Folha de S. Paulo


Distopias ensinam a n�o desprezar o inesperado, mesmo que seja Trump

Joshua Roberts - 27.jul.2017/Reuters
Mulheres vestidas como as aias do livro
Mulheres vestidas como as aias do livro "O Conto da Aia" protestam contra os cortes no Planned Parenthood, em Washington, em julho

Em uma introdu��o a uma nova edi��o de "O Conto da Aia", a escritora canadense Margaret Atwood descreveu seu romance como uma "antiprevis�o" feita na esperan�a de que, "se esse futuro puder ser descrito em detalhes, talvez n�o chegue a acontecer. Mas tampouco � poss�vel confiar que o que desejamos v� se realizar".

Essa frase ficou em minha cabe�a enquanto se aproximava o lan�amento da magn�fica adapta��o para a TV que a Hulu fez do livro, "The Handmaid's Tale" –e enquanto a hist�ria vem sendo saudada como s�mbolo de nosso momento pol�tico por todos, desde conservadores que acusam o livro, publicado h� 32 anos, de ser propaganda anti-Trump at� vozes de protesto que adotaram as imagens do romance para manifestar sua oposi��o �s propostas de restri��es ao aborto aprovadas pelo Senado do Texas.

Se usarmos "O Conto da Aia" ou qualquer outra fic��o dist�pica como indicativo do que pode acontecer a seguir, ser� que estamos perdendo de vista o que essa fic��o quer dizer de fato?

N�o quero dizer que seja equivocado falar de poss�veis compara��es entre a teocracia repressora do mundo imaginado por Atwood e a administra��o Trump, especialmente como uma maneira de falar da profundidade das �guas pol�ticas em que nos encontramos.

James Poniewozik escreveu no jornal "The New York Times" que "The Handmaid's Tale", em que os EUA se transformam ap�s um golpe teocr�tico que se segue a um ataque terrorista, trata do modo como "as pessoas decidem acreditar que o anormal � normal, at� que um dia elas olham em volta e percebem que aqueles s�o os maus velhos tempos".

Minha amiga Megan McArdle contestou essa ideia no Bloomberg, lembrando aos leitores que Trump "n�o controla o Congresso ou os tribunais e que n�o tem o apoio de grandes movimentos de massa como os que conduziram outros governos dist�picos ao poder, quer fossem fascistas ou comunistas, quer fossem teocr�ticos".

Al�m desse conceito potente, existem pontos de compara��o entre um mundo totalmente dist�pico em que os homens tomam decis�es vitais sobre a sa�de e a liberdade reprodutiva das mulheres e o nosso mundo, apenas preocupante. (Numa mesa-redonda que moderei no Smithsonian, Atwood me disse que a obra de fic��o dist�pica mais relevante para o momento atual � "1984", de George Orwell.)

A ideia de uma "antiprevis�o" apresentada pela autora, contudo, nos recorda que � poss�vel percorrer caminhos distintos e chegar ao mesmo destino. Sim, as posi��es do vice-presidente Mike Pence sobre igualdade de g�neros e liberdade reprodutiva t�m semelhan�as com o patriarcado que governa os ex-Estados Unidos da Am�rica, atual Rep�blica de Gilead, no romance de Atwood.

Os americanos, por�m, n�o votaram em Pence para presidente –apenas tiveram de se haver com ele, assim como com cortes nas verbas federais para a organiza��o Planned Parenthood [paternidade planejada, importante institui��o de planejamento familiar nos EUA].

Quem elegemos foi Donald Trump, homem de f� escassa, pouca fidelidade a rituais ou interesse neles e nenhuma vis�o forte sobre como fazer frente aos desafios graves que se colocam para este pa�s, algu�m que conquistou os eleitores n�o com promessas de um puritanismo austero, mas de um espet�culo agressivo e bomb�stico de grandeza nacional.

OPRESS�O

� poss�vel chegar a uma distopia feminista tratando as mulheres como se f�ssemos sedutoras perigosas e insaci�veis, cuja sexualidade precisa ser mantida sob controle r�gido. Talvez tamb�m seja poss�vel chegar a isso tratando-nos como enfeites a serem agarrados, reposicionados e substitu�dos ao bel-prazer [dos homens].

Voc�s podem nos oprimir porque nos atribuem poder demais e o tipo errado de import�ncia ou porque n�o nos atribuem poder algum.

A fic��o dist�pica –ou qualquer fic��o, na realidade– n�o deve ser julgada pelo grau em que serve como prote��o contra transforma��es concretas e radicais na sociedade americana. Basta pedir que uma hist�ria seja interessante e bem executada e que os personagens sejam memor�veis e densos.

A fic��o n�o pode salvar o mundo, mas pode descrever for�as importantes em a��o na nossa pol�tica e cultura que possivelmente n�o sejam captadas nos dados de pesquisas e na cobertura do jornalismo pol�tico convencional. A quest�o � se reconhecemos essas descri��es quando nos deparamos com elas e o que fazemos em resposta.

OUTRAS OBRAS

Durante a campanha presidencial de 2016, cr�ticos –entre os quais me incluo enfaticamente– escreveram um artigo atr�s do outro sobre obras de arte que diagnosticaram ou descreveram as pr�prias for�as que ajudaram a conduzir Trump � Presid�ncia, muitas criadas nos anos entre o breve flerte de Trump com uma candidatura � indica��o presidencial pelo partido Libert�rio, em 2000, e sua entrada real no campo republicano, em 2015.

O filme "Idiocracia" (2006), de Mike Judge, mostrou um populacho embriagado com e iludido por produtos corporativos e espet�culos de entretenimento como luta livre profissional e corridas de "monster trucks".

"Sem Dor, sem Ganho" (2013), de Michael Bay, captou um tipo espec�fico de sentimento americano de direito adquirido e a desconex�o entre a riqueza e as conquistas, por um lado, e o trabalho �rduo que pode produzir as duas coisas, do outro.

E o not�vel e notavelmente falho "Southland Tales: O Fim do Mundo" (2006), de Richard Kelly, mostrou um Estados Unidos no qual, ap�s uma s�rie de ataques nucleares, os cidad�os foram impelidos a aceitar um sistema nacional de identifica��o e monitoramento e se anestesiam com can��es pop de estrelas porn�, al�m de se deixarem seduzir por empreendedores desonestos.

Francamente, n�o sei se consumir esse tipo de fic��o dist�pica, que claramente abrange "O Conto da Aia", equivale a fazer press�o sobre uma ferida, como sugeriu minha colega do jornal "The Washington Post" Monica Hesse –uma maneira de sentir nossos piores medos na carne e nos preparar psicologicamente para enfrent�-los.

Tamb�m � poss�vel que usemos essas hist�rias, por mais ligadas � realidade que seus autores possam ter tentado faz�-las, como maneira de afastar nossos temores e reafirmar a n�s mesmos que somos imunes a eles.

Quando o futuro se revela "muito mais futurista do que [os cientistas] previram originalmente", como diz um personagem de "Southland Tales", ou quando a realidade come�a a desafiar as leis da plausibilidade fict�cia, como fez uma parte t�o grande da improv�vel candidatura presidencial de Trump, como devemos encarar a fic��o dist�pica e a n�s mesmos?

Talvez devamos simplesmente aprender a n�o menosprezar o inesperado. O mundo � um lugar estranho, mesmo que n�o seja estranho precisamente das maneiras que Margaret Atwood, Mike Judge ou Richard Kelly imaginaram.

ALYSSA ROSENBERG escreve um blog sobre cultura pop na se��o "Opinions" do "Washington Post".

Tradu��o de CLARA ALLAIN


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