Três Charles

Ouvindo o sensacional documentário sonoro Imbatível ao extremo, entre muitas descobertas, me dei conta de uma trilogia de canções entre os álbuns de 1969 e 1970, gravados ambos com o incrível Trio Mocotó. Uma pequena e algo imprecisa saga em três capítulos, no entanto incrivelmente coerentes entre si, e um excelente exemplo entre tantos da capacidade de Benjor de sintetizar complexidades na simplicidade aparente de seu estilo muito particular.

Take it easy, my brother Charles, do álbum de 69, é um despretensioso apaziguamento. Nenhuma história é contada, mas subentendida: Charles, irmão de cor de Jorge, está prestes a se descontrolar. Jorge, para acalmá-lo, faz um libelo à paz, à sugestão, à simpatia. Ouvida distraidamente, a letra não parece fazer mais sentido do que isto, com sua inesperada menção à chegada do homem à Lua no meio. Ainda assim, sua levada empolgante, entre o soul e o samba, tem algo a dizer. O soul, gênero musical associado à luta pelos direitos dos negros, misturado ao ritmo negro brasileiro por excelência, embalando a expressão irmão de cor, tudo isso já dá pistas sobre o que Jorge está falando. Mas as pistas se materializam ao ouvir a canção que fecha o álbum:

Charles Anjo 45 conta toda a história que Take it easy não conta. A história do dono do morro, temporariamente preso mas idolatrado e esperado ansiosamente de volta (Antes de acabar as férias nosso Charles vai voltar – ele se refere às férias forçadas citadas antes. Charles vai fugir), nos remete a um período de romantização da marginalidade (Seja marginal, seja herói, dizia Hélio Oiticica) que ficou para trás em tempos de UPP. Mas o discurso de Jorge é mais sutil, pois, embora cantada numa discreta primeira pessoa, em especial o refrão, o corpo da letra de Charles anjo 45 oscila entre a persona do próprio Jorge e a de outra pessoa, um personagem, um morador do morro. O discurso de Jorge transita entre o endosso a Charles e a postura de um expectador mais ou menos neutro.

Ouvida retrospectivamente depois de Charles anjo 45, Take it easy my brother Charles ganha desdobramentos de tensão. O aborrecimento de Charles, em uma situação não explicitada, pode resultar em violência, mesmo em morte. A canção solar esconde em si possibilidades tenebrosas. O soul também era o som dos mafiosos, de gangsters, dos que flertavam com a marginalidade. Mas o samba rasgado Charles anjo 45 não tem necessidade de repetir o paralelo já traçado sua letra sem rodeios exige uma ambientação também direta. A passagem do soul para o samba ocorre como Jorge assimila o black is beautiful em Negro é lindo, como lembra bem Fred Coelho no documentário da Rádio Batuta.

Jorge interpreta o Anjo 45 em sua sintaxe característica, entre cantada e falada mesmo quando melismática, quase sem destacar pontos específicos da letra, como um bate-papo de boteco, numa aproximação com o ouvinte. A sempre interessante melodia de Jorge avança movida pela inflexão da fala, num voo de mosca varejeira que parece não ter direção mas tem alvo certo. Jorge quase não a usa para destacar pontos específicos ou dramatizar passagens, seu interesse é fazer a crônica do morro. Já Caetano Veloso teve uma leitura diferente.

Caetano, ao contrário de Jorge, trata de sublinhar cuidadosamente em sua interpretação a melodia da canção, inclusive diminuindo muito seu andamento. Ao fazer isso, tira dela o caráter naturalista e explicita o distanciamento em relação aos acontecimentos, situando-se numa falsa e algo irônica primeira pessoa. Tudo isso que aumenta a dramaticidade da música. Já a gravação de Ben cria esta dramaticidade pelo avesso, ao acelerar brusca e tremendamente o andamento depois do fim da letra. Aí torna-se visível uma tensão que era latente em todo o discurso anterior, em que saraivadas de balas pro ar são uma celebração.

Então, no álbum seguinte de Jorge, Força Bruta, um novo personagem entrou em cena.

Assim como Charles anjo 45 ressignifica retrospectivamente Take it easy, Charles Jr., ressignifica novamente as duas canções precedentes. Outra vez cantada na primeira pessoa, ela assume uma terceira forma: nem o aparente livre improviso da primeira, nem a história encadeada da segunda, desta vez o que temos é um discurso articulado, uma dissertação, um manifesto. E outra vez a persona de Jorge transita pelo personagem, mas agora de forma diversa: não há o distanciamento. Jorge agora chega efetivamente a ser Charles Jr., toma integralmente para si seu discurso.

Charles Jr., por óbvio, é filho do Anjo 45. Filho da marginalidade, filho da violência. (E a relação do uso do inglês Junior também faz paralelo com o take it easy, e por extensão com o universo do soul da primeira canção, com todos os seus desdobramentos.) Mas o que era um dado objetivo agora é estendido e entendido: Pois eu nasci de um ventre livre / Nasci de um ventre livre no século XX. A herança da escravidão que levou Charles, o irmão de cor, à marginalidade, agora é convertida em uma afirmação de liberdade. A marginalidade foi o estranho, enviesado e possível meio de ser livre, e que ainda assim o levou à prisão. Não há nem sombra da glorificação deste caminho, apenas a constatação. Charles Jr. não se identifica com a marginalidade, mas também não se desvenciha dela. Pois eu já não sou não não o que foram os meus irmãos, mas Eu também sou um anjo: A identificação com o pai, que vem desde o nome, não implica em seguir seus passos, mas em abrir um novo caminho, como ele abriu. Seja marginal, seja livre. Seja um anjo, seja herói.

As três canções tem a mesmíssima estrutura: refrão curto e grosso que ecoa durante toda a letra, esta conversada sobre uma sequencia de 3 ou 4 acordes, não mais, e novamente o refrão, agora como uma reafirmação implícita de tudo o que foi dito e contado. Um apaziguamento, um festejo, uma reivindicação, um crescendo de tensão, cuja culminância é expressa no andamento mais lento, quase andante, e destacada no arranjo de cordas de Charles Jr. Onde o intermezzo, ao contrário da feroz batucada anterior, é de um violão solo, conseguindo expressividade análoga pelo caminho inverso.

Mas o que talvez seja ponto de ligação mais interessante entre estas três canções é a volta sutil, na terceira delas, da menção que soava tão arbitrária na primeira, da chegada do homem à Lua. Se em Take it easy ele cantava

Depois que o primeiro homem
Maravilhosamente pisou na lua
Eu me senti com direitos, com princípios
E dignidade
De me libertar

Agora ele explica e desenvolve:

Eu tenho fé e o amor e a fé
No século vinte e um
Onde as conquistas científicas espaciais medicinais
E a confraternização dos povos vai vai
E a humildade de um rei
Serão as armas da vitória
Para a paz universal

Mas há uma diferença fundamental entre estas duas passagens: se na primeira as conquistas científicas espaciais davam vazão à luta por uma liberdade pessoal, Charles Jr. já almeja bem mais alto e mais amplo. O pensamento de Jorge Ben ao longo destas três canções traça uma trajetória de refinamento. Seu sonho não é mais individual, e sim coletivo. O apaziguamento de Charles, personagem real, companheiro de peladas da infância de Jorge Ben, dá lugar ao da humanidade, por um mundo em que o caminho da libertação de Charles, e suas armas da vitória não precisem ser um revolver calibre 45. Charles Jr. é um passo civilizatório adiante, um passo utópico, na direção de um mundo em que o lado escuro de Take it easy não seja necessário, em que a vida do Anjo 45 não seja em vão.

26 comentários em “Três Charles

  1. […] As músicas para Charles podem ser lidas como uma trilogia. Nela, Take It Easy My Brother Charles seria uma tentativa de controlar a raiva de um parceiro, Charles Anjo 45 uma forma de homenageá-lo e Charles Jr. um manifesto por liberdade. […]

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  2. Guilherme Giorge disse:

    Vim aqui procurando peloa rtigo do Gabriel Feltran, que bota em cheque muito da discriminação usada com termos truncados e bota muito mais contexto na obra e no momento do brasil. fora isso, adorei os comentários que envelheceram extremamente mal, como a glorificação da UPP.

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  3. kairoscaos disse:

    Sensacional seu artigo, parabéns! Que mais e muito mais fosse escrito e reescrito sobre esse Gênio da Música Mundial. Jorge Ben estava anos luz a frente de seus pares nos anos 60 – e ainda penso que sua obra dos 60/70 continua assim atualmente – e poderíamos analisar sobre “N” aspectos diferentes para confirmar a veracidade do que digo. Mas em especial ao que escreveste, “Take it easy..” é a canção das canções para mim de Jorge Ben. Ela deveria ter uma hora, uma dia, um século de duração. Ela comprime muita riqueza musical, sonora, plástica. Muitos instrumentos, muitas influencias e estilos. E um final apoteótico, orgásmico. E uma letra profunda, que exige um contexto maior para entendimento (como voce bem explicitou em seu artigo), que para 8/10 dos ouvintes incautos – e ate para os ditos “intelectuais” soa como uma letra boba, ingênua. Esse disco para mim é o auge da criatividade Beniana. Nao esta sozinho no topo, mas ele por si só é um marco na Humanidade.

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  4. […] irmão de cor, como diz o título, pegue leve. De minha parte, posso apenas recomendar que leiam esta excelente análise sobre a trilogia e ouçam também esta versão ao vivo no Japão do disco On Stage, de 1972, com o Trio Mocotó […]

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  5. Dieguito Maradona disse:

    Clap Clap Clap! Bravo! Belissima análise, salve jorge ben, monstro sagrado da mpb

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  6. Gabrielle disse:

    Nossa! Que texto! Lendo agora em 2020 e mais atual impossível!! Parabéns!

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  7. Camila disse:

    Uau, que texto maravilhoso.

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  8. Fernando zompero disse:

    Em “porque é proibido pisar na grama” tem um “descobri que além de ser um anjo, eu tenho 5 inimigos”

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  9. cinthia disse:

    I don´t understand why Jorge Ben is not much known out from Brazil as Caetano Veloso or Gilberto Gil are. He is a fucking genius!!

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  10. Samir Calaça disse:

    Hoje, depois de muitos anos sem ouvir Jorge Ben, curiosamente liguei o som, pensando em ouvir Violeta Parra. Daí, minha queridíssima mamãe tinha deixado o CD do Jorge Ben. Ao ouvir novamente “Charles, Anjo 45”, veio-me à tona a sensação estranha que me atinge sempre ao ouvir esta canção. Assim, resolvi buscar mais informação sobre essa canção. Deparei-me com alguns artigos impressionantes a respeito. Dentre estes, aqui encontrei um artigo que relaciona até com duas canções de que sequer sabia a existência. Certamente a ideia da junção dos três (não seria quatro, com a versão de Caetano?) Charles gera uma compreensão muito interessante das obras e da que mais me toca, a do Anjo 45. O bom da arte é que – independentemente do que o próprio autor diga – sempre está disposta a múltiplas interpretações.
    O postulado que ouvi de que Jorge Ben era apolítico e que se tratava de um possível traficante do morro me parece inviável. Um cara que canta Chica da Silva, África Brasil (Zumbi), e os Charles não pode ser apolítico. É sim uma bandeira que ele defende. Talvez não seja a de plena contestação à ditadura, mas certamente a de defesa do povo negro escravizado (ainda hoje, com outros nomes, incluindo a prisão em massa de pretos e pardos). Isso é, sim, uma bandeira política. É uma luta por direitos. De toda forma, sou grato a Jorge Ben por nos dar essas canções contestadoras e que nos davam tanto em que refletir.
    Obrigado pelo texto!

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    • Jonathan Ribeiro disse:

      Jorge Ben era apolítico, ela canta auto estima, afirmações positivas para os negros não se verem menores ou piores que ninguem, mas sim livres, como de fato são

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  11. Lendo em 2018 e ficando maravilhado com a análise! Continu

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  12. Sensacional análise!

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  13. Amanda disse:

    Simplesmente sensacional! Viva Jorge Ben!

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  14. Siol disse:

    Caramba, bela análise, fiquei maravilhado com a descoberta… Eu estava ouvindo Charles Jr quase agora, aí fui pesquisar a letra. Há um tempo atrás já tinha me questionado sobre os Charles do Ben, mas nunca fiz a ligação entre as músicas.

    Valeu por compartilhar!

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  15. Paula Tabosa disse:

    que leitura rica, que passeio instigante por entre esses trabalhos do Jorge Ben. valeu demais.

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  16. Fa Gnr disse:

    Achei bem interessante seu texto, mas ainda acredito que Charles não é somente um personagem criado por Jorge, se não é um própio alter ego de Jorge Ben Jor, uma versão mais elevada dele mesmo capatada e transformada em canções maravilhosas.

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  17. Ana Dutra disse:

    Que texto maravilhoso!!! Sempre quis saber quem eram os Charles de Jorge Ben. Por vezes, fiz minha própria análise, mas a sua foi esclarecedora, sensacional! Jamais pensaria que haveria toda uma história ligada às três músicas! Parabéns! E salve, Jorge! 🙂

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  18. Luzia Estevão Garcia disse:

    Delícia de texto(diria tesão, com o perdão dos senhores), muito obrigada pela análise, sempre quis saber quem eram os Charles, mas agora, que canto pro meu filho, fiquei na obrigação de saber, de não cantar algo só porque eu gostava da canção. Sou profissional da área editorial e formada em Letras, não posso desprezar o sentido das palavras. Muito obrigada mesmo, beijos!

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  19. gustavogero disse:

    cara, simplesmete FOD@! eu sempre ouvi essas três músicas, mas nunca as tinha ligado à uma linha-tênue. sensacional seu texto e obrigado por o compartilhar

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  20. Chico Ribeiro disse:

    Sensacional! As músicas e a análise.
    Estava buscando saber quem era o Charles da Take it Easy… sem nem imaginar que tinha toda uma história por trás da trilogia. Vim atrás de uma pérola e acabei encontrando três. Parabéns e obrigado!

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  21. Túlio…satisfação total, Jorge Ben era como o almoço de todos os dias lá em casa, todos sabemos cantar “Jorge”, mas a partir dos 15/16 passei a ouvir com mais interesse a sua mensagem, confesso que preciso ler mais algumas vezes para entender mas consegui compreender a ligação das canções que é o primeiro passo para o entendimento de fato, grande abraço e grato.

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  22. Pedro Galas disse:

    Túlio, seu texto é simplesmente genial. Sou professor e estava planejando uma prova com Charles Anjo 45. Pesquisando, caí aqui, depois de trombar com umas tantas polêmicas. As amarrações que você fez entre as músicas de Jorge Ben deixaram tudo mais interessante e rico. Parabéns pela leitura! Grande abraço!

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