Folha de S. Paulo


Alan Moore lan�a romance colossal em que passado e futuro s�o um s�

RESUMO Respons�vel por uma sequ�ncia de HQs que, a partir da d�cada de 1980, marcou e modificou o g�nero, Alan Moore acaba de lan�ar um longo romance, intitulado "Jerusal�m". De casa, no interior da Inglaterra, ele fala sobre sua aventura criativa, compara o escritor a um mago e critica a grande ind�stria dos super-her�is.

Gavin Wallace Hoax /"The New York Times"
O autor de quadrinhos e livros Alan Moore em foto sem data
O autor de quadrinhos e livros Alan Moore em foto sem data

Alan Moore, o criador de "Watchmen" e "V de Vingan�a" em sua gl�ria de quadrinista imortal. Alan Moore, o m�gico cerimonial conjurando cabelos nas pedras e desaparecendo em ermas florestas. Alan Moore, jovem e desconhecido, trabalhando em salas comerciais e vendendo LSD para estranhos. Alan Moore, o dubl� de estudioso da quarta dimens�o e escritor do romance mais longo dos �ltimos tempos. Todas essas encarna��es ou facetas talvez coincidindo num s� estrato temporal.

� nesse universo eternamente im�vel, onde todas as possibilidades s�o realizadas (chamado na filosofia de "eternalismo"), que transita a imagina��o de Alan Moore. E � dele que fez brotar seu novo romance, uma obra monumental de quase 1.300 p�ginas.

"Minha concep��o pessoal � de uma eternidade que seja imediata e presente o tempo todo. Um universo-bloco, imenso e hiperdimensional, em que o passado e o futuro coabitam; uma vasta bola de neve da exist�ncia em que nada se move e nada muda, acontecendo para sempre", escreve-me Alan Moore, 63, de sua casa no interior da Inglaterra. Dali, meio recluso, continua a mandar sinais estranhos ao mundo.

O calhama�o "Jerusal�m" (Liveright), ainda sem tradu��o no Brasil, �, segundo a Wikip�dia, o 21� mais longo romance de todos os tempos, um pouco maior do que o cl�ssico contempor�neo "Gra�a Infinita", de David Foster Wallace, e um pouco menor do que o can�nico "Guerra e Paz", de Tolst�i.

Troquei mensagens com Moore para tentar delinear os contornos da filosofia m�gica que rege sua vida e falar um pouco sobre esse novo tomo, cuja escrita consumiu mais de dez anos.

A maior parte da a��o de "Jerusal�m" se passa na regi�o mais antiga de Northampton (centro da Inglaterra), chamada The Boroughs. � sobre esse tabuleiro que Moore vai movimentar as d�zias de personagens que ir�o trafegar, numa massa de epis�dios e vozes oriundas de diversas faixas de tempo, entre o ano 4.000 antes de Cristo e os dias atuais –e al�m.

Embora haja um eixo narrativo (trata-se da saga de n�cleos familiares reais e imagin�rios), o conjunto se l� melhor se compreendido, mais do que como um folhetim convencional, como um espa�o do qual o leitor entra e sai a seu bel-prazer.

Nas ruas do centro de Northampton veremos prostitutas viciadas em hero�na, poetas esquizoides aninhados no lar materno, um rapaz que engasga por dez minutos e come�a a ter vis�es prof�ticas, a hist�ria da pol�tica local, seus oficiais corruptos e seus �cones contraculturais, a filha de James Joyce internada em um asilo, Samuel Beckett fumando nas escadas, anjos que jogam bilhar com almas humanas num pub sujo, Oliver Cromwell na v�spera de uma batalha hist�rica, uma gangue de crian�as mortas que literalmente escavam as camadas do tempo e a fuga de peregrinos rumo ao fim dos tempos num cl�max esot�rico.

O hiperdescritivismo barroco de Moore, que se espraia por centenas de vozes, estilos e pontos de vista diferentes, ora entedia, ora inebria. Como define um dos personagens, trata-se de "uma narrativa apocal�ptica contada pela voz dos pobres", al�m de uma cartografia definitiva e lun�tica de Northampton.

"'Jerusal�m' � fruto da necessidade de falar sobre a pequena, mas peculiar The Boroughs, �rea onde fui criado e, simultaneamente, da vontade de retratar a minha fam�lia de uma maneira que inclu�sse a hist�ria dela. Precisava de um livro que pudesse abarcar realismo social brutal de um lado e experimentalismo fant�stico de outro", afirma o escritor.

MAGIA

O fant�stico est� em todas as vertentes da obra de Moore, que em 1993, ao completar 40 anos, declarou-se oficialmente mago, numa mudan�a de identidade rumo ao que chamou de "buraco negro intelectual". Para ele, os pap�is do artista e do feiticeiro convergem: trata-se sempre de remixar s�mbolos e representa��es do mundo para, num gesto demon�aco ou divino, transform�-lo.

Segundo Moore, a bruxaria pode modificar a realidade. "A m�gica est� entrela�ada com o desenvolvimento da consci�ncia humana, que come�a h� 7.000 anos, durante a revolu��o cognitiva", escreve ele. "Esse salto na percep��o � tradicionalmente relacionado com o desenvolvimento do uso da linguagem."

Vizires, artistas, escritores, m�sicos, xam�s foram durante mil�nios os deposit�rios da verdade e do conhecimento humano, at� o advento das revolu��es cient�ficas. Com elas a raz�o triunfou sobre a imagina��o, diz Moore. A alquimia virou qu�mica, as curas herbais se tornaram rem�dios. A psican�lise acabou de vez com a ideia do pensamento m�gico arcaico. Mas esse mundo dissipado permanece nas frestas da cultura, insiste o mago.

"Vejo a cultura moderna como o equivalente, na magia, a um corpo desmembrado. Como faziam os alquimistas ao retirar algum elemento do seu meio para analisar suas caracter�sticas e depois reagrupar os fragmentos de um novo jeito, a tarefa dos artistas � montar novamente as vis�es de mundo e psicologias fraturadas que nos rodeiam", diz o brit�nico.

Ainda na rubrica da magia e dos acontecimentos enigm�ticos, pe�o a ele que reconstitua o epis�dio mais ins�lito que j� viveu. "Lembro-me de estar nadando nas correntes profundas e cristalinas do vale de Glen Nevis (Esc�cia), nos anos 1970. Ap�s sair da �gua e escalar uma rocha de doze p�s [cerca de 3,6 m], descobri um pequeno parapeito de pedra, em cima do qual havia uma pilha de madeixas de cabelo em bom estado, louros e definitivamente humanos. Parecia ser de uma crian�a. Foi algo que, na falta de qualquer explica��o plaus�vel, classifiquei como estranho ou at� sinistro."

SEM SUPER-HER�IS

Antes de enveredar pelos romances, Alan Moore lan�ou, a partir dos anos 1980, uma sequ�ncia incr�vel de HQs que revolucionaram as hist�rias de super-her�is e ajudaram a construir um mercado para os quadrinhos adultos.

"V de Vingan�a" lan�ava terroristas anarquistas e estilosos em uma Inglaterra dist�pica. Em "Watchmen", os protagonistas eram super-her�is decadentes a vagar por um mundo ca�tico. "Do Inferno" perscrutava a psique de Jack, o Estripador na Londres vitoriana. "Liga Extraordin�ria", "O Monstro do P�ntano" e "Marvelman" foram outros t�tulos que ajudaram a cimentar a vis�o de Moore no pante�o dos mais not�veis criadores de quadrinhos.

Mas isso � passado. "N�o tenho mais c�pias dessas obras e, afora o trabalho criativo honesto ligado � concep��o delas, minhas �nicas associa��es com esses t�tulos s�o amizades rompidas, trai��es corporativas perfeitamente ordin�rias e esfor�o em v�o", dramatiza ele.

Tamb�m entra na conta do desenhista a desconstru��o de her�is tradicionais, como Batman e Superman, em hist�rias desprovidas da inoc�ncia caracter�stica dos quadrinhos comerciais. Mas h� alguns anos Moore vem se afastando desse mainstream e assinando cria��es para editoras menores, enquanto experimenta em outras �reas.

Projetos de filmes, letras de can��es, performances alqu�micas, hist�rias pornogr�ficas, enciclop�dias de magia e aplicativos que habilitam qualquer um a criar quadrinhos vieram � tona.

No meio de 2016, ele declarou que seu ba� estava minguando: s� lhe restavam 250 p�ginas de quadrinhos n�o publicados. A insatisfa��o com a interfer�ncia das grandes editoras no seu trabalho tornou inexor�vel o rompimento definitivo. Perguntado sobre a cultura dos super-her�is, respondeu de forma mordaz. "� exce��o de uma pequena minoria, essas hist�rias e personagens ic�nicos ainda s�o sonhos do suprematismo racial branco. Acho inclusive que poder�amos considerar o filme 'O Nascimento de uma Na��o' (1915), de D.W. Griffith, a primeira fita de super-her�i americano e o ponto de partida para todas estas capas e espadas", escreve, fazendo alus�o �s cenas daquela produ��o que mostram integrantes da organiza��o supremacista Ku Klux Klan.

E emenda: "Ainda respeito e amo o meio dos quadrinhos e posso vir a trabalhar nele novamente, mas por ora prefiro cortar os la�os com a ind�stria, que me parece disfuncional, sem esperan�as, e muito defasada. H� muito material incr�vel, mas se eu tivesse que escolher apenas uma tirinha, seria a sublime 'Herbie', de Richard. E. Hughes e Ogden Whitney, publicada originalmente nos anos 1960. Isso n�o diminui os outros grandes feitos do meio, de Lynd Ward e Winsor McCay at� Harvey Kurtzman e Will Eisner, e tamb�m Garth Ennis e Kieron Gillen".

SONHO

Ao fim da conversa, pe�o a ele uma defini��o de utopia pol�tica pessoal. "Sou entusiasta da anarquia. Ela implica que devemos tomar responsabilidade por nossas a��es e servir como l�deres de n�s mesmos. Nossa esp�cie por mil�nios e mil�nios foi n�o hier�rquica. Nas sociedades de ca�adores-coletores, o maior pecado era delegar para si um status maior do que o de qualquer outra pessoa. Acho que para nos tornarmos completos como seres devemos manter a paz individual com o universo e ficar, homens e mulheres, totalmente desnudos de status sob o c�u estrelado que com certeza torna tudo isso desnecess�rio."

RAPHAEL SASSAKI, 28, � jornalista.


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