Folha de S. Paulo


Universidades deveriam se abrir aos quadrinhos, diz autor de tese pioneira

RESUMO Nick Sousanis foi o primeiro aluno da Universidade Columbia a concluir tese de doutorado em formato de quadrinhos. A obra, premiada, chega ao Brasil com o t�tulo 'Desaplanar'. Ele analisa o processo de aprendizagem, questiona a primazia da palavra escrita na linguagem e defende a simbiose texto-imagem.

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Nick Sousanis tinha 13 anos quando criou o super-her�i Homem-Arm�rio, dotado do poder de, ao passar por uma porta, sair em qualquer tempo ou lugar. A princ�pio, o dom s� funcionava em arm�rios; talvez n�o pare�a grande coisa, mas era conveniente para um pr�-adolescente vivendo a rotina dos corredores de uma escola americana. Mais tarde, a habilidade do paladino se desenvolveu, e logo ele passou a us�-la em qualquer porta.

Hoje com 44 anos, Sousanis � um quadrinista e pesquisador laureado. Em 2014, tornou-se o primeiro p�s-graduando a apresentar � prestigiosa Universidade Columbia uma tese de doutorado em formato de hist�ria em quadrinhos.

Atuando na �rea da educa��o, deu a seu estudo heterodoxo um t�tulo pouco convencional: "Unflattening: A Visual-Verbal Inquiry into Learning in Many Dimensions" (unflattening: uma investiga��o verbo-visual sobre o aprendizado em v�rias dimens�es).

No ano seguinte, sua tese foi publicada pela editora da Universidade Harvard e ganhou, na categoria de humanas, o pr�mio mais tradicional para pesquisas e trabalhos acad�micos nos Estados Unidos (o American Publishers Awards for Professional and Scholarly Excellence). Nunca uma HQ havia recebido essa distin��o, e ainda nenhuma voltou a merec�-la.

Agora seu livro chega ao Brasil sob o nome "Desaplanar" [trad. �rico Assis, Veneta, 208 p�gs., R$ 84,90], com lan�amento previsto para este m�s. Assim como n�o se encontra "unflattening" nos dicion�rios da l�ngua inglesa, "desaplanar" � um neologismo em portugu�s. De acordo com o autor, seja como for traduzido o t�tulo original, ele deve preservar o sentido de algo ativo e em movimento, inacabado e inacab�vel.

"Eu realmente n�o quis definir 'unflattening', pelo menos n�o com mais palavras. Em todo o meu trabalho, pelo uso de met�foras, tento criar coisas que possam ser lidas de formas diferentes dependendo de quem estiver lendo", afirma Sousanis em entrevista � Folha, por e-mail.

"Isso tamb�m constitui o argumento do livro –certas coisas v�o al�m do que palavras conseguem expressar e at� podem soar irracionais, mas, parafraseando a fil�sofa Susanne Langer, elas apenas n�o cabem na estrutura da linguagem."

Reprodu��o
Reprodu��o da p�g. 51 de
acima, reprodu��o da p�g. 51 de "Desaplanar"

Valorizando a multiplicidade de perspectivas t�pica dos quadrinhos , o autor analisa as formas pelas quais os seres humanos adquirem conhecimento, reflete sobre a separa��o entre a express�o verbal e a visual e questiona a primazia da palavra escrita na constru��o do pensamento.

ORIGENS

Os experimentos da pr�-adolesc�ncia n�o foram em v�o. Em "Desaplanar", ao tratar da simbiose entre texto e imagem como modo ideal para o aprendizado, Sousanis retorna ao Homem-Arm�rio e aprofunda a discuss�o sobre a habilidade de atravessar portas.

Em uma sequ�ncia de desenhos ligados ao super-her�i, escreve: "� isto aqui, o espa�o intermedi�rio que conecta dois lugares de modo n�o usual. Isto que � a imagina��o. Uma ruptura na trama da experi�ncia, uma dobra no espa�o".

O autor em seguida explica que o paladino surgiu de seu fasc�nio por chaves e fechaduras e pelas hist�rias que seu irm�o contava a respeito do que havia no guarda-lou�a e no s�t�o, cuja porta se mantinha sempre fechada. Destacando que pa�ses das maravilhas costumam ser acessados por portais comuns, como buracos de coelhos e espelhos, conclui: "Seja qual for o meio de transporte –a imagina��o oferece outro ponto de vista a partir do qual iniciar nova jornada".

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Reprodu��o da p�g. 62 de
Reprodu��o da p�g. 62 de "Desaplanar"

Convidado da 4� edi��o das Jornadas Internacionais de Hist�rias em Quadrinhos da USP (de 22 a 25 de agosto), Sousanis � filho de um professor de f�sica e de uma professora de estudos ambientais que sempre se mostraram abertos � leitura de quadrinhos dentro de casa. Por influ�ncia de seu irm�o mais velho, a primeira palavra que pronunciou foi Batman. "Algo que quase intencionalmente repliquei com minha filha", acrescenta.

A forma��o profissional do hoje quadrinista e professor do Departamento de Humanidades e Estudos Liberais da Universidade Estadual de San Francisco �, assim como "Desaplanar", heterodoxa e fortemente marcada por uma diversidade de pontos de vista.

Graduou-se em matem�tica na Universidade Western Michigan, mas dedicou os anos seguintes ao t�nis, primeiro como atleta profissional, depois como instrutor. Em 2002, ele e seu irm�o John fundaram o site TheDetroiter.com, com a proposta de cobrir a cena art�stica de Detroit. Ap�s vender a plataforma, em 2008 ele se mudou para Nova York j� em busca de seu doutorado em educa��o no Programa de Estudos Interdisciplinares da Universidade Columbia.

"Minha ideia inicial era produzir um quadrinho como tese sobre algum t�pico educacional, possivelmente f�sica, por causa do meu pai", conta Sousanis.

Sua proposta, por�m, soou mais radical do que ele imaginava. Ao contr�rio do que presumira, o debate sobre a presen�a de HQs na academia n�o estava superado. "Ent�o meu projeto se transformou num estudo sobre o pr�prio projeto", afirma.

"Comecei a pensar na forma como a p�gina est�tica e plana ['flat', em ingl�s] de um quadrinho poderia conter mais informa��es do que parecia poss�vel –a meu ver, mais do que um texto conseguiria", diz. "De alguma forma, a p�gina estava 'desaplanando' ['unflattening', em ingl�s] para mim. O termo ficou na minha cabe�a."

Estimulado por alguns professores –interessados em m�todos de ensino n�o convencionais e em novos sistemas de avalia��o–, Sousanis seguiu em frente. "A ideia de 'Desaplanar' acabou se tornando muito mais pol�tica, por eu estar buscando reverter preconceitos contra o uso de elementos visuais como ferramenta para estimular o pensamento", diz.

TESE

Sua miss�o passou a ser n�o s� difundir os quadrinhos como um formato leg�timo para o discurso acad�mico mas tamb�m atacar o predom�nio da escrita e sugerir outras possibilidades, num verdadeiro exerc�cio de metalinguagem.

"O termo 'desaplanar' ganhou uma multiplicidade de significados relacionados a educa��o, interdisciplinaridade e intera��o imagem-texto, bem como significados ligados ao ponto de partida: quadrinhos s�o legais."

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Reprodu��o da p�g. 67 de
Reprodu��o da p�g. 67 de "Desaplanar"

As conquistas de "Desaplanar" como tese de doutorado n�o impediram a obra de obter sucesso fora dos muros da academia. A HQ tamb�m ganhou o Lynd Ward Prize de melhor graphic novel de 2015, entregue pela Universidade Estadual da Pensilv�nia, e foi uma das indicadas ao Eisner Awards, o pr�mio m�ximo da ind�stria de quadrinhos dos EUA, na categoria melhor pesquisa/trabalho acad�mico.

Entre os m�ritos de Sousanis no reino dos quadrinhos est�o n�o repetir nenhuma vez o design das suas p�ginas e intercalar desenhos realistas com formas geom�tricas simples, no intuito de refor�ar a necessidade de olhar para o mundo de novas maneiras.

Mais uma vez, foi um trabalho heterodoxo. Sousanis n�o dispunha de um roteiro predefinido, por exemplo. "Sempre me perguntam: 'voc� escreveu primeiro as palavras ou come�ou pelos desenhos?' E eu respondo: 'sim'."

Ele explica: "Se eu tivesse escrito um roteiro antes para s� depois ilustr�-lo, teria sido um projeto diferente, teria tomado dire��es muito diferentes. Muito do livro chegou a essa forma por eu ver coisas nos meus cadernos de esbo�os que despertavam uma ideia e suscitavam outras pesquisas. Nunca tentei 'fazer caber' um desenho em algo que eu tivesse escrito".

Sousanis enxerga o processo como um c�rculo, sem um ponto de partida, e seu resultado, como uma propriedade emergente (no��o que denota aquilo que surge a partir da intera��o entre diversos componentes, sem estar presente em nenhum tomado individualmente).

"Os esbo�os s�o repletos de palavras, e palavras s�o um gatilho para desenhos, assim como desenhos sugerem palavras que os acompanhem", afirma.

A aus�ncia de um personagem fixo e de uma hist�ria permeando "Desaplanar" levou Sousanis a pensar cada uma das p�ginas de forma quase aut�noma. "E essa solu��o s� vem a partir dos desenhos e da minha imers�o, de tentar coisas diferentes e confiar que isso vai me conduzir a algum lugar interessante", diz. Movido pela f� nos rumos pr�prios do projeto, retornou aos livros constantemente para pesquisar algo novo a partir do est�mulo de suas ilustra��es.

REFER�NCIAS

Embora a obra desperte interesse entre n�o iniciados no mundo acad�mico, o livro � essencialmente uma tese de doutorado e, por isso, vem repleto de cita��es liter�rias e filos�ficas.

Do grego Plat�o (427-347 a.C.), por exemplo, menciona a desconfian�a quanto � natureza ilus�ria da percep��o humana. H� ainda cita��es do franc�s Ren� Descartes (1596-1650), considerado o fundador da filosofia moderna, do racionalista holand�s Baruch Spinoza (1632-77), do soci�logo alem�o Herbert Marcuse (1898-1979) e do escritor italiano Italo Calvino (1923-85), entre outros.

A maior refer�ncia de Sousanis, todavia, � uma obra de fic��o cient�fica: "Planol�ndia - Um Romance de Muitas Dimens�es", do brit�nico Edwin A. Abbott (1838-1926). Publicado originalmente em 1884, o livro � ambientado no mundo bidimensional de Planol�ndia e funciona como uma cr�tica � sociedade vitoriana da �poca, com homens representados como pol�gonos de v�rios lados, e mulheres, como linhas.

O trabalho do ingl�s serve como esp�cie de justificativa para "Desaplanar". Ele escreve: "Tal � a situa��o dos planolandeses, encurralados pelas fronteiras do que enxergam, incapazes de imaginar outra possibilidade. Romper estes padr�es de ra�zes t�o fundas exige um empurr�o, uma ruptura na experi�ncia que ilumine as fronteiras e os meios de transcend�-las".

O livro de Sousanis, no mundo real da academia, foi esse empurr�o. Passada a resist�ncia inicial, seu trabalho teve �tima recep��o. Ainda nas fases iniciais, seu projeto ganhou destaque em The Chronicle of Higher Education, principal site voltado para o universo do ensino superior dos EUA.

Na avalia��o do autor, boa parte da repercuss�o decorre de uma demanda por novos formatos de pesquisa e pelo aumento do interesse em quadrinhos. "Tive sorte de fazer esse trabalho enquanto essas duas for�as estavam em movimento, o que resultou em v�rias oportunidades de compartilhar meu estudo em outras universidades e confer�ncias antes mesmo de concluir a tese e public�-la", diz.

Sua expectativa � a de que o trabalho abra portas para outros pesquisadores. "Importava menos o fato de eu ser o primeiro a fazer isso do que o de n�o ser o �ltimo", afirma. "Se voc� est� estudando e tem uma ideia que n�o se parece com nada que veio antes, voc� passa a ter mais alguma coisa para apontar e dizer que h� um precedente. J� vi isso acontecer e estou confiante que mais mudan�as vir�o."

O autor, naturalmente, n�o sugere que todos passem a fazer pesquisas acad�micas no formato das HQs. Ele defende o uso de formatos e linguagens n�o convencionais, desde que sejam compreens�veis aos leitores. "[O ideal � que] a qualidade do trabalho e o dom�nio de seu argumento e sua forma sejam o mais importante."

Para Sousanis, por�m, os quadrinhos possuem vantagens em rela��o a outros modos de express�o. Ele explora a ideia –difundida principalmente pelo quadrinista norte-americano Chris Ware– de que a linguagem das HQs corresponde, mais do que outras, "ao jeito como percebemos as coisas em nossas mentes".

Ware, autor de obras-primas como "Jimmy Corrigan - O Menino Mais Esperto do Mundo" e "Building Stories", sustenta ideia semelhante, dizendo que o potencial dos quadrinhos para capturar o fluxo e o refluxo da consci�ncia humana foi pouco explorado.

VANTAGENS

Outras refer�ncias s�o Scott McCloud, quadrinista americano, e Thierry Groensteen, franco-belga que teoriza sobre HQs. O primeiro destaca o aspecto sequencial dos quadrinhos, e o segundo, a natureza interconectada de uma p�gina.

"Costumo falar de todas essas coisas (bem como da intera��o palavra-desenho) como ativos dos quadrinhos. Jeitos de dizer algo nos quadrinhos que n�o poderia ser dito de outra forma", diz Sousanis.

De acordo com ele, essa � a caracter�stica mais empolgante dos quadrinhos: "A capacidade de reunir num �nico formato os aspectos sequenciais e simult�neos da consci�ncia. Isso � o que eu enfatizo nas minhas aulas e palestras."

Sousanis desenvolve o tema: "Testemunhamos o tempo passar de forma sequencial –os ponteiros do rel�gio avan�am, mudamos de uma atividade para outra, e assim por diante. Mas, ao mesmo tempo, os pensamentos est�o sempre � deriva, acontecendo todos de uma vez. Os quadrinhos n�o s� nos permitem respirar tanto no mundo das imagens quanto no dos textos como nos possibilitam ter experi�ncias de simultaneidade e sequencialidade, o que lhes d� enorme poder diante de narrativas complexas ou para explorar ideias a fundo".

O quadrinista, entretanto, diz se considerar conservador em rela��o a experimenta��es com HQs. "Gosto de fazer coisas que possa segurar nas m�os, passar as p�ginas e ler como eu fazia quando tinha cinco anos. Acho que ainda tenho tanto a aprender sobre fazer quadrinhos que posso esperar um pouco para testar os limites dos formatos tradicionais."

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Quase tr�s anos ap�s o lan�amento de "Desaplanar" nos EUA, Sousanis trabalha numa esp�cie de continua��o do livro. Ainda sem t�tulo definido, o volume ser� um guia complementar ao trabalho de doutorado e tamb�m sair� pela editora da Universidade Harvard. "Se tenho dificuldade para falar de um livro que terminei h� tr�s anos, � ainda mais dif�cil falar sobre um que ainda estou desenvolvendo", brinca o autor.

"Se 'Desaplanar' argumentou a favor da sua pr�pria exist�ncia, esse pr�ximo vai tratar do aspecto mais pr�tico das coisas", diz.

Enquanto o doutorado teve entre suas inspira��es um empenho em pensar como o mundo e o ensino poderiam ser para sua filha, agora ele � influenciado pelo que aprende com a crian�a e com os alunos que assistem a suas aulas na universidade. "Quero ajudar as pessoas a reaprender a import�ncia de fazer perguntas e a saber que s�o capazes de atos criativos", afirma.

RAMON VITRAL, 31, � jornalista especializado em hist�rias em quadrinhos e editor do blog Vitralizado.


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