Folha de S. Paulo


Mortes por opi�ceos nos EUA viram caso de sa�de e contaminam a campanha

Na segunda-feira de manh�, a menina Rowen, de 7 anos, deu uma mamadeira para Alyssa, sua irm�zinha de 9 meses, e a colocou no ber�o. Pegou sua mochila e foi esperar o �nibus da escola. Disse ao motorista que seus pais estavam muito p�lidos e que ela n�o conseguia acord�-los.

Avisada, a pol�cia foi at� a casa onde Rowen morava com Alyssa e mais dois irm�os, de 3 e 5 anos, na cidade de McKeesport. No meio do lixo acumulado, das roupas de crian�a e fraldas sujas jogadas pela casa, policiais encontraram Jessica Lally, 25, e Christopher Dilly, 26, mortos. Eles haviam sofrido uma overdose de hero�na na sexta-feira, dia 30 de setembro de 2016.

As quatro crian�as passaram tr�s dias sozinhas em casa, com seus pais mortos no meio da sala.

Naquele mesmo dia, um homem de 50 anos foi encontrado morto na mesma avenida Evans de McKeesport, quatro quarteir�es para baixo. Outra v�tima de overdose de hero�na.

"No come�o ela s� tomava umas p�lulas, nada s�rio. Mas a� desandou", contou � Folha Jean Barefoot, 58, m�e de Jessica. Ela lembrou que a filha s� tirava A na escola, jogava beisebol e queria estudar biologia marinha. "Veio essa droga e acabou com tudo."

Como Jessica, 2,6 milh�es de americanos ficaram viciados em analg�sicos opi�ceos (baseados em morfina) como Vicodin, Oxycontin e Percocet. Muitos come�aram tomando o rem�dio depois de alguma les�o e acabaram dependentes. Outros ouviram falar que as p�lulas "davam barato" e resolveram experimentar.

O v�cio � caro, podendo consumir US$ 200 por dia. Por isso, muitos acabam migrando para a hero�na barata trazida do M�xico, entre US$ 5 a US$ 7 por saquinho. Mais de 70% dos viciados em hero�na come�aram usando analg�sicos opi�ceos.

Em 2014, 47 mil americanos morreram de overdose, quase 70% por causa de hero�na ou opi�ceos. Drogas matam mais do que acidentes de carro (32,6 mil em 2014) nos Estados Unidos.

A depend�ncia de hero�na e opi�ceos j� � uma epidemia no pa�s: o n�mero de mortes por overdose dessas subst�ncias aumentou 248% entre 2010 e 2014.

E esse � um dos principais problemas de sa�de p�blica que ser� enfrentado pelo pr�ximo presidente do pa�s. O presidente Barack Obama requisitou ao Congresso a libera��o de US$ 1,1 bilh�o para lidar com a crise. O republicano Donald Trump quer restringir a fabrica��o dos analg�sicos opi�ceos. Segundo ele, o muro que pretende construir na fronteira com o M�xico vai interromper o fluxo de drogas para o pa�s. A democrata Hillary Clinton prometeu US$ 10 bilh�es para aumentar o acesso a servi�os de preven��o e recupera��o.

Ao contr�rio da epidemia de crack dos anos 1980 e 1990, que atingia principalmente a popula��o negra e pobre, hero�na e opi�ceos s�o usados principalmente por brancos, de todas as faixas de renda.

"� uma epidemia silenciosa, h� muitos jovens brancos em bairros ricos morrendo. As pessoas t�m vergonha de dizer 'meu filho morreu de overdose'; falam que ele teve um ataque card�aco", disse � Folha Sam Quinones, autor do premiado livro "Dreamland: The True Tale of America's Opiate Epidemic".

� muito diferente da imagem estereotipada do viciado em hero�na que morre no meio da rua com uma seringa espetada no bra�o. Como a hero�na agora � muito mais pura, muitos cheiram ou fumam, dentro de suas casas ou carros.

"� uma hist�ria que se repete: um adolescente se machuca jogando futebol na escola, vai ao m�dico e ganha uma receita para 50 p�lulas de um analg�sico opi�ceo. Ele � suscet�vel e pronto, fica viciado", disse � Folha David Hickton, procurador da Pensilv�nia. Hickton foi o coordenador da for�a tarefa contra hero�na da Casa Branca.

"N�o processamos dependentes, eles s�o doentes, estamos atr�s dos traficantes; as pris�es j� est�o lotadas, prender mais gente n�o vai resolver esse problema", disse Hickton.

Quando ficou evidente que havia um descontrole no uso dos analg�sicos opi�ceos, no fim dos anos 2000, o governo iniciou uma grande repress�o �s chamadas "f�bricas de p�lulas", onde m�dicos inescrupulosos vendiam receitas. Resultado: ficou muito mais dif�cil e caro comprar as p�lulas.

"Os cart�is de drogas foram oportunistas, viram onde o mercado de p�lulas estava bombando e come�aram a introduzir a hero�na barata:
pessoas que tinham um v�cio de US$ 200 por dia com p�lulas trocaram para US$ 50 por dia com hero�na", diz.

Os traficantes ficavam no estacionamento de cl�nicas de reabilita��o oferecendo hero�na gr�tis para os usu�rios tentando se livrar dos opi�ceos, conta.

"N�s tiramos o Vicodin do mercado, mas eles inundaram os EUA com outras drogas similares e mais potentes."

Uma delas � o fentanyl, um opi�ceo 50 vezes mais potente do que a hero�na, que matou 5,5 mil pessoas em 2014.

Hickton conta que mais de 90% dos crimes de sua regi�o –arrombamentos, furtos em lojas, roubos a m�o armada– est�o ligados a opi�ceos.

Segundo Roneice Freeman, diretora do Centro para Espiritualidade e Recupera��o em 12 passos, em Pittsburgh, h� cinco anos, mais de 90% dos dependentes com quem ela trabalhava eram usu�rios de crack. Agora, mais de 70% s�o dependentes de hero�na. "A maioria das pessoas j� esteve v�rias vezes nas cl�nicas de reabilita��o. S� 10% conseguem largar o v�cio".

Dena N., 54, est� entre esses felizardos. Aos 14 anos, foi atropelada por uma caminh�o, quebrou o tornozelo, come�ou a tomar Tylex e gostou. Ela j� tinha experimentado v�rios drogas antes. Aos 16, saiu de casa e come�ou a injetar Dilaudid (hidromorfona), um analg�sico opioide para c�ncer. Da� para a hero�na foi um pulo.

Mas Dena pegou hepatite C e resolveu voltar para os rem�dios, porque a� n�o precisava usar agulha. Gastava US$ 100 por dia com percocet, vicodin e oxycontin. Usava cinco cart�es de cr�ditos, seu sal�rio e o do namorado.

Resolveu sair dessa. Teve uma filha, que hoje tem 9 anos. O pai da menina morreu de overdose quando ela tinha 4.

"Um dos meus maiores medos � eu me machucar e o m�dico receitar Percocet", cntou � Folha Dena, que tem olhos azuis e uma cara cansada. "Um tempo atr�s eu fraturei o punho, queriam me dar opioides, tomei motrin (ibuprofeno)."

Hickton defende fortes restri��es na produ��o de opi�ceos. "H� um excesso de oferta desses rem�dios", diz. "Acredito que vamos conseguir; sa�mos do homem de Marlboro e fumo dentro do avi�o para uma situa��o em que o cigarro � restrito em todo lugar, o mesmo pode acontecer com os opi�ceos."

FALTA DE ESPERAN�A

O problema � mais grave no nordeste dos EUA, em Estados como Nova Jersey, Nova York e New Hampshire, e no Cintur�o da Ferrugem, �rea industrial em decad�ncia econ�mica que abrange partes da Pensilv�nia, Ohio, Virg�nia Ocidental e Michigan.

Nessa regi�o, muitas f�bricas e sider�gicas fecharam as portas nas �ltimas d�cadas, levando a desindustrializa��o e consequente crise econ�mica. Em alguns desses locais tamb�m se usa a droga "chrystal meth".

"A maioria dos usu�rios � branco, de classe m�dia, e vem de �reas do sub�rbio ou rurais, em decad�ncia. Eles veem que seus filhos ter�o uma condi��o pior do que eles tiveram, e eles t�m uma vida mais dura do que seus pais tiveram. Isso gera um desespero existencial, uma frustra��o", diz Ethan Nadelmann, diretor-executivo da Alian�a para a Pol�tica de Drogas. "Essas �reas coincidem com as regi�es de maior apoio ao candidato Donald Trump."

S�o �reas como a cidade de Munhall, Pensilv�nia, onde Jessica e seu marido moravam antes de se mudar para McKeesport. Eles viviam na mesma rua que sua m�e e irm�. Parece mais uma rua pacata de sub�rbio de classe m�dia –bandeiras dos Estados Unidos e cadeiras na frente das casas, decora��es de Halloween.

Mas a menos de 50 metros da casa da m�e de Jessica, a pol�cia apreendeu 96 pacotes de hero�na em latas de batata Pringles e dois fuzis pouco tempo atr�s. Na outra esquina, um homem morreu assassinado a tiros h� dois meses.

Para olhos treinados, � poss�vel notar a movimenta��o. "Os traficantes chegam de carro, encostam e fazem 'o aperto de m�o' especial, quando passam a droga para o comprador", descreve a irm� de Jessica, Courtney, 23.

A cidade onde Jessica morreu, McKeesport, � um retrato ainda mais fiel desse decl�nio econ�mico. A cidade chegou a ter 55 mil habitantes em 1940, mas hoje tem 19 mil.

Desde que uma grande fabrica de tubos fechou, McKeesport nunca mais se recuperou. Os sinais de decad�ncia est�o por todos os lados: in�meras placas oferecendo suboxone (rem�dio usado no tratamento de dependentes de hero�na), quase 1.000 casas abandonadas, lugares para descontar cheques ou alugar m�veis, filas de sopa.

A dois quarteir�es de onde Jessica e seu marido morreram fica a igreja de St Stephens, abandonada, com as janelas quebradas e a fachada pixada com um "666".

FAM�LIAS

"Falam que a Jessica era uma m� m�e, uma drogada, mas a verdade � que ela simplesmente fez escolhas erradas", diz Courtney, irm� de Jessica.

No come�o do ano, os servi�os de assist�ncia social levaram os filhos de Jessica para morar com a av� e a tia. "Jaxson, aos 4 anos, ainda usava fraldas e mal conseguia falar. Damon, aos 3, parecia um macaco, andava de quatro e s� grunhia."

Logo depois, Jessica recuperou a guarda dos filhos e a fam�lia se mudou para McKeesport. Foi a �ltima vez que Courtney viu a irm�.

"N�o pudemos v�-la uma �ltima vez para dizer adeus. Exigiram que o caix�o fosse fechado, porque o corpo estava em decomposi��o". As quatro crian�as est�o sob a guarda de assistentes sociais.


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