Folha de S. Paulo


Em novo romance, mulher ajuda a investigar seita ocultista em S�o Paulo

Ana Matsusaki

SOBRE O TEXTO Este trecho integra o romance "As Perguntas", que a Companhia das Letras lan�a em agosto. O mote � a convoca��o da protagonista para uma investiga��o que envolve uma seita ocultista e pessoas desaparecidas.

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O quarto est� terrivelmente escuro, pois a persiana n�o deixa passar o menor rastro de luz, n�o h� um s� ponto luminoso vermelho de uma televis�o esperando ser ligada, nenhum equipamento eletr�nico em modo de espera, mas Alina sentiu que � hora de acordar, seu sono j� n�o � imagens e sons, mas apenas uma bruma densa onde o corpo parece afundar, e ent�o o alarme do despertador disparou, � um toque que ela tinha escolhido pensando num despertar leve e calmo, mas o som era hist�rico como qualquer outro que escapa do celular, e a luz do aparelho come�ou a piscar de forma epil�tica, e com o bra�o Alina conseguiu alcan�ar o monstro e apertar o bot�o de soneca, permitindo mais dez minutos de sono que sabia que n�o teria, pois nunca consegue voltar a dormir depois do esc�ndalo do despertador. Ainda assim, permaneceu deitada, a cabe�a mergulhada no travesseiro, aguardando o segundo toque, sabendo que o segundo toque indicava sete e quarenta da manh� e que ela n�o teria escolha a n�o ser levantar. De olhos fechados, tentou se recordar do �ltimo sonho, algumas imagens apareceram na tela escura de sua mente, e logo se arrependeu da tentativa.

Pegou o celular na m�o, desativou o alarme, mas continuou ali na cama, criando for�as para sair. O que mais a motivava a se levantar n�o era o risco de chegar atrasada ao trabalho, mas algo que havia lido na internet durante a semana, uma mat�ria sobre sintomas claros de depress�o, que inclu�a dificuldade de sair da cama e come�ar o dia, a frase "a manh� � o pior momento para a pessoa deprimida". Alina n�o era clinicamente deprimida, n�o que soubesse, mas �s v�speras de completar 30 anos fora tomada por um medo de desenvolver a doen�a, como um idoso que procura ind�cios de que est� nos primeiros est�gios de Alzheimer ou dem�ncia.

Por volta das oito da manh� ela enfim se levantou, abriu a porta do quarto, percebeu que a porta da colega de apartamento continuava fechada, escutou um miado do gato que dormia no outro quarto, entrou no banheiro, abriu a torneira de �gua quente e esperou alguns minutos at� a �gua aquecer, observando litros de �gua escorrerem pelo ralo, lembrando-se de todas as not�cias alarmantes de que S�o Paulo ficaria sem �gua caso n�o chovesse, caso a popula��o n�o mudasse de forma radical seus h�bitos e n�o economizasse �gua. A ducha foi r�pida e sem prazer. Alina retornou ao quarto enrolada na toalha e, por algum motivo, n�o acendeu a luz. Fechou a porta e ficou no escuro por um tempo, gotas de �gua escorrendo do cabelo e pingando no ch�o, sentindo o cheiro um pouco ran�oso de um quarto que costuma permanecer fechado durante a semana toda, e tentava discernir a silhueta da cama, do arm�rio, sentindo-se uma invasora num local povoado de fantasmas.

No �nibus, quase nove da manh�, Alina de p�, apoiou-se com a m�o esquerda na barra de ferro e ficou mexendo no celular com a direita, vendo uma sequ�ncia de fotos de diferentes pessoas numa lista vertical, todas as festas que perdera na noite anterior, sua amiga b�bada em alguma cobertura em Londres, a imagem de uma praia de mar azul do Nordeste, que com certeza fora tirada ontem ou at� mesmo antes, mas postada apenas agora, um protesto no Recife contra alguma atitude pol�tica sobre a qual Alina n�o sabia muito, uma foto de cinco minutos atr�s com filtros que d�o um ar antiquado a uma imagem do nome da pessoa escrito em um copo pl�stico de caf�, e Alina se deu conta de que sa�ra correndo de casa sem tomar caf� da manh�. O �nibus brecou de repente e ela quase perdeu os fones de ouvido. Na avenida Paulista, desceu um ponto antes, caminhou at� o Starbucks e, ap�s enfrentar uma fila de estrangeiros, conseguiu pedir um bolinho e um balde de caf� que ela esperava conter poderes m�gicos de suspender o peso opressor do sono que pairava sobre seus ombros. Saiu para a rua, soprando o l�quido pela fresta no copo de isopor enquanto caminhava. Um dia ela achou que tomar caf� em movimento era muito chique, muito elegante, e nos primeiros meses ap�s ter se mudado para S�o Paulo sentia-se como nova-iorquina mesmo sem nunca ter visitado os Estados Unidos. Agora, experimentando o vento matinal, pensando no quanto estava atrasada para o trabalho, o tempo que teria que ficar a mais no seu cub�culo por causa dessa demora, ela se sentia completamente idiota. Alina queimou sua l�ngua com o caf� fervente, quase derramou o conte�do do copo no vestido azul ao desviar de pessoas com uma prancheta na m�o que diziam "s� uns minutinhos" e "oi voc� pode responder a essa pesquisa r�pida?", e pensou por que ainda fazia isso, por que n�o tomava um caf� sentada, com calma, por que insistia em beber caf� em movimento, por quanto tempo ainda acharia aquilo algo elegante, sofisticado.

Alina entrou no edif�cio, passou o cart�o que liberava a catraca, subiu ao vig�simo primeiro andar, o elevador vazio; afinal as pessoas n�o costumam se atrasar, pelo contr�rio, s�o capazes de organizar sua vida, at� mesmo quem tem filho pequeno para deixar na escola, at� essas pessoas conseguem tomar caf� da manh� saud�vel e tranquilo, e Alina saiu do elevador e pressionou o dedo contra o ret�ngulo verde do controle biom�trico que abre a porta de entrada do escrit�rio, a m�quina cuspiu um papel e ela leu seu nome seguido do hor�rio 09:45:34, que significava que ela teria de ficar no seu cub�culo at� 18:45:34, e que se sa�sse um minuto antes haveria desconto no seu sal�rio. N�o que ela costumasse sair antes, pelo contr�rio, como dependiam do envio de material por parte dos clientes, in�meras vezes fazia hora extra at� de madrugada, mas, mesmo se sa�sse nesse hor�rio espec�fico calculado pela m�quina, provavelmente chegaria em casa quase �s oito da noite, cansada, seu dia teria se esva�do, nada de interessante teria acontecido, e a exaust�o a dominaria de tal forma que a deixaria sem for�as para qualquer coisa al�m de passar no supermercado ou na padaria para arranjar algo barato para comer enquanto assistia a alguma s�rie antes de dormir no sof�.

Cumprimentou a secret�ria e passou pela estagi�ria que fazia c�pias na m�quina de xerox. Fora isso, n�o encontrou mais ningu�m at� chegar ao seu cub�culo cinza, jogou a bolsa sobre a mesa e ligou o computador, tomando os �ltimos goles de caf�, agora numa temperatura aceit�vel, enquanto o s�mbolo do Windows aparecia na tela. Abriu duas janelas do navegador: numa, conferiu o e-mail de trabalho, a caixa de entrada com dez e-mails que ela preferiria n�o ler; em outra, seu e-mail pessoal, que ela n�o tinha conferido no celular durante a viagem de �nibus, e que trazia duas novas mensagens na caixa de entrada, uma de um amigo mandando um link de YouTube para a m�sica nova de uma banda da qual ela gostava, e a outra que fez Alina sentir um arrepio pelo corpo inteiro antes mesmo de abrir a mensagem e que transmitiu o sentimento de que, ao contr�rio do que aquele in�cio de manh� indicava, aquele dia n�o seria como qualquer outro.

ANT�NIO XERXENESKY, 32, escritor e tradutor, � autor de "F," (Rocco).

ANA MATSUSAKI, 30, � ilustradora e designer.


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