema concreto tridimensional e sonoro, estabelecendo uma polifonia de vozes sobre o verso O que é que tem nessa cabeça saiba que ela pode explodir irmão / ou não. Segundo o depoimento de Duprat, integrante do júri do festival, havia a tendência de dar o primeiro prêmio a Walter, apesar das reações negativas do público. Mas uma entrevista de Nara Leão, também jurada, criticando o regime militar, provocou a dissolução do júri e sua substituição por outros integrantes que deram o prêmio à mais palatável (embora também genial) Fio Maravilha, de Jorge Ben.

Certo é que Walter grava seu primeiro álbum, Ou não, em 1973, seguindo a cartilha arrojada que o levara até ali. E, entre 11 faixas, além de Cabeça, grava também Me deixe mudo. Mas um momento: para fins deste artigo, será mais útil conhecer Me deixe mudo em outra gravação do Walter, feita já em 1980.

A gravação de Me deixe mudo para o álbum Vela Aberta é num formato, digamos, convencional e quase dançante, e nos serve aqui para apresentar a forma primordial da canção, bastante simples: duas estrofes de oito versos cada e organizados dois a dois, harmonia com apenas três acordes. No entanto, a letra enigmática, cheia de imperativos negativos, se presta a algumas interpretações. Nela, menos é mais.

Não me pergunte
Não me responda
Não me procure
E não se esconda
Não diga nada
Saiba de tudo
Fique calada
Me deixe mudo

Seja no canto
Seja no centro
Fique por fora
Fique por dentro
Seja o avesso
Seja metade
Se for começo
Fique à vontade

Walter era um estudioso do Tao. O Tao Te Ching, ou Livro do Caminho e da Virtude, é um dos pilares do pensamento oriental, influenciando decisivamente tanto o surgimento do Taoismo quanto do Zen, e, entre seus ensinamentos, dois temas se repetem: o cíclico e o vazio. Me deixe mudo, como muitas outras canções de Walter Franco, está impregnada destes dois temas. Os pares de versos com opostos (às vezes inesperados, como avesso/metade) ressoam a noção de yin/yang, em especial na segunda parte, e, na primeira, a oposição ocorre entre o que se diz e o que se sabe. Não diga nada / Saiba de tudo é a oposição que será a chave mestra de sentido aqui: a compreensão se dá para além da linguagem.

Aliás, a segunda parte, já sem as negativas, permite uma dupla leitura: os três primeiros pares de versos, lidos a partir da chave condicional do penúltimo verso, podem não ser os imperativos que aparentam ser, e sim alternativas: neste caso, tanto faz ser no canto ou no centro, ficar por fora ou por dentro. Uma sutil mudança de sentido, passando da ordem específica à liberdade de escolha (e encerrada pelo verso fique à vontade). Outra vez uma oposição yin/yang, agora ente as estrofes.

Porém, a gravação convencional feita em 1980 acrescenta pouco em sentido ao que é cantado. Já a interpretação dada em 1973, no álbum Ou não, une forma e conteúdo radicalmente.

Me deixe mudo, nesta primeira versão, literalmente surge a partir do silêncio. (P.S. O Rafael Mori, que fez o excelente 365 Canções Brasileiras, me corrigiu trazendo a real primeira versão da canção, num compacto de 1972. Está no comentário abaixo do artigo, valeu, Rafael.) O poeta concreto Augusto de Campos a classificou (e também a Cabeça) como a explosão da letra em estilhaços de poesia e a sua implosão nos ocos do silêncio. E considerou especificamente Me deixe mudo como a canção com maior registro de silêncio já feita no Brasil. Tanto o canto de Walter quanto os violões e baixo de acompanhamento e uma percussão pontual surgem aos poucos, entrecortados em toques avulsos de cordas, fonemas soltos – que no entanto seguem rigorosamente a letra e a harmonia da música, porém são apresentados de tal forma isolados que o ouvido a princípio não consegue fazer a gestalt de uma estrutura.

Entretanto, gradativamente, os trechos tocados/cantados se tornam mais numerosos e extensos, as junções entre eles começam a se fazer ouvir, e a canção então se organiza ao longo de quase sete minutos, apresentando-se inteira por algumas vezes. E então, no seu minuto final, faz seu caminho inverso, tornando a se esvanecer devagar, sem perder sua estrutura, mas com o desaparecimento gradual de suas partes, de volta ao silêncio primordial.

O ótimo artigo O Silêncio em espirais: Walter Franco, do pesquisador Sílvio Stessuk, faz uma análise de Me deixe mudo que foi um dos subsídios para esta, e nele Sílvio destaca algumas passagens do Tao Te Ching. Vejamos esta, sua parte 11, na tradução um tanto literal utilizada por ele:

Trinta raios convergentes no centro
Tem uma roda,
Mas somente os vácuos entre os raios
É que facultam o seu movimento.

O oleiro faz um vaso, manipulando a argila,
Mas é o oco do vaso que lhe dá utilidade.

Paredes são massas com portas e janelas,
Mas somente o vácuo entre as massas
Lhes dá utilidade.

Assim são as coisas físicas,
Que parecem ser o principal,
Mas o seu valor está no metafísico.

Ou, numa tradução menos direta de que gosto mais:

Trinta raios convergem ao vazio do centro da roda
Através dessa não-existência
Existe a utilidade do veículo

A argila é trabalhada na forma de vasos
Através da não-existência
Existe a utilidade do objeto

Portas e janelas são abertas na construção da casa
Através da não-existência
Existe a utilidade da casa

Assim, da existência vem o valor
E da não-existência, a utilidade

O sentido de Me deixe mudo está nos espaços vazios entre seus sons. Walter desenha sua canção emergindo do silêncio e a ele retornando, articulando-se a partir do caos primordial e a ele retornando. Como a linguagem emerge do pensamento e a ele retorna.

Então, em 1974, Chico Buarque gravou um álbum em que cantava apenas outros compositores, Sinal Fechado. Na verdade, cantava uma de seu alter ego Julinho de Adelaide, criado para escapar à censura, e contribuíra com alguns versos para Lígia, de Tom Jobim, mas pediu para não ser incluído como autor para poder gravá-la neste álbum. Mas o que importa aqui é que Chico deu sua versão para Me deixe mudo.

Não faria sentido que a regravação de Chico repetisse a forma muito particular encontrada por Walter para apresentar Me deixe mudo. Por outro lado, a apresentação formal de Walter, até por seu radicalismo, parece insuperável. Como apresentar a canção de uma forma mais convencional, porém sem perder (ou não perder muito) do extremo alinhamento conseguido por Walter entre a canção e sua interpretação? Chico encontra uma forma simples e eficaz: o fade.

O fade (seja in ou out) é o recurs usado em gravações de estúdio que aumenta, ou mais frequentemente diminui gradualmente o volume da gravação, em geral num instrumental ou na repetição de um refrão, de modo que ela não tenha um término exato, com um acorde final, e sim vá se evolando aos poucos. É muito comum em gravações comerciais, inclusive as de Chico. A novidade aqui não é o fade-out, encerrando a canção, e sim o fade-in. Com ele, a canção emerge do silêncio tanto quanto no caso de Walter, mas não pela articulação progressiva dos fonemas e notas, e sim pelo aumento gradativo do volume. É um ovo de Colombo que permite a manutenção da densidade poética e formal, mas de uma maneira muito mais palatável para o ouvinte comum – como que a transposição do procedimento formal de Walter, da interpretação orgânica para o efeito técnico, do homem para a máquina.

Mas espere. Há uma diferença crucial entre a gravação de Chico e a de Walter, uma diferença insuspeita. Chico – assim como Walter em 1980 – canta a letra de Me deixe mudo em perfeita conformidade com a melodia: o primeiro verso na primeira frase melódica, o segundo com a segunda, e assim por diante. E não deveria ser assim?

Pois não é assim que Walter canta em Ou não. Walter desloca o primeiro verso e começa pelo segundo – mas com a primeira frase melódica. E assim canta com o deslocamento da letra até a última melodia, que é cantada com o primeiro verso, e emenda no reinício do processo. Na gravação de Walter, Me deixe mudo nunca tem fim, porque, quando o último verso é cantado, ainda falta encerrar a melodia, e quando a melodia é encerrada, a letra já se reiniciou. Este descompasso – e poucas vezes esta palavra foi aplicada tão a propósito – força a canção a recomeçar, recomeçar, recomeçar, girar sobre si mesma. E a canção se alinha ao outro ensinamento do Tao, a natureza cíclica de tudo. Ao desalinhar letra e melodia, Walter aumenta o poder simbólico da interpretação e reforça a impressão dada pelo início e fim da gravação: é como se Me deixe mudo soasse continuamente no silêncio e, por um breve tempo, se fizesse audível

Chico não canta a canção assim. Não tenho informação de como ele soube que o alinhamento de letra e melodia de Me deixe mudo era diferente da gravação. Possivelmente pelo próprio Walter. Certo é que ele decide não seguir a forma da gravação existente e prefere cantar letra e melodia pari passu, como Walter cantará também em sua segunda gravação.

Mas isso não significa que esta possibilidade tenha passado em branco por Chico. Pois no ano seguinte, 1976, em seu álbum Meus caros amigos, Chico surge com o samba Corrente.

Corrente é um samba metalinguístico, feito para comentar o estado atual do samba (e de resto tem um teor político que permeia quase toda a obra do Chico nesta época). Porém, com uma característica muito particular em sua estrutura formal. A grande letra de Chico é composta por 16 versos alinhados dois a dois, e é cantada duas vezes: na primeira, perfeitamente alinhada com a melodia; e na segunda, com o deslocamento de um verso!

Porém, o objetivo de Chico ao promover este deslocamento é muito diferente do de Walter. Ao contrário dele, Chico não pretende estabelecer a sensação de continuidade e provocar a repetição da canção. O que ele faz, com o realinhamento dos versos, é provocar uma inversão de sentido: o verso que era cantado acompanhando o anterior passa a ser cantado acompanhado do seguinte, e na nova junção, tem seu sentido passado de uma conotação positiva para negativa. Fácil perceber isso comparando os quatro versos finais em cada passagem:

Tem mais é que ser bem cara de tacho
Não ver a multidão sambar contente

Isso me deixa triste e cabisbaixo
Por isso eu fiz um samba bem pra frente

Que se torna, com o deslocamento do verso superior para se tornar o último:

Não ver a multidão sambar contente
Isso me deixa triste e cabisbaixo

Por isso eu fiz um samba bem pra frente
Dizendo realmente o que é que eu acho

Assim, o que era a constatação de que o samba está bem melhorado se torna o lamento pelo fato de a multidão não sambar contente – e aqui segue a crítica política embutida com sutileza suficiente para não ser notada pelo panóptico da ditadura. O estratagema formal de Chico se torna ainda um pouco mais intrincado pelo fato de o primeiro verso da letra ser similar ao último, e por isso quando ocorre a repetição com deslocamento, é mais difícil ao ouvinte perceber de primeira o que aconteceu. A confusão se completa na terceira repetição, em que as duas versões da letra são cantadas sobrepostas. Depois de afirmar e negar, Chico embaralha novamente as cartas, e ouça quem tiver ouvidos de ouvir.

Afirmar que Chico Buarque inspirou-se na gravação de Walter Franco para Me deixe mudo na composição de Corrente é algo a que este artigo não se atreve. Ele limita-se a assinalar as relações formais entre estas gravações separadas por apenas três anos e relacionadas ente si pela versão de Chico para Me deixe mudo. As conclusões deixo para o leitor, e como dizia um outro bardo, o resto é silêncio.

Vai ver, não entendemos mesmo os mitos ou Ceci n’est pas un multivers

Imagine um mundo em que todas as coisas só pudessem ser medidas em unidades exatas, sem decimais, sem extensões intermediárias. Em que uma distância pudesse ser de um metro ou dois, mas nunca um e meio; ou mesmo dez ou vinte centímetros, mas nunca 13, 15 ou 18. Em que sequer a possibilidade de um objeto com estas dimensões fosse aventada. Conseguiu? Seria um universo estranho, talvez parecido com o jogo Minecraft. Algo impensável ou inadmissível, que reduziria tudo a uma enorme pobreza de possibilidades, correto?

Pois isto ocorre em uma outra instância da vida, que não é a das dimensões físicas, mas a musical. Virtualmente toda a música consumida pela enorme maioria da população ocidental, em especial a música popular, foi criada segundo o pensamento acima, ou seja, segundo uma divisão específica do som que muito raramente é desafiada. A escala de doze notas da música ocidental tornou-se o padrão devido a um processo histórico que vai desde a Grécia antiga, passando pelos cantos gregorianos medievais, e se consolida com Bach e seus contemporâneos. Não é uma escolha sem razão de ser, calcada nos harmônicos gerados pela emissão das notas, ressonâncias com base matemática que aprendemos a considerar agradáveis ao ouvido. Mas o continuum das alturas musicais admite outras possibilidades. E se, em vez de doze, forem treze as divisões da distância chamada oitava, que vai de dó a dó? E se forem 15 notas? A distância entre elas diminuirá, os intervalos serão outros, os acordes… compositores da chamada música de concerto têm explorado estas variações há décadas. E na música popular?

Este é o desafio a que se propôs o Lois Lancaster. Ele tem antecedentes pessoais: sua participação como a voz principal da banda Zumbi do Mato o credencia. Porém, o trabalho do Zumbi era de desconstrução (analisei duas de suas músicas aqui). Já em Mar, céu do chão, nome deste álbum, Lois se propõe a um trabalho de reconstrução – mas uma reconstrução em seus próprios termos. A única referência em termos de composição no Brasil que lhe poderia servir – e serve, de algum modo, é o trabalho de Arrigo Barnabé, que gerou alguns álbuns históricos, em especial Clara Crocodilo. Mas a música de Arrigo, embora tremendamente disruptiva, tem como base inicial as experiências dodecafônicas de Schoenberg, que reorganizam a escala de 12 notas mudando sua hierarquia, mas sem lhes acrescentar outras. O caminho que Lois percorre, percorre só.

E desde o título e os primeiros versos da primeira faixa – Uma berceuse – Lois já faz como que um resumo de suas intenções: Mar, céu do chão é uma sentença que, sinteticamente, reorganiza o espaço do mundo, como na cena do filme A Origem em que, dentro de um sonho, uma personagem levanta o chão adiante tornando-o vertical, mas ainda assim percorrível pelos automóveis e pessoas. O reposicionamento do mar neste título desafia o ouvinte antes mesmo de iniciada a audição: a imagem de um mar invertido sobre nossas cabeças ameaçadoramente é a que apresenta o álbum, não fosse a cor do mar resultado direto do reflexo do céu. Ou, no dizer do próprio Lois:

O mar é o tema desse álbum – o elemento água, espalhado em todo um planeta pós-utópico, em um semblante, ou mesmo pressentindo o estado de superfluido como um portal para algum universo Paralelo Ultra DIMensional, lar de uma criatura que chamaremos por conveniência de Marcelo. O sentido do álbum o tem por referência e fulcro.

A menção ao Marcelo parece pouco mais que uma blague de Lois ao ser lida descolada da escuta do álbum. Mas nele está concentrada a noção desestabilizadora que percorre o álbum – ou melhor dizendo, reestabilizadora. Pois, as primeiras palavras cantadas por Lois são justamente: Em que eu consisto? Onde me estabilizo? As perguntas da abertura de Uma berceuse abrem também o portal para que o ouvinte possa se desestabelecer e reestabelecer num mundo sob nova direção, ao menos por 36 minutos. Mais adiante, segue a letra:

E atiro, atiro! BANG, BANG, teje morto!
Mas ele trocara de lugar com sua sombra
E esta se confundira em dez na penumbra.
Na certa, foi apenas Deus que escreveu torto.

A noção de Deus escrevendo torto, como numa geometria não euclidiana, é exatamente a que perpassa todo o álbum. E é a ela que o ouvinte de Mar, céu do chão vai ter de se adaptar. A estranheza inicial é inevitável a quem não estiver familiarizado – mesmo um ouvinte antigo do Zumbi perceberá a diferença. Por mais que a sintaxe característica de Lois esteja presente em intervalos inesperados e ligações entre assuntos aparentemente díspares, aqui há uma certa organização implícita e subjacente à fluidez da água – sejam as correntes marítimas, seja o ciclo das marés.

E para se inserir nesta ordem, mais que entender, é preciso imergir na escuta. A principal escala usada por Lois, a de Bohlen-Pierce, tem 13 notas, mas pode ser mais apropriadamente chamada de macrotonal do que micro tonal, pois esta divisão em 13 se dá não sobre a oitava, ou seja, o intervalo de dó a dó, mas sobre o intervalo de uma oitava mais uma quinta (na verdade o princípio dela é de usar uma proporção 3:1 no lugar da 2:1 da escala tradicional, o que faz com que mesmo este intervalo seja ligeiramente diferente. Mas não faz sentido entrar nestas tecnicalidades). Isto faz com que o intervalo mais básico nesta escala não seja a oitava, mas o que se chama tritava – um dó2 e um sol3, por exemplo, enquanto o intervalo tradicional de oitava simplesmente não existirá, já que a nota que seria o dó3 não é parte da escala, tendo no entanto notas próximas antes e depois.

Confuso? Tem mais. Algumas faixas usam escalas de 15, 16 notas, e até mesmo uma escala de 7 notas como as tradicionais, porém organizada de forma, no dizer de Lois, anti-diatônica, invertendo intervalos de tom e semitom e vice-versa e usada em Hino do Canadá (dos brasileiros). O resultado será um estranhamento tão grande quanto qualquer uma das demais. Acontece que, na verdade, toda esta explicação no fundo é ociosa, porque é na escuta que estas relações complexas se resolvem. Quando o ouvinte consegue ultrapassar a barreira da primeira escuta, a recompensa será como o entendimento de um quadro cubista sem a necessidade de transpô-lo para a tridimensionalidade convencional. A simultaneidade de dimensões está lá, posta, não é preciso mais nada além de fruir.

E há pelo menos uma característica de Mar, céu do chão que ajuda o ouvinte nesta imersão, fornecendo-lhe algo familiar em que se apoiar: pois trata-se inequivocamente de um álbum de música pop, no sentido real do termo, sem pegadinha. As canções de Lois têm refrões – em muitos casos refrões chiclete e, após o ouvido ajustado, até cantaroláveis, como os de Água mal tomada e O meu nome tava escrito errado e Amigo observador. Como que para compensar as dificuldades harmônicas e melódicas enfrentadas pelo ouvinte, Lois trata de fornecer padrões de repetição que lhe deem outras chances de assimilar o que ouve – esta sim, possivelmente uma lição aprendida de Arrigo Barnabé.

Tanto que ao menos uma das faixas do álbum não tem Lois em sua autoria nem sequer foi composta em alguma escala alterada, antes tem um formato muito tradicional. Lois regrava Homem ao mar, de Kassin, gravada por ele no álbum Futurismo (de Kassin + 2, sendo os outros dois Moreno Veloso e Domênico Lancellotti), mas, segundo Lois, remetendo primordialmente à versão anterior do grupo Acabou la Tequila, integrado por Kassin. E o que acontece é a curiosa transposição da canção de Kassin, composta segundo as regras da tonalidade estritas, mas a escala EDO 7. E o resultado consegue a proeza de unir o estranhamento da escala com a pegada pop da composição, pois o refrão permanece não apenas reconhecível, mas também acompanhável como um refrão deve ser. O Homem ao mar de Kassin agora é o Homem ao céu do chão de Lois.

Louco (Ela era seu mundo) é uma recriação do samba de quase mesmo nome (no título original, o verbo ser está no presente) de Wilson Batista e Henrique de Almeida gravado em 1946 por Araci de Almeida, e apropria-se de seu refrão para, nas novas estrofes intermediárias, descrever este mundo – e trata-se de um mundo onde, entre outras coisas, a música popular é toda em Bohlen-Pierce! Aqui, Lois faz com o refrão original não apenas a transposição para outra escala, mas também o transpõe, digamos assim, sintaticamente. Assim, o original:

Louco, pelas ruas ele andava
E o coitado chorava
Transformou-se até num vagabundo
Louco, para ele a vida não valia nada
Para ele a mulher amada
Era seu mundo

É sintetizado em

Louco, ela era seu mundo!
Para ela, ele não valia nada,
Mas para ele, ela era seu mundo.

Lois, então faz a passagem do mundo tridimensional para o mundo de Marcelo (aliás citado na letra) em três níveis: transfigurando o refrão do samba (que originalmente não incluía a opinião da mulher amada sobre seu apaixonado); na própria passagem deste refrão para a escala Bohlen-Pierce; e finalmente, na descrição do mundo de Marcelo no restante de letra, em estrofes como:

Seu mundo com escorpiões de vinte patas
Uma atmosfera verde e prata
E um computador deprê a bordo na nave mãe

Seu mundo onde a raça inteligente
Parece uma espécie de serpente
Contendo três sexos diferentes, diferentes!

No meio de tudo isso, há espaço para canções com temas, como o próprio Lois classifica, menos abstratos. Hino do Canadá (dos brasileiros) é uma sátira à emigração de classe média, classificada como retirantes (uma faixa que, pela temática e ironia e mutatis mutandi, caberia também num álbum do Zumbi do Mato), e Amigo Observador, composta sobre letra de Nem Queiroz, é a descrição bastante precisa de um dia de show na cena rock independente e suburbana do Rio de Janeiro, tocada por entusiastas sem grana. Nesta última, não falta uma dose de ironia mesclada ao carinho natural (já que Lois, via Zumbi e outras bandas como os Elefantes Terríveis, conhece bem tanto a precariedade desta cena quanto o amor com que seus integrantes a mantém.

No fundo, estas duas canções se conectam ao restante do álbum pelo estranhamento que oferecem, derivados de uma visão externa – num caso evidente, na crítica aos recém-chegados ao Condomínio do tamanho de um país; e no outro por um ardil mais sutil, que é provavelmente a única contribuição de Lois à letra: o refrão que é também o título. Pois quem é o Amigo observador que se intromete intercalando as estrofes? Talvez Lois, um pé dentro e um pé fora da narrativa, enxergando seus pequenos ridículos; talvez Marcelo, o ser interdimensional que, convenhamos, será um alter ego do próprio Lois, e aí neste caso demostrando a pequenez de tudo isso como quem observa de outra galáxia aquela tarde no bairro do Caju. Certo é que a entrada do refrão a cada uma das estrofes narradas como que desmonta a narrativa e força o ouvinte a enxergar tudo por um outro ângulo – um ou mais, já que são várias vozes em contraponto que o cantam – que não se sabe bem qual seria, que confunde e não leva a conclusões: apenas observa de outra, ou várias outras dimensões.

Mar, céu do chão termina de forma inesperada, com um poema recitado por Rebecca Moure – apenas umas das seis vozes que se somam à de Lois ao longo do álbum. Bezerros beberrões e controle de multidões parece querer ampliar a pergunta inicial do álbum – Em que eu consisto?, levando-a ao coletivo ao explorar a fórmula Pessoas serão essas?

Pessoas serão essas completos estranhos?
Pessoas serão essas abstrações em contraluz inclinadas a se debater forte ante o vórtex pelo desoriente que a neblina encortinou?
Pessoas por acaso seriam essas e não aquelas?
E por que?

E mais adiante:

Mas… que diabos, o que aquele outro grupo avançando pelos flancos?
Pessoas serão essas da gangue dos Tamoios?
Pessoas serão essas confessos assassinos assinalando os réus de todas as eras?
Pessoas serão essas nós no futuro?
Outros no passado?
Ou ambos ao mesmo tempo?

E de súbito a viagem interdimensional proposta por Lois parece inesperadamente pessoal. Ainda mais quando ele arremata:

Ouça-se você cavando fundo,
Um enxerido no antanho,
Ouça-se você, condenado por bravura pelos erros dos covardes,
Ouça-se você tirando essa onda toda,
Apalpe-se você
E descubra-se pelado.

Não, não se trata aqui de tentar encontrar um sentido oculto e individual para todo este périplo. Não estamos falando de Tudo em todo lugar ao mesmo tempo. Mas é possível, ainda assim, enxergar na trajetória de Lois um pouco do que estes versos descrevem. A decisão de passar da quase anarquia musical total do Zumbi do Mato para as formas mais estruturadas das escalas micro e macrotonais correspondem, de certa forma, a um passo lógico na busca estética de Lois. A crítica avassaladora e multidirecionada do Zumbi, que acumulava informações até o absurdo – uma espécie de reductio ad absurdum na contramão – é sucedida por uma técnica que, sem impedir o sarcasmo característico de suas letras, estabelece implicitamente uma alternativa ao que é criticado. Um outro mundo é possível, diria um utópico, ao que Lois talvez respondesse – muitos outros mundos, todos até. Lois responde à própria pergunta: Em que eu consisto? Onde me estabilizo? propondo diversas possibilidades centralizadas na figura de Marcelo, o nome arbitrário que concentra em si tudo o que pode ser. Estabilidades um tanto fluidas e díspares – em uma delas um nome escrito errado pode mudar tudo, em outra uma água mal tomada pode te matar – e em ao menos uma delas o mar será o céu do chão. Lois (ou Marcelo) convida. Cabe ao ouvinte dar a mão a ele e mergulhar.