Folha de S. Paulo


Herdeiro de Hilda Hilst localiza entrevista in�dita de 1978; ou�a

Reprodu��o
A escritora Hilda Hilst faz gesto com o dedo. [FSP-Ilustrada-16.04.97]*** N�O UTILIZAR SEM ANTES CHECAR CR�DITO E LEGENDA***
Hilda Hilst na juventude; escritora chamava a aten��o por fugir aos padr�es da �poca

A voz de Hilda Hilst (1930-2004) estava perdida logo ali, no meio das vozes dos fantasmas –grava��es que a escritora fazia de madrugada, pedindo algum contato da outra dimens�o (h� quem jure que, em uma delas, d� para ouvir uma alma penada dizendo "Hildinhaaa...").

A maior parte dos arquivos de �udio guardados na Casa do Sol, s�tio em Campinas onde a autora vivia, � dessas "conversas" com esp�ritos –mas n�o � que l� no meio havia uma entrevista in�dita da escritora? Agora � a voz grave de Hilst que parece vir de outra dimens�o.

A descoberta foi feita durante a pesquisa para document�rio de Gabriela Greeb sobre a escritora –previsto para setembro– e entregue a Daniel Fuentes, herdeiro da autora. A fita, gravada em 1978, � uma entrevista feita pelo artista Jos� Luis Mora Fuentes, pai de Daniel e melhor amigo de Hilst.

A descoberta veio a calhar, porque o herdeiro prepara uma caixa sobre a amizade do pai com Hilst, para enviar aos assinantes de um clube que criou, para os quais periodicamente manda preciosidades deixadas pela escritora.

Talvez por falar a um interlocutor t�o �ntimo, a entrevista n�o traz Hilda Hilst encenando alguma excentricidade. A autora fala da obsess�o pela imagem do pai, a mudan�a para a Casa do Sol, a busca de uma linguagem pr�pria, entre outros assuntos. A seguir, uma vers�o editada da conversa dos dois.

Ou�a trecho da entrevista de 1978:

Ou�a trecho da entrevista de 1978

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Os rostos do escritor

Essa coisa de entrevista fica uma coisa muito dif�cil. Todos os rostos que [o escritor] se colocou, todos os rostos que possa ter, ele j� traduziu escrevendo. Ele nunca dir� [nada] t�o bem quanto na sua obra. Numa entrevista, querem saber o que exatamente?

Penso assim: vou mostrando todos os rostos pass�veis de terem vida, se dizerem e terem realidade -ao fazer isso, procuro me aproximar do rosto de todos os outros. Mas s�o sempre os mil rostos, as mil caras desse que escreve.

A esquizofrenia do pai

� sempre dif�cil falar no que realmente fez voc� escrever. Voc� n�o sabe dizer o que fez que voc� irrompesse como escritor. Mas tenho uma certeza dentro de mim: uma grande motiva��o foi todo o desejo de sentir, ver, tocar e pretender me aproximar desse homem que foi meu pai.

A vida toda ouvi falar dele sem realmente poder v�-lo, porque meu pai adoeceu quando eu tinha tr�s anos. S� o conheci aos 16, mas j� muit�ssimo doente, esquizofr�nico, paranoico, num sanat�rio. Vi aquele rosto que eu conhecia das fotografias.

[Havia um amigo dele] que dizia para mim coisas impressionantes: que meu pai foi a cabe�a mais l�cida que ele havia conhecido.

A loucura do pai

Os relatos da minha m�e a respeito dele, tudo isso me impressionou muito desde menina. E vamos dizer que a personalidade forte do meu pai, e de uma certa maneira profundamente dominante, [era] sedutora para mim.

Porque era uma figura sob a qual voc� podia ficar.

Aquele homem foi me impressionando profundamente. E tudo isso da loucura, n�? Um mundo todo fascinante, cheio de sedu��es. Acho que esse foi o toque, o que deu a explos�o dentro de mim para come�ar a dizer.
Para come�ar a me dizer.

Desejo de proximidade

A figura do meu pai ativou algo em mim [que me fazia desejar] ficar mais pr�xima dele. No final, n�o fiquei nada mais pr�xima. Quando o vi pela primeira vez, ele j� n�o era aquele homem de quem eu tinha recebido not�cias. Era uma segunda pessoa. Um homem absolutamente em ru�nas, mag�rrimo, uma figura trist�ssima e terr�vel, tr�gica e tudo o mais.

Foi muito importante mesmo o que se disse do meu pai, o que ouvi dele mesmo, o que pude pressentir, o que amei e o que n�o quis ver -como isso de ele ser dominador.

Olhar de opressor

Me impressionou muito quando mostrei uma foto dele para minha amiga Rose Marie Muraro [1930-2014]. Ela disse: "Meu Deus! Que olho horr�vel! Que olho de opressor!" Na hora, fiquei muito chocada, porque nunca tinha visto isso nele. Mas n�o � que eu n�o tivesse visto. � claro que eu sabia que meu pai, tendo vivido na �poca em que viveu, tinha todos os componentes de um machista.

Tenho impress�o de que procurei esse rosto [do pai]... Em todas as delicadezas, em todas as viol�ncias, em todas as pessoas que amei. Procurei a vida inteira verbalizar esse sentir pai dentro de mim. � a coisa mais viva, a figura desse homem dentro de mim. Apesar de nunca estar perto, ele � a pessoa que ficou mais perto.

Sala de Mem�ria Casa do Sol/Acervo Instituto Hilda Hilst/Divulga��o
O artista Jos� Luiz Mora Fuentes e Hilda Hilst na Casa do Sol, em fotografia sem data
O artista Jos� Luiz Mora Fuentes e Hilda Hilst na Casa do Sol, em fotografia sem data

A mudan�a para a Casa do Sol

Talvez tenha sido um processo inconsciente. Quando eu morava em S�o Paulo, escrevia poesia; mas havia demasiada proximidade dos outros em mim. Talvez eu tenha vindo morar no campo para que outra vez se fizesse a explos�o de magia causada pela aus�ncia do pai.

Posso ter repetido isso sem ter esquematizado, para ver se conseguia dizer melhor dos outros estando distante.

A solid�o

Acho que deu certo. Aqui foi onde fiz meu trabalho com mais intensidade.

As pessoas confundem tudo, querem respostas arrumadas, quando n�o h� respostas arrumadas. O que h� � uma vontade de a descoberta ficar cada vez mais vital, mais importante maior.

E da� � preciso que voc� tenha uma solid�o bastante acentuada. Que voc� repense diariamente esse seu estar no mundo, seu existir.

Estou e n�o estou em solid�o. H� a possibilidade de eu conversar agudamente com algumas partes minhas que eu ainda desconhecia. E tanto desconhecia que foi s� aqui que pude trabalhar a linguagem, sentir o ve�culo da linguagem com mais vida. Havia uma possibilidade maior de grandes confiss�es nesse estar s�.

Por que Hilda se isolou

A vida que eu tinha em S�o Paulo parecia bastante divertida. Eu me preocupava com as apar�ncias, tinha amigos bastante divertidos, mas sentia que n�o ia poder trabalhar se continuasse naquele processo.

Tentei v�rias experi�ncias para me aproximar de um dizer criativo. Atrav�s do amor, fui tentando descobrir formas de dizer. Fui procurando em cada pessoa e em cada objeto amados um rosto primeiro, um pai primeiro, um detalhe qualquer que me aproximasse continuamente desse homem. Foi uma verdadeira obsess�o.

N�kos Kazantz�kis

Um dia eu li "Cartas a El Greco", de N�kos Kazantz�kis. Esse homem entrou numa luta acentuada entre a carne e o esp�rito. Eu me aproximei da figura do Kazantz�kis, ele tinha uma coisa do meu pai, um olhar, uma magreza em que j� se pressentia uma lucidez-loucura. Foi a partir desse livro que resolvi vir para c� [a Casa do Sol].

Busca pela linguagem

Comecei a pensar que as coisas convencionais, tudo que eu havia visto, participado, tudo aquilo n�o era o verdadeiro rosto das pessoas nem o meu verdadeiro rosto. Senti que poderia dizer de outra maneira, porque eu era essa outra maneira. Eu era uma maneira de sentir que me diferenciava das coisas que eu j� tinha visto.

Vontade de dizer

Tinha uma vontade enorme de falar. E sabia que podia fazer do meu pr�prio jeito. Toda a minha respira��o era diferente. Havia um contato com as coisas n�tido e singular.

Tudo isso eu sentia pelas agress�es que eu recebia desde muito jovem, pelas coisas que eu dizia. Houve conflitos muito grandes com os outros na minha adolesc�ncia. Porque havia uma vontade de dizer tudo, agarrar o outro e for��-lo tamb�m a dizer tudo, para que ele ficasse perto. Tudo isso espantava e chocava. N�o era natural fazer coisas assim, pedir ao outro mais do que pudesse convencionalmente dar.


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