Folha de S. Paulo


Bienal de Veneza rev� legado da arquitetura moderna

A centen�ria arquitetura moderna resultou em fracasso retumbante ou sucesso nunca antes visto na hist�ria da arte? Esta � a quest�o que paira sobre a Bienal de Arquitetura de Veneza, aberta ao p�blico at� o dia 23 de novembro. A curadoria de Rem Koolhaas, conhecido por sua inventividade e cr�tica �cida, trouxe a expectativa de uma exposi��o reflexiva sobre o estado-da-arte da arquitetura, em vez de um previs�vel amontoado de projetos. O holand�s, ganhador do Pritzker em 2000 e um dos homens mais influentes do mundo segundo a revista "Time", n�o decepcionou. O resultado � um exame cr�tico do legado deixado pelo �ltimo s�culo.

Andrea Avezz�/Cortesia da Biennale di Venezia
O pavilh�o da Fran�a exibiu um modelo da Villa Arpel do filme
O pavilh�o da Fran�a exibiu um modelo da Villa Arpel do filme "Meu Tio", de Jacques Tati

Quando os pioneiros modernos -como Moisei Ginzburg, Vladimir Tatlin, Le Corbuiser e Walter Gropius- lan�aram as bases do movimento, os objetivos sociais eram claros: construir infraestrutura e habita��o, tanto na Uni�o Sovi�tica em r�pida urbaniza��o, como na Europa Ocidental devastada pela Primeira Guerra. As solu��es convergiam para a industrializa��o por meio do dom�nio das t�cnicas produtivas para massifica��o da arquitetura, at� ent�o uma exclusividade das elites. Essas premissas guiavam desde construtivistas sovi�ticos que viam no desenho um vi�s revolucion�rio, at� sociais-democratas conclamando o poder da arquitetura para desenvolver o estado de bem estar social e conter revoltas.

FUNDAMENTAL

Na "Bienal Fundamentals" -resultado de dois anos de pesquisa de seu escrit�rio AMO junto com 24 alunos de Harvard -, Koolhaas se vira para os rumos tomados agora pela t�o sonhada difus�o da constru��o. As mostras "Elements of Architecture" e "Monditalia" -que juntas comp�e a curadoria central- n�o exp�em obras dos mestres do s�culo 20, muito menos dos arquitetos-celebridades atuais. "� uma Bienal sobre arquitetura, n�o sobre arquitetos", justifica o holand�s ao ir radicalmente � ess�ncia dos elementos construtivos de qualquer edif�cio hoje, em qualquer lugar no mundo.

Para a "Elements of Architecture", no Giardini, criou ent�o uma classifica��o pr�pria de 15 itens b�sicos: piso, parede, forro, teto, porta, janela, fachada, varanda, corredor, lareira, banheiro, escada, escada rolante, elevador e rampa. As salas trazem cole��es iconogr�ficas de t�cnicas e formas dessas pe�as desenvolvidas ao longo dos �ltimos 100 anos, representando a era moderna da arquitetura.

Uma sele��o de 67 diferentes janelas dos 5.000 itens da Brooking National Collection do Reino Unido traduzem a incr�vel diversidade de tipologias desse elemento. Todas ficam penduradas em uma parede branca, como em uma cole��o de selos gigantes. A cataloga��o de elementos construtivos reaparece nas salas sobre vasos sanit�rios, portas e paredes, evidenciando o desenvolvimento tecnol�gico industrial. Estamos diante de uma esp�cie de museu -n�o de hist�ria natural-, mas de hist�ria artificial, com uma classifica��o bot�nica pr�pria.

Sobre a lareira -"a melhor forma de domina��o do fogo pelo homem", segundo o curador– s�o apresentados dispositivos altamente tecnol�gicos como um termostato digital que informa a concession�ria sobre a previs�o de consumo energ�tico. Koolhaas se p�e ao lado desse pequeno objeto e, com um raro sorriso, explica: "Antigamente, os elementos da arquitetura n�o ouviam nem falavam, agora, cada vez mais, eles se comunicam conosco".

H� nessa Bienal uma admira��o incontest�vel pelos avan�os tecnol�gicos, pelos gadgets da vida dom�stica e pela populariza��o das tecnologias. A arquitetura � hoje pop e isso � expresso pelo filme que abre a mostra -feito pela sequ�ncia de centenas de cenas avulsas extra�das de blockbusters do cinema, reeditadas para transformar os pr�prios elementos arquitet�nicos em personagens principais. Mesmo vindo originalmente de diferentes filmes, as cenas estabelecem continuidade entre si, constituindo um fluxo narrativo de imagens.

Se olhada sob a �tica da t�cnica e da difus�o do acesso � arquitetura, a exposi��o � otimista sobre os desdobramentos do moderno. Estar�amos, portanto, em um est�gio de supermodernismo, quando a arquitetura consegue se aliar � ind�stria para espalhar tecnologias por toda a cidade? Koolhaas esbo�a deslumbramento pela t�cnica, mas essa seria uma leitura parcial da exposi��o. As contradi��es do mundo da arquitetura contempor�nea s�o reveladas pelo percurso expositivo.

Se o movimento moderno exacerbava a t�cnica, n�o fazia isso sem entender a arquitetura como arte. O conceito de uma arte total tinha na arquitetura do s�culo 20 o seu principal ponto de refer�ncia. Veio de Piet Mondrian -um artista, n�o exatamente arquiteto- as declara��es mais contundentes desse sentimento moderno: "Arquitetura, escultura, pintura e artes decorativas se fundir�o numa arquitetura-do-nosso-ambiente", profetizava o holand�s em 1922. E sobre isso a Bienal de 2014 parece debater fracassos, mais do que sucessos.

Ao percorrer as salas repletas de elementos construtivos � inevit�vel n�o se lembrar de lojas de material para casa, como a famosa sueca IKEA, a qual Koolhaas j� explicitou em 2011 seus sentimentos quando perguntado sobre o urbanismo na Holanda: "� uma situa��o muito tr�gica; no s�culo 17 t�nhamos pequenas casas urbanas; na d�cada de 1960, grandes blocos modernos; da� a economia de mercado veio e temos isso", desenhando um container da IKEA. "Esta � a hist�ria da Holanda". E essa parece ser a hist�ria alternativa da arquitetura contada agora em Veneza; o fracasso criativo e social que intersecciona o triunfo da t�cnica.

Estaria o curador nos confessando ent�o que a arquitetura foi convertida em simples escolha comercial? Ao arquiteto bastaria apenas optar pela solu��o que melhor conv�m para cada um dos 15 elementos arquitet�nicos e assim criar um edif�cio, como em uma compra no supermercado? E ent�o a arquitetura se colocaria a servi�o da t�cnica -e n�o ao contr�rio- e o arquiteto seria um mero tecnocrata constrangido pela ind�stria, sem arte, sem poesia, sem futuro? Essa discuss�o levou o jornal brit�nico "Financial Times", a publicar um caderno inteiro sobre a Bienal intitulado "O fim da arquitetura", anunciando uma esp�cie de morte prematura.

Nem a morte, nem a vida da arquitetura. A for�a da exposi��o est� na rela��o dial�tica do legado moderno: sucesso e fracasso entre t�cnica e arte. Koolhaas exp�e essa rela��o complexa na sala sobre rampas. O elemento � discutido a partir do trabalho de dois personagens pouco conhecidos, Tim Nugent -que estudou rampas por 40 anos para criar diretrizes de acessibilidade universal para cadeirantes- e Claude Parent -que projetou uma casa inclinada, desafiando a vida cotidiana. "Contrap�e-se aqui o trabalho sobre o direito democr�tico de locomo��o e um devaneio vanguardista. O meu cora��o tende a bater do lado errado nessa sala; da experimenta��o po�tica de Parent", diz o holand�s.

A IT�LIA COMO O MUNDO

Se a "Elements of Architecture" discute a arquitetura a partir de uma abordagem econ�mica, a "Monditalia", no Arsenale, trata da pol�tica. A exposi��o revela criticamente as pol�ticas p�blicas das principais cidades italianas por meio de obras multim�dias. M�sica, teatro, espet�culos de dan�a ao vivo, arte, filmes e arquitetura convivem no mesmo espa�o, criando um observat�rio interativo de quest�es sens�veis da sociedade italiana. Soa, no entanto, inconsistente a restri��o nacional justamente porque a "Bienal Fundamentals" defende a inexist�ncia contempor�nea de "terroirs" locais.

H�, de qualquer forma, poderosas s�nteses em "Moditalia" dos problemas atuais do urbanismo e da arquitetura como, por exemplo, o document�rio "La Maddalena" de Ila B�ka e Louise Lemoine sobre um projeto inacabado do arquiteto Stefano Boeri. O seu gigantesco complexo de eventos na Sardenha deveria receber uma reuni�o do G8, mas depois do terremoto em Aquila em 2009, o ent�o presidente Silvio Berlusconi -que n�o gostava dos edif�cios contempor�neos na ilha- decidiu mudar a confer�ncia para o local atingindo pelo desastre. O filme � um retrato impressionante sobre o gasto de dinheiro p�blico e do drama psicol�gico vivido pelo arquiteto por causa disso. A rela��o de submiss�o da arquitetura perante a pol�tica � uma contradi��o presente desde os prim�rdios modernos, quando, por exemplo, Le Corbuiser rodava o mundo �vido por novos projetos p�blicos.

PAVILH�ES NACIONAIS

As quest�es formuladas nas duas exposi��es centrais est�o t�o latentes hoje que alguns pavilh�es nacionais -sob o tema geral "Absorvendo Modernidade 1914-2014" e com curadorias independentes- parecem verdadeiras extens�es das mostras de Koolhaas. A representa��o de Israel, pela segunda edi��o consecutiva, apresenta uma vis�o surpreendentemente cr�tica ao sionismo. M�quinas dispostas pelo pavilh�o desenham mapas de cidades israelenses, ocupa��es em territ�rios, em um ch�o de areia. S�o rob�s artistas com seus bra�os mec�nicos. A tecnologia do pa�s e a tradi��o moderna bauhausiana s�o retratadas a servi�o do controle territorial.

O pavilh�o franc�s, feito por Jean Louis Cohen e co-curado pela brasileira Vanessa Grossman, intersecciona os paradoxos modernos a partir do cinema do pa�s. O espa�o � organizado por uma maquete da Villa Arpel do filme "Meu Tio", de Jacques Tati. Na pel�cula, criando situa��es c�micas, a casa releva o conflito entre antigas formas de vida e as modernas tecnologias dom�sticas. Jean-Luc Godard aparece para retratar a solid�o em espa�os dos conjuntos habitacionais franceses da d�cada de 1960 e a contradi��o entre o suprimento de casas pelo Estado e a poesia (ou aus�ncia dela) da vida cotidiana.

O pequeno pavilh�o do Chile �, no entanto, a mais contundente representa��o nacional, expondo um achado arqueol�gico: uma placa de concreto moldada em uma f�brica presenteada em 1972 pela Uni�o Sovi�tica para Salvador Allende que assinou o elemento. Depois do golpe militar, Pinochet encobriu o aut�grafo com massa branca e a placa -feita para edificar casas- virou um altar religioso. O resqu�cio arqueol�gico da modernidade � contradi��o em puro concreto, cont�m o cerne dos paradoxos da arquitetura hoje: por vezes ref�m da t�cnica e da pol�tica; por vezes fetichista ou saudosa do moderno; por vezes avessa �s ra�zes modernas ou pura repeti��o; por vezes eterna ou ef�mera; por vezes distante da poesia e enraizada no campo das possibilidades. Achamos modernidade em nossas escava��es, mas isso nos basta?


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