Folha de S. Paulo


O Brasil moderno do casal Bardi

RESUMO Em entrevista � "Ilustr�ssima", o diretor art�stico do Masp, Adriano Pedrosa, considerou que o museu era fruto de uma tens�o entre duas vis�es, a de Pietro Maria Bardi, um homem do s�culo 19 e Lina Bo Bardi, uma mulher do s�culo 20. Aqui, Renato Anelli defende que houve di�logo constante, e n�o antit�tico, entre os dois.

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Conhecer e avaliar o papel de Pietro Maria Bardi (1900-99) na forma��o e desenvolvimento do Masp � um desafio que cresce conforme se amplia o reconhecimento da arquitetura de Lina Bo Bardi (1914-92).

� grande o risco de torn�-los tese e ant�tese, como fez o curador Adriano Pedrosa em entrevista publicada na Ilustr�ssima de 26 de abril passado.

Em meio ao excelente trabalho de recupera��o da expografia e da arquitetura do museu que desenvolve, o curador se equivocou ao considerar Pietro "um homem do s�culo 19" em oposi��o a uma Lina "moderna, do s�culo 20". A despropor��o entre os estudos acad�micos sobre ambos vem ampliando o risco de atribuir a Lina concep��es elaboradas pelos dois, ou mesmo apenas por Pietro.

Mais correto seria entendermos o Masp como o fulcro de um projeto de a��o cultural modernizadora do casal Bardi, que se estendeu � arquitetura, design, teatro, moda, publicidade, edi��o e ensino.

Quando se conheceram, em 1943, Lina estava no in�cio de sua carreira, enquanto Pietro j� apresentava uma longa trajet�ria pautada pela defesa da arte e da arquitetura modernas. Autodidata, combinou v�rias frentes de atua��o em revistas e jornais � atividade de marchand e, mais tarde no Brasil, de diretor de museu.

Destaque-se que a participa��o de Pietro na organiza��o da "Segunda Mostra Italiana de Arquitetura Racional", em 1931, foi decisiva para o espa�o conquistado pelos jovens modernos na It�lia fascista. Seu objetivo foi disputar a hegemonia exercida por Marcello Piacentini, ent�o no controle de um processo de moderniza��o sem ruptura com a tradi��o acad�mica.

Bardi organizou uma exposi��o provocativa, iniciando com um painel de colagens que ridicularizava o provincianismo da arquitetura italiana. Durante a visita de Mussolini � abertura da mostra, apresentou um documento ao Duce, no qual defendia que a arquitetura racionalista deveria ser adotada como arte de Estado, por ser a melhor express�o daquilo que entendia ser o car�ter modernizador do fascismo.

Apesar da rea��o negativa ao pleito, abriu-se ali um per�odo de aceita��o da arquitetura moderna em muitos projetos p�blicos.

De toda sua a��o como editor, cr�tico e jornalista, a experi�ncia mais bem sucedida foi a revista "Quadrante", fundada por ele em 1933 e um dos principais vetores do debate moderno.

No mesmo ano aproximou-se dos arquitetos das vanguardas ao participar do quarto Congresso Internacional de Arquitetura Moderna. Ao levar Le Corbusier para confer�ncias em Roma e Mil�o, em 1934, Bardi consolidou-se como uma refer�ncia de milit�ncia moderna. Atua��o que despertaria a aten��o da jovem Lina Bo.

Sua ades�o ao fascismo � controversa. Estudos recentes revelam uma figura isolada, cuja concep��o pol�tica n�o era aceita pelos membros do Partido Fascista. Do fascismo, manteve apenas sua clara predile��o por l�deres fortes, motivo da imediata empatia com Assis Chateaubriand no Brasil.

Da It�lia trouxe a concep��o museogr�fica, o modo de expor segundo o qual as obras interagem com a arquitetura dos pal�cios e castelos restaurados. O design das exposi��es de Franco Albini, de 1941, em Mil�o, com seus suportes delgados e transparentes, iguais aos usados na primeira sede do Masp, j� estava esbo�ado na disposi��o dos quadros soltos das paredes na Galleria d'Arte di Roma, dirigida por Pietro desde 1930.

TEMPOS

O problema de fundo era como pensar o moderno na It�lia, um pa�s com a presen�a de remanescentes de tantos tempos distintos de arte e arquitetura nas ruas das suas cidades.

Na arte metaf�sica de De Chirico o tema central era essa conviv�ncia. Luz e perspectiva criavam uma dimens�o de eternidade, al�m de qualquer instrumentaliza��o do cl�ssico pelo presente.

N�o por acaso os desenhos de Lina para o nunca constru�do Museu � Beira do Oceano (1951) utilizavam a profundidade e a luz metaf�sica, representando os quadros e esculturas atrav�s de colagens em perspectiva, com o oceano infinito ao fundo.

Esse ensaio se concretizaria na sala da Casa de Vidro e, posteriormente, na transpar�ncia da sede do Masp na Paulista. Cavaletes de vidro e fachadas transparentes dispunham as obras de arte em um mesmo espa�o e tempo, suspenso sobre a cidade, entre o verde do parque e a vista para o vale.

O papel de um museu de arte no Brasil colocava problemas novos em rela��o � experi�ncia italiana. O MoMA de Nova York tornou-se refer�ncia, pela sua a��o educativa. Desde 1947 o casal Bardi acompanhou as diretrizes do Icom (sigla para o nome em ingl�s do Conselho Internacional de Museus), que propunham museus como espa�os voltados � forma��o de p�blico e artistas.

O Masp foi criado com esse programa, entendendo a enorme potencialidade do r�pido crescimento econ�mico e populacional de S�o Paulo no p�s-Guerra. Em 1950, a cria��o do Instituto de Arte Contempor�nea no Masp ampliou o car�ter formativo dos primeiros anos, introduzindo cursos como o de desenho industrial, propaganda e marketing, moda, cinema, entre outros. Projeto de inser��o ativa no processo de moderniza��o e industrializa��o brasileira, que se esgotaria alguns anos depois, em meio a embates pol�ticos ao redor de seu patrono, o pol�mico Chat�.

O car�ter formativo do museu trazia o risco do eurocentrismo, corretamente apontado pelo atual curador na entrevista. Contudo foi enorme o esfor�o de reconhecimento da cultura brasileira desenvolvido por Pietro e Lina, podendo ser acompanhado nos artigos da revista "Habitat".

N�o havia contraste entre o interesse por Le Corbusier, arte barroca, ex-votos nordestinos. A cultura popular estava claramente articulada ao erudito, fosse antigo ou moderno. O museu deveria ser "sem limites", como Pietro afirma em artigo de 1951, na "Habitat".

Em sua biblioteca pessoal, livros essenciais do pensamento brasileiro apresentam anota��es e destaques que alimentaram a transforma��o do casal nas d�cadas que viveram no Brasil.

A partir do final da d�cada de 50, com a experi�ncia em Salvador e sua radicaliza��o pol�tica ap�s o golpe de 1964, Lina explicitou um car�ter pr�prio frente a Pietro. No entanto, o di�logo entre os dois permaneceu por toda a vida, de modo muito mais complementar do que antag�nico.

Somente uma maior aten��o � trajet�ria de Pietro ser� capaz de reequilibrar o que conhecemos da contribui��o do casal Bardi para a cultura brasileira.

RENATO ANELLI, 55, arquiteto, diretor do Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, � curador da mostra "Lina em Casa: Percursos", em cartaz na Casa de Vidro at� 19/7.


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