Em uma introdu��o a uma nova edi��o de "O Conto da Aia", a escritora canadense Margaret Atwood descreveu seu romance como uma "antiprevis�o" feita na esperan�a de que, "se esse futuro puder ser descrito em detalhes, talvez n�o chegue a acontecer. Mas tampouco � poss�vel confiar que o que desejamos v� se realizar".
Essa frase ficou em minha cabe�a enquanto se aproximava o lan�amento da magn�fica adapta��o para a TV que a Hulu fez do livro, "The Handmaid's Tale" –e enquanto a hist�ria vem sendo saudada como s�mbolo de nosso momento pol�tico por todos, desde conservadores que acusam o livro, publicado h� 32 anos, de ser propaganda anti-Trump at� vozes de protesto que adotaram as imagens do romance para manifestar sua oposi��o �s propostas de restri��es ao aborto aprovadas pelo Senado do Texas.
Se usarmos "O Conto da Aia" ou qualquer outra fic��o dist�pica como indicativo do que pode acontecer a seguir, ser� que estamos perdendo de vista o que essa fic��o quer dizer de fato?
N�o quero dizer que seja equivocado falar de poss�veis compara��es entre a teocracia repressora do mundo imaginado por Atwood e a administra��o Trump, especialmente como uma maneira de falar da profundidade das �guas pol�ticas em que nos encontramos.
James Poniewozik escreveu no jornal "The New York Times" que "The Handmaid's Tale", em que os EUA se transformam ap�s um golpe teocr�tico que se segue a um ataque terrorista, trata do modo como "as pessoas decidem acreditar que o anormal � normal, at� que um dia elas olham em volta e percebem que aqueles s�o os maus velhos tempos".
Minha amiga Megan McArdle contestou essa ideia no Bloomberg, lembrando aos leitores que Trump "n�o controla o Congresso ou os tribunais e que n�o tem o apoio de grandes movimentos de massa como os que conduziram outros governos dist�picos ao poder, quer fossem fascistas ou comunistas, quer fossem teocr�ticos".
Al�m desse conceito potente, existem pontos de compara��o entre um mundo totalmente dist�pico em que os homens tomam decis�es vitais sobre a sa�de e a liberdade reprodutiva das mulheres e o nosso mundo, apenas preocupante. (Numa mesa-redonda que moderei no Smithsonian, Atwood me disse que a obra de fic��o dist�pica mais relevante para o momento atual � "1984", de George Orwell.)
A ideia de uma "antiprevis�o" apresentada pela autora, contudo, nos recorda que � poss�vel percorrer caminhos distintos e chegar ao mesmo destino. Sim, as posi��es do vice-presidente Mike Pence sobre igualdade de g�neros e liberdade reprodutiva t�m semelhan�as com o patriarcado que governa os ex-Estados Unidos da Am�rica, atual Rep�blica de Gilead, no romance de Atwood.
Os americanos, por�m, n�o votaram em Pence para presidente –apenas tiveram de se haver com ele, assim como com cortes nas verbas federais para a organiza��o Planned Parenthood [paternidade planejada, importante institui��o de planejamento familiar nos EUA].
Quem elegemos foi Donald Trump, homem de f� escassa, pouca fidelidade a rituais ou interesse neles e nenhuma vis�o forte sobre como fazer frente aos desafios graves que se colocam para este pa�s, algu�m que conquistou os eleitores n�o com promessas de um puritanismo austero, mas de um espet�culo agressivo e bomb�stico de grandeza nacional.
OPRESS�O
� poss�vel chegar a uma distopia feminista tratando as mulheres como se f�ssemos sedutoras perigosas e insaci�veis, cuja sexualidade precisa ser mantida sob controle r�gido. Talvez tamb�m seja poss�vel chegar a isso tratando-nos como enfeites a serem agarrados, reposicionados e substitu�dos ao bel-prazer [dos homens].
Voc�s podem nos oprimir porque nos atribuem poder demais e o tipo errado de import�ncia ou porque n�o nos atribuem poder algum.
A fic��o dist�pica –ou qualquer fic��o, na realidade– n�o deve ser julgada pelo grau em que serve como prote��o contra transforma��es concretas e radicais na sociedade americana. Basta pedir que uma hist�ria seja interessante e bem executada e que os personagens sejam memor�veis e densos.
A fic��o n�o pode salvar o mundo, mas pode descrever for�as importantes em a��o na nossa pol�tica e cultura que possivelmente n�o sejam captadas nos dados de pesquisas e na cobertura do jornalismo pol�tico convencional. A quest�o � se reconhecemos essas descri��es quando nos deparamos com elas e o que fazemos em resposta.
OUTRAS OBRAS
Durante a campanha presidencial de 2016, cr�ticos –entre os quais me incluo enfaticamente– escreveram um artigo atr�s do outro sobre obras de arte que diagnosticaram ou descreveram as pr�prias for�as que ajudaram a conduzir Trump � Presid�ncia, muitas criadas nos anos entre o breve flerte de Trump com uma candidatura � indica��o presidencial pelo partido Libert�rio, em 2000, e sua entrada real no campo republicano, em 2015.
O filme "Idiocracia" (2006), de Mike Judge, mostrou um populacho embriagado com e iludido por produtos corporativos e espet�culos de entretenimento como luta livre profissional e corridas de "monster trucks".
"Sem Dor, sem Ganho" (2013), de Michael Bay, captou um tipo espec�fico de sentimento americano de direito adquirido e a desconex�o entre a riqueza e as conquistas, por um lado, e o trabalho �rduo que pode produzir as duas coisas, do outro.
E o not�vel e notavelmente falho "Southland Tales: O Fim do Mundo" (2006), de Richard Kelly, mostrou um Estados Unidos no qual, ap�s uma s�rie de ataques nucleares, os cidad�os foram impelidos a aceitar um sistema nacional de identifica��o e monitoramento e se anestesiam com can��es pop de estrelas porn�, al�m de se deixarem seduzir por empreendedores desonestos.
Francamente, n�o sei se consumir esse tipo de fic��o dist�pica, que claramente abrange "O Conto da Aia", equivale a fazer press�o sobre uma ferida, como sugeriu minha colega do jornal "The Washington Post" Monica Hesse –uma maneira de sentir nossos piores medos na carne e nos preparar psicologicamente para enfrent�-los.
Tamb�m � poss�vel que usemos essas hist�rias, por mais ligadas � realidade que seus autores possam ter tentado faz�-las, como maneira de afastar nossos temores e reafirmar a n�s mesmos que somos imunes a eles.
Quando o futuro se revela "muito mais futurista do que [os cientistas] previram originalmente", como diz um personagem de "Southland Tales", ou quando a realidade come�a a desafiar as leis da plausibilidade fict�cia, como fez uma parte t�o grande da improv�vel candidatura presidencial de Trump, como devemos encarar a fic��o dist�pica e a n�s mesmos?
Talvez devamos simplesmente aprender a n�o menosprezar o inesperado. O mundo � um lugar estranho, mesmo que n�o seja estranho precisamente das maneiras que Margaret Atwood, Mike Judge ou Richard Kelly imaginaram.
ALYSSA ROSENBERG escreve um blog sobre cultura pop na se��o "Opinions" do "Washington Post".
Tradu��o de CLARA ALLAIN